PICICA: "Investigador independente, Ralf
Ruckus é autor e tradutor de diversos artigos e livros sobre a
composição social e política das lutas sociais na China, país onde
realiza uma grande parte da sua pesquisa."
A luta de classes na China: entrevista com Ralf Ruckus
Investigador independente, Ralf
Ruckus é autor e tradutor de diversos artigos e livros sobre a
composição social e política das lutas sociais na China, país onde
realiza uma grande parte da sua pesquisa. Entrevista por Passa Palavra.
Passa Palavra (PP): Quando é que começaste a interessar-te mais pelos desenvolvimentos ocorridos na China?
Ralf Ruckus (RR): Por
meados da década de 90, veio a tornar-se evidente a deslocalização do
centro da produção capitalista para a China, sem que muito se soubesse
acerca das lutas que lá ocorriam e do seu contexto político e económico.
À altura, alguns membros da revista política alemã Wildcat começaram a recolher informações sobre as lutas na China, na Indonésia e noutras regiões da Ásia.
Em finais da década de 90, eles escreveram um artigo a sublinhar a
importância da aprendizagem de línguas asiáticas e da criação de laços
diretos com trabalhadores e ativistas de lá. Foi aí que considerei, pela
primeira vez, centrar-me na questão da China.
Posteriormente,
no início dos anos 2000, uma parte de um círculo que se desenvolveu em
torno da Wildcat começou a discutir a corrente dos estudos do sistema
mundial mais orientada para a luta de classes, em particular a obra Forces of Labor
(2003), de Beverly Silver, que publicámos em alemão, mas também outros
autores, como Giovanni Arrighi. A meu ver, tais obras contribuíam com
novos conceitos para a análise do capitalismo global e da recorrente
trajetória de industrialização, migração, proletarização e luta de
classes nos novos centros do desenvolvimento capitalista. No seu livro,
Beverly Silver defende que, face à industrialização em massa da China na
década de 90, é provável que o novo epicentro da luta de classes venha a
surgir neste país. Com esta ideia em mente, comecei a aprender a língua
e fui para a China.
PP: Como se
desenvolveu a tua experiência na China? Estabeleceste contactos com
trabalhadores e encontraste outras pessoas com perspectivas idênticas?
RR: Tanto eu como
outros camaradas desenvolvemos relações próximas com ativistas e
trabalhadores em várias cidades chinesas, bem como fazer entrevistas,
reunir dados, etc. Foram tempos empolgantes, com novas perspectivas e
visões, discutidas e sintetizadas numa brochura que publicámos
em finais de 2007. Esta incluía artigos sobre a “velha e socialista”
classe operária, a classe trabalhadora migrante, os camponeses, a China
no sistema mundial etc.
Pouco tempo depois, traduzi o primeiro livro a partir do Chinês, uma compilação de histórias de vida
de jovens trabalhadores migrantes das zonas económicas especiais do Sul
da China, com um enfoque especial na exploração do trabalho e na
opressão patriarcal das mulheres. Ao longo destes anos, durante as
nossas visitas habituais à China, verificámos como a experiência das
lutas conduziu a uma composição mais organizada de trabalhadores, com
uma série de ativistas a surgir das greves e uma circulação de
experiências e de saberes de luta. Procurámos assimilar estes processos e
contribuir para a sua circulação no exterior. Foi assim que o Gongchao
se formou. Inicialmente, estava apenas planejado ser um site de
divulgação de livros e brochuras, mas acabou por se tornar numa espécie
de arquivo de artigos em circulação sobre a luta de classes na China.
PP: Podes falar-nos um pouco mais do Gongchao?
RR: O site começou por
ser em alemão. Pouco tempo depois, por razões óbvias, acrescentámos o
inglês. Com o apoio de camaradas de diversos países, viemos a traduzir
artigos e livros para outras línguas: polaco, eslovaquo, espanhol,
françês, italiano, português, grego. Infelizmente, existem poucas
iniciativas semelhantes a concentrarem-se nas lutas sociais na China, o
que explica a atenção e o apoio que temos.
Existem
pessoas da Europa, América do Norte e Ásia a contribuir, o que faz do
Gongchao, não um grupo localizado numa cidade, mas uma rede coletiva de
camaradas oriundos de várias regiões que partilham de posições
anti-autoritárias e de métodos de pesquisa e intervenção política.
Alguns participantes têm ligações a universidades, sendo que
(re)publicamos artigos «científicos», caso estes disponibizem informação
e análise relevantes. Mas, em geral, o quadro académico tende a ser
demasiado estreito e tendencioso. A nossa pesquisa e intervenção
baseiam-se no debate e na decisão política.
PP: Podes resumir o padrão das lutas operárias na China ao longo da última década?
RR: O padrão de luta
dos trabalhadores migrantes alterou-se, uma vez que, antes de 2003,
estas tendiam a ser raras, pequenas, isoladas, baseadas em relações de
parentesco e defensivas nas suas reivindicações. A partir desta altura,
tornaram-se mais frequentes, maiores, contagiosas, baseadas num
interesse de classe e ofensivas nas suas reivindicações. Enquanto a
primeira geração de migrantes, da década de 90, era composta por
pequenos camponeses que queriam regressar às suas aldeias após alguns
anos de trabalho na cidade, uma grande parte da segunda geração, dos
anos 2000, não pode mais cultivar terras. Pelo contrário, pretende
permanecer na cidade, tendo acumulado as experiências e os saberes
suficientes para lutar pelo seu próprio interesse – um padrão observado
ao longo de outras fases de súbita industrialização e proletarização de
migrantes ocorridas noutros tempos e noutras regiões do mundo.
PP: Qual achas que será a resposta do Partido Comunista Chinês (PCC) à crescente agitação laboral? E a do capital privado?
RR: O PCC sabe que não
pode simplesmente colocar uma tampa sobre o descontentamento dos
trabalhadores, sendo obrigado a libertar algum vapor. A partir da década
de 90, o PCC implementou algumas leis de trabalho e de negociação
coletiva, de forma a canalizar algum do descontentamento para
procedimentos institucionais. Tal conduziu ao aumento do número de casos
jurídicos, sem que, contudo, se tenha conseguido parar o aumento de
outras formas de lutas «selvagens», ilegais na China: greves,
manifestações, bloqueios de estrada, etc. No entanto, o PCC recorre
igualmente à força na supressão de lutas, quando estas adquirem uma
maior dimensão ou colocam em causa o seu domínio. Eles reprimem e
prendem ativistas, recorrem à polícia de intervenção para desbloquear as
estradas e intervêm dentro dos locais de trabalho.
PP: Achas que o modelo de desenvolvimento da China das últimas décadas poderá vir a entrar em crise?
RR: Existem dois tipos
de «perigo», um externo e outro interno. A crise de 2008 provocou o
encerramento de fábricas e o aumento de desemprego na China, até o
momento em que o PCC e governos de outros países decidiram intervir
através de massivos programas de fomento. Contudo, e dado que os
problemas que conduziram à crise global de 2008 não foram resolvidos,
poderemos vir a assistir a uma nova recessão, sendo que não é claro até
que ponto é que os EUA, os países da UE e China seriam capazes de
imprimir o dinheiro necessário a uma nova série de planos de fomento
públicos.
O desenvolvimento das lutas dos
trabalhadores é igualmente relevante. O seu aumento conduziu a salários
mais elevados na China, cerca de 10% a 15% nos últimos 10 anos. Caso
esta tendência persista, o modelo de «trabalho barato», a base do
sucesso económico chinês, poderá chegar ao fim. O aumento do consumo
interno poderá colmatar o declínio das exportações. Porém, não se sabe
até que ponto é que o capital chinês e estrangeiro (localizado na China)
serão capazes e estarão dispostos a permitir aos trabalhadores chineses
a garantia, a longo prazo, de uma maior fatia da riqueza produzida. O
declínio das exportações, seguida de desemprego e da estagnação
salarial, poderá originar mais lutas e acionar uma ainda maior crise
económica e social.
PP: O que se pode esperar da classe trabalhadora chinesa nos próximos anos?
RR: O conflito de
classe poderá vir a intensificar-se devido a problemas relacionados com a
transição da economia de exportação chinesa e com a determinação dos
trabalhadores chineses na luta por melhores condições, contra a
exploração. Teremos que verificar a viabilidade dos mecanismos de
canalização e de institucionalização dos conflitos laborais do PCC. Até
agora, as lutas baseiam-se em formas de diversas de auto-organização. A
pressão, desde baixo, é criada por uma onda de lutas que não é nem
cooptada, nem integrada por sindicatos ou partidos reformistas.
Facções no seio do PCC, mas igualmente
entre ONGs e «esquerdistas», pressionam no sentido de uma
institucionalização das lutas laborais e de uma reforma dos sindicatos,
ainda sobre o estrito controlo do PCC, com os seus representantes a
serem rejeitados pelos trabalhadores. Veremos se a direção do PCC
permitirá tais reformas do sindicato, de forma a obter mais uma
ferramenta no controlo das lutas.
Mais importante, teremos que verificar a
possibilidade de um eventual aumento, ainda maior, do número de lutas
dos trabalhadores; da possível obtenção de mais concessões da parte dos
trabalhadores; e, por fim, da sua capacidade de repelir tentativas de
cooptação. Tal é difícil de prever.
PP: Achas que os
investimentos capitalistas na China serão redirecionados para outras
regiões no Mundo? Outros países asiáticos? Outros continentes?
RR:
Isso, de certa forma, já acontece. Algumas indústrias com reduzidas
margens de lucros, altamente sensíveis aos aumentos salários na China –
como a indústria de vestuário – deslocalizaram uma parte da sua produção
para o Vietname ou Bangladesh. Todavia, não é provável que indústrias
com elevadas margens de lucros e grandes grupos industriais o venham a
fazer, uma vez que os salários chineses ainda são francamente reduzidos
quando comparados com os da América do Norte e os da Europa Ocidental;
uma vez que o mercado chinês continuará a ser importante para o capital
global; e uma vez que não existem regiões alternativas, com uma
infraestrutura semelhante, uma ampla e qualificada força de trabalho e
uma relativa estabilidade política.
PP: Que tipo de
impacto é que os atuais acontecimentos na China poderão ter no sistema
capitalista mundial? E em que é isto influencia os trabalhadores da
Europa e da América do Sul?
RR: A China é um ator
global, cuja ascensão – à semelhança de outros «estados em vias de
desenvolvimento», como o Brasil ou a Índia – veio alterar a balança do
poder e do sistema mundial. Conforme atrás mencionámos, a China é o
centro da produção global, em particular de produtos do consumo. O
aumento dos salários, neste sentido, poderá significar o aumento dos
preços destes produtos. Tal produziria efeitos em termos de preços,
salários e, logo, de níveis de consumo de grande parte do mundo. Será
interessante constatar a reação dos trabalhadores, por exemplo da Europa
ou da América do Sul, face a salários cujo valor não permite a
aquisição de telemóveis ou outros bens de consumo.
PP: Como podem os trabalhadores de outros países contribuir para as lutas dos trabalhadores chineses?
RR: Não estou certo de
uma eventual contribuição direta. Contudo, acho vital o conhecimento da
situação e das lutas dos trabalhadores na China, que compreendam não se
tratar de «uma força de trabalho barata», mas de pessoas com interesses
semelhantes que enfrentam o capital.
PP: Como podem os trabalhadores de diferentes partes do mundo estabelecer ligações e apoiarem-se mutuamente?
RR:
Há alguns anos atrás, esperámos que os movimentos das praças ocupadas e
as greves que se espalharam entre 2009 e 2012 conduzissem a um
movimento global. Tal não aconteceu (ainda), pelo que nos encontramos a
atravessar um período menos promissor de refluxos políticos e guerras.
Um dos obstáculos reside no facto de muitos movimentos dos trabalhadores
ainda decorrerem no quadro do estado-nação. Em muitos países, até a
grande parte das facções de esquerda ainda se concentra no «seu» país,
não conseguindo ultrapassar um «internacionalismo» datado no quadro de
instituições e organizações.
Além do desenvolvimento de lutas locais,
é essencial a criação de maiores ligações diretas entre trabalhadores e
ativistas, a aprendizagem de linguagens estrangeiras, a circulação de
mais informação produzida «desde baixo», etc. Possuímos todos os meios
técnicos e capacidades para organizar tais trocas. Mas o número de
pessoas dedicadas a tal, em particular com ligação à Ásia, é demasiado
reduzido. Maiores ligações diretas e fluxos de informação – sem o filtro
e a distorção dos media burgueses, das estruturas sindicais e das
direções das ONGs – poderão compor a base de apoio mútuo dos movimentos –
isto é, quando a maré mudar de direção e verificarmos uma nova dinâmica
de lutas sociais a uma escala global.
A entrevista foi ilustrada com obras de Zeng Fanzhi.