A democracia de Rosenfeld
Os riscos do fascismo podem ser evitados, desde que tenhamos uma democracia na qual, além de “liberdade de”, haja “liberdade para”.
PICICA: Em Manaus, uma senhora imortal da Academia Amazonense de Letras escandalizou a sociedade ao destilar teses racistas contra a presença dos haitianos em Manaus. Imediatamente choveu críticas contra os estereótipos e as distorções contidas no texto mal ajambrado da escritora. Ao tentar convencer seu público leitor, no sentido mais racionalista do termo, não conseguiu esconder o endereço de sua bajulação, causando um constrangimento político no destinatário, o que dá a dimensão da irracionalidade com que se comunicam idéias e emoções com a intenção de agradar o patrão. Saiu caro a demagogia. À falta de maestria, agora a retórica do "bode expiatório" volta-se contra a criatura. Ao ser julgada no tribunal ético-político virtual que se instalou após o grotesto episódio, todo o cuidado é pouco: transformá-la num "Outro" onde se cristaliza o Mal é um filme por demais conhecido para se cair nessa esparrela.
Preconceito, racismo e política, do filósofo Anatol Rosenfeld (1912-1973), organizado e anotado por Nanci Fernandes, é um grande lançamento. É uma pena que um livro tão especial tenha recebido uma capa tão genérica. O livro traz as investigações de Rosenfeld sobre a Alemanha nazista e a Europa do pós-guerra, mas não se trata de um livro datado, pois infelizmente os desafios daquele período à liberdade individual e à igualdade entre as pessoas se mantêm presentes, assim como felizmente as reflexões de Rosenfeld se mantém atuais.
Lendo em retrospecto, Rosenfeld apresenta uma resposta antecipada àqueles que encontram as origens do totalitarismo hitlerista no exclusivo modo de ser do povo germânico. O livro abre com uma investigação sobre as causas psicológicas do nazismo, a qual se justifica porque tais causas são gerais, isto é, potencialmente encontráveis em quaisquer populações humanas, nada devendo a alguma singularidade do povo alemão. Assim sendo, o conhecimento de tais causas é um meio de detectar indícios do risco da formação de organizações sociais ao estilo do nazismo em quaisquer sociedades. Usando o vocabulário de hoje, poderíamos dizer que regimes tais como o nazista prosperam em sociedades nas quais uma espécie de bullying prospera, sendo que os bullies são considerados como personalidades sadomasoquistas facilmente encontráveis na classe média:
O sadomasoquista moral só se sente bem dentro de uma hierarquia rigorosa, na qual sempre há alguém por cima e alguém abaixo dele – a exata posição da pequena e média burguesias.
Na busca do próprio conforto espiritual, a classe média inventa seu líder, ao qual se submete, e inventa seus inferiores, os quais maltrata. Com medo da própria liberdade individual, a classe média inventa uma estranha equação, segundo a qual a quantidade de proteção garantida a alguém é inversamente proporcional à quantidade de liberdade individual dessa pessoa, e seu medo a leva a escolher mais proteção, logo menos liberdade. O sadismo vem da ânsia de superar o próprio sentimento de inferioridade, enquanto o masoquismo vem da ânsia de se sujeitar a um poder superior, por instinto de submissão. Na tese do medo da liberdade há ecos da psicologia deErich Fromm.
É notável o quanto algum marxismo costuma estar presente nos textos de Rosenfeld, e o quanto esta matriz está ausente no pensamento de hoje. Na análise da situação da Alemanha no pós-guerra, Rosenfeld critica os EUA por preferirem interlocutores de classe média e passado nazista a interlocutores trabalhadores e lutadores antifascistas. Chomsky à parte, não há nada parecido nas analises mais usuais nos dias correntes, nas quais só se enxerga os líderes de partidos, igrejas ou corporações, nunca os trabalhadores que fazem a máquina se mexer.
Rosenfeld retrata a classe média como uma população escravizada pela dependência à qual se condena, e tal escravização como um risco, por impossibilidade de autorrealização:
A pequena burguesia […] é por excelência a classe brecada nos seus impulsos, cercada por tabus e hipocrisias. O homem típico dessa classe […] é aquele que nunca quer parecer aquilo que realmente é. […] é fiscalizado pelo vizinho e pela opinião de um ambiente estreito e puritano, para o qual todas as coisas belas da vida tornam-se uvas azedas. A verdadeira moral da consciência autônoma tem a tendência de tornar-se superficial, apenas costume ou legalidade quando submetidos inteiramente ao critério anônimo da opinião pública ou do senso comum – tiranos terríveis que sufocam toda a espontaneidade e sinceridade da vida, das ações, dos sentimentos, das emoções e até dos reflexos e dos sonhos. […] ele é um homem-cebola – não se acha o caroço, existem apenas as cascas.
Mas Rosenfeld não é um alarmista, nem um conformista. Ele acha que os riscos do fascismo podem ser evitados, desde que tenhamos uma democracia na qual, além de “liberdade de”, haja “liberdade para”. Usando o vocabulário mais recente de Amartya Sen, Rosenfeld está dizendo que não basta dispor de uma liberdade meramente formal, pois é preciso que o indivíduo tenha a capacidade concreta de se realizar, isto é, que o indivíduo tenha liberdade substantiva para usufruir de uma vida boa. Eis uma proposta muito atual, não?
Há mais reflexões atuais e agudas nessa coletânea, sobre temas como a natureza da propaganda, Israel e Palestina, a ética da memória e a natureza do preconceito. Enquanto filósofo, Rosenfeld se sai bem pela sua capacidade de analisar e descrever, e seu texto claro busca nos levar à ação, além de nos trazer a verdade. Na condução do público à ação, Rosenfeld é animado pelos valores adequados, a liberdade e a igualdade, isto é a justiça. Por tudo isso, este é um livro muito bem-vindo.
::: Preconceito, racismo e política ::: Anatol Rosenfeld :::
::: Perspectiva, 2011, 232 páginas :::
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César Schirmer dos Santos
Fonte: Amálgama
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