agosto 10, 2010

A crise dos vínculos de confiança (I)



A crise dos vínculos de confiança (I)

         Este foi o tema que me foi confiado pelo Conselho Regional de Medicina-AM, como parte da programação de um Fórum de Entidades Médicas Norte-Centro Oeste, ocorrido em Manaus no mês de julho de 2010. Eis um fato social tão atual, cujo entendimento só é possível dentro de uma narrativa analítica histórica.

         É preciso reconhecer que a crise dos vínculos de confiança não é indissociável dos caminhos e descaminhos do mal-estar na contemporaneidade. Para tanto, é necessária a análise de algumas das formas de subjetividades produzidas na sociedade atual.

É fundamental destacar alguns impasses na leitura das subjetividades contemporâneas, para que possamos avaliar a ressonância dessa crise. Para tanto, como diria o antropólogo Alfredo Wagner, é necessário fazer emergir uma cartografia do mal-estar, onde os conceitos de dor e sofrimento são cruciais, na medida em que são instrumentos fundamentais de leitura quando se propõe a identificar as novas formas de subjetivação.

Esta é uma tarefa eminentemente interdisciplinar, se quisermos conjugar esforços para empreender uma leitura mais complexa da crise em seus diversos níveis. Aqui, para o êxito da tarefa, é fundamental aproximar a medicina de outros discursos teóricos, como a psicanálise e aqueles oriundos do campo das ciências humanas e da filosofia. Os que caminham fora da ótica interdisciplinar perderam o bonde da história.


Uso como fonte de pesquisa a obra do eminente professor Joel Birman, do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro: “Arquivos do mal estar e da resistência”.

No capítulo “Servidão e Modernidade”, o autor chama atenção para a expressão servidão voluntária inventada por La Boétie, no século XVI. Nunca mais ela nos abandonaria e deixaria em paz, e enigmaticamente passou a interpretar a condição humana.

Para Joel Birman, a expressão, em sua opacidade intrigante e materialidade persecutória, demandou leituras que explicitassem o seu ser e suas conseqüências para a existência humana. Desde então, foram postos em discussão os pressupostos éticos da condição humana.

Ao longo do tempo, submetida a contínuas e diferentes leituras, em diversos contextos sociais e culturais, desde sua emergência ela revelou um enorme fôlego para perdurar em nossa memória.

Na verdade, segundo Joel Birman, essa condição antropológica nos acompanha desde o Renascimento, quando a revolução astronômica sepultou a concepção geocêntrica do cosmo e o universo passou a ganhar a dimensão do infinito. O homem, liberto da tutela divina e do aprisionamento teológico, se viu pela primeira vez como potência constituinte do mundo.

Foi assim que, através do trabalho incansável da razão e da ciência, o homem conseguiu realizar a crítica contundente da autoridade da tradição, formulou critérios de existência fundada no registro autoral do pensamento, livrou-se dos deuses pela assunção da razão e descobriu sua condição de servidão. No entanto, não uma servidão qualquer, mas aquela que evidencia a marca da vontade humana.

Simplificando: somos servos e assujeitados, mas o somos por deliberação humana, posto que a servidão é, como diz o nome, voluntária. Segundo o poeta Simão Pessoa, ele já viu muita gente boa por fim à vida, incapaz de conciliar as dores e delícias dessa dualidade. Mas isso é só o começo da história da condição humana moderna.

Manaus, Agosto de 2010.
Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental

Nota do blog: Artigo publicado no jornal Amazonas em Tempo, no caderno Saúde & Bem-Estar.

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