fevereiro 03, 2012

"A greve de fome do Caboclo Menino", por Bruno Cava


A greve de fome do Caboclo Menino
O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, Gláuber Rocha, 1969
PICICA: Em 1987 fiz uma greve de fome no interior do velho hospício de Manaus para chamar atenção da opinião pública dos riscos da Reforma Psiquiátrica desandar no Amazonas. A rigor o termo "reforma psiquiátrica" só ganharia maior expressão no final daquela década. Não sabíamos que estávamos fazendo história. Tomada a decisão em deflagrar a greve, uma grata satisfação: o apoio do movimento social e sindical da época. Os tempos eram mais propícios. Vínhamos da luta contra a ditadura militar e pela democratização do país. Hoje, morreria de fome, se dependesse de uma certa esquerda  militante que virou funcionária pública. A greve de fome de Pedro Rios é de uma coragem sem par, porque movida pela mais radical das indignações contra a passividade-nossa-de-cada-dia. No leque de apoio, uma nova militância dá os ares da sua graça.
Eu conheci o Pedro no primeiro dia da OcupaRio. Foi naquele 22 de outubro ensolarado, a Cinelândia tomada de vida e agitação, uma semana depois da decisão de acampar pra valer. Logo no comecinho das atividades, se formou uma roda de poesia. As pessoas subiam no banco da praça e declamavam, ecoadas pelo megafone humano. Coisa bonita de ver e participar. Teve Manoel de Barros, Pessoa, Hilda, Faustino, Brecht. O Pedro foi lá e recitou não lembro qual poema. Troquei uma ideia. Me disse que era um marxista, que chegara a hora de fazer história. Respondi que também era, naquela brincadeira batida da tendência groucho. Comecei a falar das lutas reais da cidade do Rio de Janeiro e ele me disse que era a primeira mobilização de rua de que participava na vida. Na hora, me pareceu mais um louco entre tantos varridos, loucos por vida que éramos. Adicionei-o às redes sociais, onde ele era o Barão das Macaúbas.
O segundo momento em que o encontrei foi numa assembléia de sábado, à tardinha. Pedro foi ao centro e anunciou que leria um manifesto. Recordo que alguém levantou questão de ordem, imagine se cada um quissese ler o seu, seriam 200 manifestos. Ele insistiu, ganhou a causa. E foi lendo, em tom de manifesto, cinco, dez, vinte minutos. Na roda, conforme o tempo passava, as mãos balançando em sinal de agrado foram diminuindo, substituídas pelos códigos de “mais foco” e “conclua!”. Até que não dava mais e interromperam o Pedro, contrariado. Mas no final ele foi aplaudido. Um companheiro abraçou-o. Depois, em casa, li o texto com calma, gostei de algumas coisas, mas não curti a mensagem universalista por trás do discurso da revolução. Independente disso, achei sensacional a atitude de ler uma peça elaborada com esmero de véspera, em meio àquele assembleísmo sonolento de falas ralas e manobras de “consenso”.
Pedro ficou sumamente injuriado com a recepção do manifesto. Abandonou a ocupação. Mudou o codinome online para Caboclo Menino e passou a criticar a acampada da Cinelândia no grupo do Facebook. Queria mais assembléias, organizadas de outra maneira. Alguns encararam como intransigência de menino mimado, mas outros como personalidade forte, como indignação que recusa transigir.
No mês passado, teve a desocupação do Pinheirinho. As redes sociais inundaram de protestos. Entre tanta comoção, me saltou aos olhos um aviso no mural do Pedro, onde ele informava que estava partindo pra São José dos Campos. Nos dias seguintes, Pedro passaria a relatar a vivência na pele da neurose. Essa neurose institucionalizada que muitos pobres do Brasil conhecem bem, porque costuma se abater sobre eles. Aí o caboclo perdeu a meninice. Estancou num impasse neurótico, numa impotência induzida que é o próprio rendimento do estado policial. A cada mensagem no Facebook, num tom cada vez mais taxativo, Pedro se contorcia com as palavras para tentar exprimir minimamente o que vivera, com a gravidade e a premência com que vivera. Mas não dava conta, e o impasse foi cedendo lugar a um fanatismo moral, em defesa dos desabrigados de Pinheirinho. Pedro falava imbuído da autoridade absoluta, invocando a vergonha e convocando à luta sem tempo para poréns ou senões. Ao ler essas mensagens, eu vislumbrava os seus olhos chamejando de um fogo selvagem, entre o ódio e a paranoia, um fanático pacifista voltando dos fogos e medos da guerra.
Mas eu não condeno esse fanatismo.
Aí veio o anúncio da greve de fome. Por Pinheirinho, Pedro decidiu entrar em greve de fome por uma semana. Na última mensagem, declarou o amor pela comunidade removida pelo governo de São Paulo. E pronto, sem hesitar, fez do seu jeito, ai de quem tentasse dissuadi-lo. Foi pra frente da central de jornalismo da Globo, no Jardim Botânico, e se algemou. Aos poucos, foram chegando simpatizantes, interessados, curiosos da própria emissora, da base de trabalhadores. Alguns eram da OcupaRio, outros nem o conheciam. O protesto ganhou corpo nas redes sociais, reuniu pessoas, um real envolvimento. Descontraído, sem a atmosfera de ascetismo típica de ações de auto-imolação. Afinal de contas, a proposta é uma semana e não mais. Pedro foi entrevistado, produziu-se mídia, dispararam debates, articulações. Frisou não ser herói e não parece mesmo apaixonado pela própria imagem de crucificado.
Eu não julgo o ímpeto e a loucura dos outros, na contingência das lutas.
Causa perplexidade. Ser necessário alguém abrir uma greve de fome para chamar a atenção. Propor-se a sofrer em nome dos outros, para ser ouvido de verdade. Ser necessário prejudicar a própria saúde, voluntariar-se a um risco todavia desnecessário, tudo para dotar-se da aura de virtude, da auréola militante. Como se o ato do sofredor o convertesse num portador da verdade. Como se não bastasse o sofrimento de quem foi expulso de casa à força de bombas e cassetetes e ativismo judicial. Então é preciso sofrer ainda mais; é preciso que um branco, ilustrado, classe média, também sofra, para que os outros levem a sério o sofrimento. Em meio às intermináveis ondas de vaga solidariedade e burocráticas declarações de apoio, não se pode negar que o ato de Pedro se diferencia. Há aí uma potência ambivalente, um delírio glauberiano, entre um salvacionismo ascético e um milenarismo marxista, entre Cristo e Canudos, entre a fé e a revolução.
Nesta altura, circulam muitas opiniões sobre a greve de fome, além dos esperados apoios, alianças e elogios diante da atitude. O debate se descortina e já vi gente cogitando em ampliá-la, em adotá-la por tática recorrente. Uma discussão estratégica. De qualquer modo, fica claro como não dá pra falar em abstrato sobre a greve de fome. Na brecha do tempo de onde escrevo, tudo são vetores, percepções, sutilezas, contingências, narrativas. É possível uma greve de fome por uma semana que reinvente a greve de fome? em vez de ato redentor pela via do martírio, um protesto alegre, paródico, midiático, que potencialize a causa? onde está o fiel da balança: afirmação do sofrimento ou moralização da causa? exibição narcísica ou chamado militante? mortificação das lutas? individualismo disfarçado de abnegação pelo coletivo ou construção do comum?
Quem sou eu para condenar o ímpeto e a loucura dos outros!
A greve de fome de Pedro já é bem-sucedida como mídia tática e mobilização. Que não glorifiquemos o sofrimento, a fome e a morte. O que, num país terceiromundista, não afetaria além de certa classe média que já se sente impotente e culpada diante da miséria e da violência. Essa greve é positiva, sim, porque, sobretudo, até agora evitou misturar-se com a morte, com a pulsão de morte, com o suicídio, ainda que no horizonte, ainda que sugerido. Esse jejum não está na tradição do último recurso, como nos casos de Bobby Sands, das feministas americanas, de Potti Sriramulu, dos presos políticos de Guantánamo, de quem apodrece nas salas 101 pelos escuros da história e não acede outro caminho. Essa greve está mais para a paródia, para o riso do grande coringa que transfigura as derrotas em memória. Mesmo porque a OcupaRio, sim, é vida, é mais vida, e Pinheirinho, sim, Pinheirinho tem que viver. Com a morte não se brinca, porque ela não existe. Que a morte e suas imagens inspirem as forças da direita.
Por tudo isso, até agora, está sendo positivo, a ação ao redor do Caboclo Menino assume um sentido afirmativo em construção, nas ambivalências e perplexidades do concreto, como tem de ser e como acaba sendo de uma forma ou de outra, fora das abstrações teóricas e utopias de cátedra. Que não se perca em si mesma, e prolifere vida.
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