agosto 23, 2010

A crise dos vínculos de confiança (II)


 A crise dos vínculos de confiança (II)

Examinemos a consistência lógica do paradoxo contido na afirmação do psicanalista Joel Birman, em “Arquivos do mal estar e da resistência”, para quem se somos servos e assujeitados, o somos por deliberação própria. 

Ele mesmo declara que, na questão da servidão na modernidade, o paradoxo aí não é um enunciado da ordem da contradição. Esta seria solucionada e superada pela astúcia da razão dialética. E que foi no seu próprio estatuto de paradoxo que a servidão voluntária vingou como brasão na modernidade.

Segundo Birman, a servidão voluntária contém um paradoxo porque seu enunciado não se harmoniza com o sonho prometeico do homem moderno. Recordemos o que diz o mito grego.

O sonho de Prometeu era permeado pelo desafio e pela liberdade. Foi pela rebelião os contra os deuses e pela assunção da razão que ele virou herói da primeira modernidade, sendo alçado à condição de símbolo dos tempos modernos.

Muito bem. Ocorre que o sujeito moderno interpretou sua condição antropológica como sendo da ordem da servidão.  Significa dizer que entre a Antiguidade e a modernidade houve uma transformação radical do seu registro: de involuntária, a servidão transmutou-se em voluntária. Ora, transformar a raiz da servidão não se faz sem conseqüências, afirma Birman.


Se antes tínhamos um mundo regulado pela religião e pela teologia, em que se fundamentava a condição humana? Na onipotência divina. E a esta, como sabemos, os antigos a ela se assujeitavam involuntariamente.    

Diferentemente, no mundo moderno, do homem empreendedor, centrado na razão e no discurso da ciência, a servidão se dá de maneira voluntária. Para Birman, trata-se de um dos efeitos da construção de Estado moderno e do poder absoluto em que a nova ordem está centrada no registro do político. E, neste registro, a dominação sobre os homens dá-se pela mediação da vontade daqueles. 

Eis o que afirma o autor: “A emergência do registro político, na sua autonomia e individuação em face do registro religioso, comprometeu necessariamente a vontade humana na sua produção e reprodução”. Aqui é pela vontade que o sujeito humano se inscreve na nova arquitetura do poder, transformando sua antiga condição de servidão, de involuntária em voluntária.

         Joel Birman nos adverte de que é verdade que a construção do estado moderno, no período absolutista, deu-se, ainda sob a caução teológica, para concluir, no entanto, que a dimensão da vontade humana já estava em cena, posto que a servidão humana tinha a marca da vontade dos sujeitos. 

         Só mais tarde as utopias libertárias permeariam a modernidade valendo-se da liberdade como operador da vontade dos sujeitos. Basta lembrarmos os movimentos sociais que abalaram o mundo, como a revolução francesa, lançando por terra o Antigo Regime e os privilégios do poder monárquico.

         Foi com o filósofo Kant, teórico do desejo da liberdade contra o da servidão, que ficou caracterizado de maneira eloqüente a condição humana em oposição ao determinismo da natureza. Enfim, através do exercício da liberdade, o sujeito dialogaria com a lei moral e se submeteria aos imperativos desta.

         Mas, adverte Birman, fechado esse registro da história, quando tudo parecia indicar o fim da servidão, seja voluntária ou involuntária, o que veio em seguida nos mostrou que a humanidade tomou outro rumo: as relações do sujeito com a liberdade e com a servidão eram muito mais complicadas e paradoxais do que se acreditava anteriormente. 

         No próximo artigo, abordaremos a questão da disciplina e da servidão no regime democrático.

Manaus, Agosto de 2010.
Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental

Nota do blog: Artigo publicado no jornal Amazonas em Tempo, no caderno "Saúde & Bem Estar".

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