Paulo Delgado
Delgado posa de amiguinho do ursoDeparei-me, neste domingo, com um artigo que me irritou. Acho que é pertinente falar dele, no entanto, porque me pareceu uma insinuação pornográfica que não desejo ver prosperar no partido da candidata que eu apóio. Desculpas pela expressão chula, mas não pensei em nada mais exato: entendi que Paulo Delgado, deputado federal pelo PT de Minas Gerais, argumenta que a política deve mostrar o traseiro à imprensa.
A bem da verdade, não sei se entendi direito, porque Delgado escreveu em código. O nobre parlamentar deve ser um admirador de ensaios estruturalistas, esses que ninguém entende, e por isso mesmo servem maravilhosamente aos interesses dos gabinetes de pósgraduação.
Mas eu fiquei sabendo que Immanuel Kant também não entendia nem tinha paciência para a escolástica medieval, então inventou a filosofia moderna. Isso me deu coragem, porque eu sempre vislumbro, nesses textos misteriosos do pósmodernismo, um ar gótico de monges murmurando.
O artigo de Delgado não é tão difícil quanto Deleuze, porque talvez o francês realmente tivesse algo novo e importante a dizer por trás de suas metáforas psicodélicas. O deputado lembrou-me mais aquele norte-americano doido que tentou viver em sociedade com ursos selvagens. Os animais o suportaram por algum tempo, até que se encheram. E o comeram.
O deputado mantem uma relativa (e vulgar) elegância acadêmica enquanto diz platitudes pseudoprofundas, mas escorrega assim que pronuncia algumas palavras em linguagem um pouco mais inteligível. Como isso:
No Brasil as leis comerciais estão mais avançadas do que as leis políticas: se posso devolver uma geladeira com defeito porque não posso devolver um político estragado?
Perdoem-me novamente, isso é estupidez. As leis políticas do Brasil, até onde eu sei, são tão modernas quanto de qualquer outro país democrático. Ou ainda: são melhores que a de nações mais ricas, visto que na Inglaterra, por exemplo, perdura a tradição ridícula de esperar a rainha entregar o poder ao primeiro-ministro.
Comparar um político a uma geladeira não me parece científico e creio que nem o mais alucinado mestrando da Uniban ousaria escrever algo assim. Poderia explicar ao deputado que eu não posso devolver um politico estragado porque: 1) não se trata de uma escolha individual; 2) o conceito de "estragado" deve ser avaliado pela Justiça e não por mim, nem pela imprensa, etc, mas creio que ele mesmo talvez já saiba disso.
Mas se ele sabe, o que o motivou a escrever esse texto? Ora, minha intuição me diz que se trata de uma consciência torturada, em luta consigo mesmo, confusa. Alguma coisa ele tentou dizer. Aquela algaravia tem um objetivo. Provavelmente se trata de uma manifestação espontânea e ingênua de se mostrar prestativo e bem comportado. Voltamos portanto à expressão chula. Delgado mostrou um pedacinho de bunda para os latifundiários da mídia, particularmente para o jornal O Globo, que o publicou neste domingo.
Abaixo o texto mencionado, intercalado com algumas observações minhas em vermelho.
Propaganda ou notícia :: Paulo Delgado
Os bons políticos são como os bons jornalistas: têm seu maior teste de caráter quando decidem não chutar a cabeça dos que já estão no chão. Pois quem busca a verdade não precisa triunfar sobre ela. Mas o código de desmascaramento da realidade sob o qual se orienta a imprensa está mais próximo da democracia do que os códigos de mascaramento da política.
Noticiar é informar de forma objetiva, imparcial e independente, e assim também contribuir para deter ou mudar o rumo das coisas. Há um quê de missão na atividade jornalística que concorre com a política. É aí que a política se irrita e passa a ver comopartidária a imprensa. Não é por outro motivo que a cobertura de guerra — onde a política fracassa e muitas nações colocam seus destinos e sua honra — ainda é a fonte das grandes reportagens e do grande repórter.
Quando faltam relevantes questões políticas imediatas — fruto até da evolução da sociedade — a verdade é tratada como o êxito de uma ideia de quem detém um produto, o poder ou a autoridade. Fato constatado tanto na relação entre imprensa e publicidade existente nas empresas de comunicação quanto no elo entre política e propaganda que prospera nos palácios. Na indústria da política, a mercadoria nem sempre é a verdade e a justiça, mas a uniformização da opinião sobre as duas.
Em um mundo de superabundância na concorrência das mercadorias, muitas vezes a profusão da publicidade é inversamente proporcional à qualidade dos produtos anunciados.
Há mais propaganda de carro ruim do que de bom, não por acaso. Mas ali, a defesa dos consumidores, cada vez mais cidadãos com direitos, cuida de se autorregular e deter a propaganda enganosa, abusiva, desleal, bem como a formação de monopólios ou práticas de dumping, em busca de uma superioridade moral para a velha e necessária atividade comercial.
Ouso mesmo vislumbrar a abertura democrática na China vindo mais pelas mãos da concorrência comercial do que pelo fim da censura à imprensa.
Até agora, coisa impossível em Cuba que não tem nenhuma das duas. No Brasil as leis comerciais estão mais avançadas do que as leis políticas: se posso devolver uma geladeira com defeito porque não posso devolver um político estragado? O princípio organizatório da troca invadiu a política quando cresceu a dissociação entre política e ideal, e o exercício do poder perdeu a universalidade, transformando-se em administração de pressões e recursos para aliados. Com isso, alargou a distância entre a opinião pública, os partidos e a gestão do Estado, de um lado, e as organizações civis independentes, do outro. Por instinto deliberdade e autonomia, e fiel ao seu código fonte, aumentou ao mesmo tempo a afinidade entre a imprensa e a sociedade civil, suas redes. Isso acendeu um alerta nos agentes do Estado, sempre desejosos de capturar e colonizar a sociedade. Primeiro nasceram as mídias dos poderes em profusão e autoelogio. Mas o poder é insaciável — em qualquer tempo e lugar — e o que se viu a partir de então foi o avanço da cooptação das ONGs e o enfrentamento com a imprensa, agravando o provincianismo, a intervenção reguladora sobre todas as esferas e a defesa estridente de interesses específicos; deu na democratização fragmentada por agendas grupais e não negociáveis, o que nem sempre significa melhoria da democracia, combate à desigualdade, diminuição da violência.
O melhor da liberdade são seus excessos, desde que mediados pela criação de regras de autorregulação e responsabilização, considerando a lógica da ordem jurídica e o interesse de cidadãos livres. Mas dispensada a ordem unida que vem do Estado.
Autorregulação... tá vendo? Isso é uma mensagem cifrada de apoio ao Globo ou o quê? Na verdade, faria mais sentido se esse artigo fosse publicado no site do instituto Millenium. Falou mal de Cuba, comparou política a geladeiras estragadas... Faltou só defender sanções contra o Irã e pregar o voto em Marina Silva... Quanto a "o melhor da liberdade são seus excessos", afrase ficaria melhor na boca de Sid Vicious, baixista do Sex Pistols. Isso é o quê? Elogio ao crack?
Pois o estatal pela sua força e influência precisa também ser regulado. É preciso rejeitar a ideia de uma sociedade homogênea e continuar a avançar pelas contradições e complexidades, especialmente em países de democracia tardia como a nossa.
Ah, o estatal precisa também ser regulado? Pensei que o sufrágio universal, os tribunais de contas e a Constituição tivessem essa função. Delgado defende, todavia, que Ali Kamel, ele sim, seja o supremo juiz do Leviatã estatal. Se a notícia constrói ou desconstrói poderes essa é a medida mesma da liberdade da imprensa e da qualidade da democracia — sempre oposta ao poder e sua indústria da euforia movimentada segundo conveniências políticas.
Tá certo. A notícia, mesmo mentirosa, pode tranquilamente destruir governantes eleitos. Isso é muito democrático. Dêem logo uma arma para o Otavinho e mandem ele plantar-se, com aval da Justiça, na porta do Palácio da Alvorada.
PAULO DELGADO é deputado federal (PTMG).
Acesse www.oleododiabo.blogspot.com
Um comentário:
Que bom que você postou o artigo do Paulo Delgado também. Lendo ele pude perceber que talvez você não o tenha entendido mesmo.
Eu também quero trocar meu político se ele vier estragado, isso se chama parlamentarismo meu caro.
Nada no artigo se assemelha com qualquer tipo de ingenuidade ou bom-mocismo. Apenas defesa da liberdade.
Aliás, muito bom o artigo do Delgado. Imprensa e sociedade livres é também o que desejo. O Estado que punha pessoas em manicômios e o mesmo que pode se dar o poder de trancafiar a liberdade de expressão! Isso não é correto para dizer o mínimo.
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