Entenda a indignação do cineasta Aurélio Michiles ao ler, neste blog, a apresentação do documentário "O Triunfo da Vontade" por um intelectual a serviço das idéias intolerantes, relacionadas à extrema-direita. Inadvertidamente este blogueiro não checou a fonte e deu-se, então, a melódia.
Pesquisa daqui... pesquisa dacolá... eis que me deparo com o seguinte fato: quando Aurélio Michiles realizou o documentário "Davi contra Golias" (1994) sobre o massacre sofrido pelos Yanomami de Haximu, o referido intelectual escreveu vários e imensos artigos na Folha de São Paulo para dizer que o massacre era falso. Leia a sinopse de Davi contra Golias e o artigo de Aurélio Michiles, escrito por solicitação da Folha de SP, na época, texto, entre outros, saudado pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha.
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Título: Davi Contra Golias
Duração: 00:10:00
Produção: ISA-Instituto Socioambiental
Sumário: Filme-denúncia sobre o massacre dos Yanomami. Entrevista com os indios Yanomami, onde estes falam da relação com os garimpeiros, explicam como tudo se deu e relatam o massacre. A ida a Brasília para reivindicar ao governo uma tomada de posição. A repercussão nas mídia impressa e eletrônica tanto no ambito nacional quanto internacional. O documentário conta com uma entrevista com o o líder Yanomami Davi Kopenawa.
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Maio 1994. Folha de São Paulo
Domingo, 15/05/94
O YOM HASHOÁ IANOMÂMI
Autor: AURÉLIO MICHILES
Editoria: MAIS Página: 6-3
Edição: Nacional MAY 15, 1994
Seção: PONTO CRÍTICO
Especial para a Folha
Para início de conversa: o massacre dos ianomâmi de Haximú, não foi um só, foram vários. É só ler o Laudo Pericial da Polícia Federal, conforme inquérito policial número 078/93-DPF-1/RR/19. ago 93-30. set. 93/2 volumes. Os meios de comunicação documentaram como possível e foi o suficiente para se chegar aos fatos – houve o massacre. O resto é apenas uma prática comum de fazer persuadir a opinião pública: tudo que se vê não é aquilo que se vê, é apenas o que EU quero que vocês vejam.
Duvidar da cremação de cadáveres pelo leviano argumento dos ianomâmis não possuírem modernos crematórios ou forno de microondas? É ridículo. É a mesma coisa que duvidar dos primeiros viajantes cruzando oceanos, descobrindo outros continentes antes de existirem as modernas embarcações transatlânticas ou, ainda, da cartografia anterior aos satélites.
É neste jogo de sofismas aonde são manipulados todos os fatos hediondos do nosso cotidiano: Candelária, Vigário Geral, Carandiru, Esquadrão da Morte, Corruptos do Orçamento, Camarilha do Governo Collor, Extermínio de Crianças, etceteras e etceteras...
Que fique claro: falar em assassinatos de índios no Brasil é pleonasmo.
Conta um mito dos índios Hixkaryãna que um cidadão desafiando a luz do sol, afirmou não ser verdade que o sol alimentava todas as coisas de nossa Terra, água, plantas, pedras... e pôs-se a desafiá-lo cara a cara, horas a fio, mergulhando inexoravelmente nas trevas, "e seu rosto empretejou de escuridão". Alguém ainda tentara persuadi-lo, quando um outro alguém aconselha: "Deixe-o, não se preocupe, ele é apenas um tolo". Em outras palavras, este mito quer dizer: "cego é aquele que não quer ver".
Em nosso país, nos tempos da férrea ditadura, muitos cidadãos foram assassinados, torturados e quando os parentes e a sociedade cobravam do governo, recebiam a solene resposta: "Não existe tortura, nem presos políticos no Brasil". Quando o jornalista Vladimir Herzog apareceu morto numa cela de prisão, apesar da foto mostrar ser impossível alguém se suicidar daquele jeito, revelava-se o lado espetacular dos assassinatos sob tortura. Levou anos para que a família de Herzog e a sociedade brasileira tivessem uma resposta honrada diante daquele odioso crime.
O tolo que encara o sol e perde a luz do conhecimento é o mesmo que não consegue entender os povos indígenas. É o caso do sr. Janer Cristaldo, no artigo "Os Bastidores do Ianoblefe" ("Mais", 24/04/94; não nos interessa comentar o outro artigo, "Mais", 8/05/94, onde só reafirma suas bravatas lombrosianas) quando tenta, como aqueles senhores que ainda negam o Holocausto praticado pelos nazistas, câmaras de gás, os campos de concentração, apesar dos filmes, fotos, livros, depoimentos dos sobreviventes...
Massacres na verdade, é apenas o lado espetacular dos fatos. Por exemplo, quando se fala em garimpo apenas ficamos com a imagem do garimpeiro fugidio, ou com aquela visão de Serra Pelada, no Pará, e seus 80 mil garimpeiros misturados à lama catando e juntando ouro com as próprias mãos.
Os garimpeiros são os miseráveis que avançam para fora das fronteiras nacionais em busca do Eldorado, monitorados por interesses que desconhecem, os poderosos grupos de atividades minerais. O fato é que na bacia amazônica hoje, o garimpo está erodindo os solos e bloqueando cursos d'água com lodo. A Organização Mundial da Saúde anuncia que mais de um milhão de pessoas estão hoje, na Amazônia, envenenadas por mercúrio.
O massacre de Haximú é aquela mesma imagem espetacular da Serra Pelada, encobrindo os verdadeiros conflitos. No caso Haximú, importa se foram "19, 40, 73, 89, 120, e finalmente 16 cadáveres chacinados?" (vide frase do sr. Cristaldo) Imaginem se 16 membros de sua família tivessem sofrido todo tipo de sevícias, ou colocados como reféns por bandidos que invadiram a festa de aniversário em sua casa. Estes bandidos não mataram todos os 25 convidados ou membros de sua família, mas mataram e seviciaram apenas 16 membros de sua família. faz diferença? Hitler não matou oito milhões de judeus mas foram apenas seis milhões. Faz diferença?
Esta contabilidade em que muitos gostam de embarcar é evidentemente, uma contabilidade contando juros e lucros para aqueles que estão explorando as riquezas no território ianomâmi. Que tal uma CPI da exploração do ouro na bacia amazônica? Que se esclareça logo de uma vez o que é garimpo e o que é mineração.
É o que importa se o massacre foi no lado do território da Venezuela ou do Brasil, pergunto? Isto seria hipocrisia, pois querem todos acreditar que lá, naquelas lonjuras, vive-se o jogo da terra de ninguém e o que vale é o ouro. E mata-se por ele como foi o massacre dos ianomâmi de Haximú.
E vejam só. O sr. Cristaldo ao querer colocar os índios como inimigos mortais da Nação, cita o caso dos índios Waimiri-Atroari, justamente aqueles que nos anos sessenta, vendo suas terras invadidas por interesses de mineradoras, reagiram à invasão matando e morrendo. A morte do sertanista Gilberto Pinto (1974) e seus companheiros "pelos Waimiri" é um mistério. O sertanista foi morto a tiros e os índios Waimiri-Atroari não possuíam e nem sabiam usar armas de fogo. O enterro de Gilberto Pinto, em Manaus, foi feito por policiais militares, numa urna mortuária lacrada, e os familiares de Gilberto tentaram em vão conseguir ver o corpo ("Waimiri-Atroari – a história que ainda não foi contada", de José Porfírio F. de Carvalho, Edição do Autor, 1982, págs. 85 a/105). Lembro mais: Tudo isso foi naquela época, a do cerceamento das liberdades de expressão e comunicação. O que aconteceu? Lá está instalada a Paranapanema S/A explorando cassiterita na terra dos Waimiri-Atroari. E lembro ainda mais os txucarramãe tiveram uma história parecida, assediada por fazendeiros. Esse grupo caiapó começou a sentir suas terras encurtando sob seus pés, reagiram, mataram e foram mortos, até ganharem um pedaço de terra no parque do Xingu.
E lembro mais: em 1985 outros índios, também caiapós, no sul do Pará, frequentaram as manchetes da imprensa nacional como inimigos mortais dos recém chegados fazendeiros, madeireiros e garimpeiros. Os caiapós reagiram matando. E morrendo.
Hoje, na cidade de Redenção, sul do Pará, os caiapós transformaram-se nos maiores correntistas e aplicadores econômicos da região. Aliás, Paulinho Paiakan é um dos dinâmicos caciques empresários que empregam brancos e índios em seus inúmeros negócios, fazendo surgir uma massa indígena ávida de consumo, deixando o comércio local excitado e a população regional com água na boca.
A história dos ianomâmis não se diferencia das outras acima lembradas. O verdadeiro massacre dos Yanomami vem acontecendo desde a chegada dos garimpos em seu território no início da década de oitenta, quando já morreram 15% de sua população que era de 20 mil pessoas (Brasil/Venezuela).
O garimpeiro é a nesga, é também o lado espetacular de uma tragédia nacional brasileira. Por que não se propõe uma sociedade com os índios, cria-se um fundo, dividem-se os lucros, investindo em infra-estrutura (educação e saúde) procurando outras técnicas que não sejam estas que estão erodindo os solos, envenenando os rios e matando as pessoas que deles usufruem para sua vida? Quem sabe, se as mineradoras repassassem as riquezas do território ianomâmi para os índios, em breve surgiria um deles com câmera na mão e uma idéia na cabeça para contar os bastidores desta história. Assim como fez Steven Spielberg em "A Lista de Schindler".
Ainda assim alguns tolos haveriam de continuar encarando o sol, mergulhando suas faces nas trevas da infâmia.
AURÉLIO MICHILES é cineasta. Entre outros documentários, roteirizou e dirigiu: "Que Viva Glauber!" (91), "Davi Contra Golias - Brasil Caim" (sobre o massacre dos Ianomâmis em Haximú, 1994).
Nota
Yom Hashoá significa em hebraico "Dia do Holocausto".
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Nota
"Muito oportunos os artigos de Alcida Ramos –a antropóloga brasileira que mais conhece os ianomâmis–, do procurador da República Aurélio Ramos e do cineasta Aurélio Michiles no caderno Mais!, rebatendo as alegações de que não teria havido massacre de ianomâmis. Primeiro, se mata. A seguir, quer-se apagar a memória da matança. Contestam-se as cinzas dos ianomâmis como se contestam as cinzas de Auschwitz."
Manuela Carneiro da Cunha, professora titular de antropologia da USP (São Paulo, SP)
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Doze anos depois o intelectual intolerante seria desmascarado definitivamente através de um outro artigo, desta vez publicado pela Agência Carta Maior:
Yanomami na Imprensa
Data: 22 - Agosto - 2006
Titulo: STF confirma Massacre de Haximu, em Roraima, como genocídio
Fonte: Agência Carta Maior
STF confirma Massacre de Haximu, em Roraima, como genocídio
Garimpeiros condenados pela chacina de 1993, em Roraima, permanecem presos com a decisão do Supremo Tribunal Federal. Há cinco anos, houve questionamento se o crime que executou mulheres, crianças e idosos havia sido um genocídio.
Natália Suzuki - Carta Maior
SÃO PAULO – Em 1993, 22 garimpeiros foram acusados de executar 12 índios ianomâmis da comunidade Haximu, na serra Parima (próxima à fronteira com a Venezuela), em Roraima. A chacina, conhecida como Massacre de Haximu, foi confirmada como crime de genocídio pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na semana passada (9), pondo ponto final a uma disputa jurídica que ameaçava pôr em liberdade os quatro únicos garimpeiros que estão presos pelo crime.
Há cinco anos, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1a Região havia anulado o julgamento de Pedro Emiliano Garcia, Eliézio Monteiro Nerj, João Pereira de Morais e Juvenal Silva, condenados entre 19 e 20 anos de prisão pelos assassinatos. A justificativa era que o crime não fora um genocídio, mas sim um homicídio comum. Agora, com a ratificação do STF, a sentença foi validada, garantindo que os algozes não saíssem impunes.
Além do crime de genocídio, os culpados também foram condenados por outros delitos, como contrabando e garimpo ilegal. A primeira sentença, em 1996, condenou apenas cinco garimpeiros (um morreu antes de ser preso). Os outros continuam livres por falta de provas. Entre os índios executados, havia cinco crianças com menos de oito anos, dois adolescentes, mulheres, e idosos. Os homens adultos estavam longe do local, numa festa de outra tribo.
No Brasil, a lei 2889/56 define o genocídio como “a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. “A decisão do Supremo de ter mantido as condenações é importante devido à análise da natureza jurídico-penal do crime de genocídio, que demonstra a diferença do homicídio. O genocídio agride o princípio da diversidade e, no caso dos índios, essa diversidade é a étnica”, afirma Paulo Machado Guimarães, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Para Guimarães, a condenação dos criminosos de Haximu é um exemplo contra a impunidade. Ele avalia que a forma como a Justiça tratou o caso serve como precedente para situações semelhantes de agressão aos indígenas e violação dos seus direitos. “Em Mato Grosso do Sul, está havendo práticas de genocídio. Estamos analisando a reprodução [das ações de Haximu] para aquele Estado”, diz o assessor.
Mais de uma década após o massacre se passou e os ianomâmis da região de Roraima ainda sofrem com as conseqüências do garimpo ilegal, ainda que em menores proporções do que na época da chacina. “Houve uma redução, mas ainda existem focos de invasão [de terras indígenas]”, afirma Guimarães. No entanto, o assessor do Cimi constata que hoje o maior problema enfrentado pelas comunidades indígenas do estado é a precariedade do atendimento à saúde, administrado pela Fundação Nacional da Saúde (Funasa). “A gestão da Funasa tem sido muito problemática”, avalia.
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Fontes de pesquisa:
Folha de S. Paulo
Comissão Pro-Yanomami
Agência Carta Maior
PICICA - Blog do Rogelio Casado - "Uma palavra pode ter seu sentido e seu contrário, a língua não cessa de decidir de outra forma" (Charles Melman) PICICA - meninote, fedelho (Ceará). Coisa insignificante. Pessoa muito baixa; aquele que mete o bedelho onde não deve (Norte). Azar (dicionário do matuto). Alto lá! Para este blogueiro, na esteira de Melman, o piciqueiro é também aquele que usa o discurso como forma de resistência da vida.
junho 17, 2007
O massacre dos yanomamis: Davi contra Golias (1994)
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