agosto 19, 2010

Gê Martú, um dos mitos do teatro brasileiro

domingo, 15 de agosto de 2010


Nos braços do teatro



O 28 de julho de 2010 não vai sair mais da cabeça de Gê Martú. É uma data de superação de um trauma. Há quatro anos, um médico lhe deu uma sentença, que lhe parecia de morte. “O senhor não vai mais fazer teatro.” O ator de carreira tremeu, chorou e emendou bloqueios. Não conseguia mais decorar um texto nem enfrentar um ensaio. Pois bem. Naquela quarta-feira, no Centro Cultural Banco do Brasil, ele pisou no palco para homenagear Procópio Ferreira, no projeto Mitos do Tea tro Brasileiro, e ser lisonjeado. O texto fazia uma autorreferência à trajetória de contrarregra e ajudante que varria teatro para assistir às peças. Na cena, limpando o tablado onde Procópio tinha acabado de se apresentar, ele ouve uma voz. “Vem Gê, larga tudo aí no Rio, vem ver o teatro florescer na nova capital.


Ana Clara Brant
Kléber Lima/CB/D.A Press

Paulo de Araújo/CB/D.A Press - 23/7/10

Por que o senhor se afastou dos palcos?
Tive um problema respiratório sério. Por causa da asma, ou asmada amante como eu a chamo. Ela gostou tanto de mim que pegou meu coração, implantou um pepino, que é o marca-passo. Ela me ama (risos). Então, eu fui internado e fui parar na UTI. Eu tinha saído da UTI e meu médico disse que eu estava proibido de fazer teatro. Fiquei em estado de choque. Aí, perguntei a ele: “O senhor quer me matar? Mal me tirou da UTI e est á querendo que eu volte pra lá?” E ali eu comecei a chorar compulsivamente. E talvez tenha sido isso que deu bloqueio na minha mente. Eu tinha que evitar estar no teatro, por causa dos ácaros. Eu ainda com efeito do remédio, a minha mente entendeu aquele aviso como um bloqueio. E eu passei a então a não decorar texto. Comecei a ter dificuldade, e fui consegui agora com esse projeto Mitos do Teatro Brasileiro.


Como foi esse retorno aos palcos?
Eu entrei em pânico. Eu estava muito tenso por estar no palco. Depois de praticamente quatro anos afastado e voltar com um texto que foi feito praticamente pra mim, e contracenar com o Jones Schneider... E tive pânico de dar branco, de fugir e não poder explicar isso. Não só ao público, mas aos organizadores do projeto que estavam me homenageando. Então era um pavor já nos ensaios. Uma amiga minha, a Vilma Bittencourt, me levou a um fitoterapeuta e ele me passou floral de Bach. No dia da estreia, em vez de tomar flora, que eu  esqueci em casa. Eu faço nebulização por causa da asma, ou asmada amante como chamo. Então tomei 25 gotas de um remédio que provocou uma tremedeira. Achei que era por causa do nervoso, e não era. Quando eu vi, eu já estava no palco finalmente, e pude até relaxar.


E quando o público se levantou e aplaudiu o senhor de pé?
Não tinha visto a plateia durante todo o espetáculo. Também fiquei surdo, mas foi incrível. Ouvi um barulho no fim, depois me disseram que o público todo se levantou, aplaudiu de pé. Mas como eu sempre digo, ninguém tira o pé para aplaudir. Aplaudir de pé, todo mundo faz. (risos). Aí veio o diretor falar comigo e aí a ficha caiu. Ele me disse: “Você viu como foi acarinhado pelo público”. Eu não vi realmente, mas senti. Aquele energia que o público passa para gente. Que é diferente do cinema, da televisão. Enfim é um marco inicial na minha carreira de novo em Brasília. Eu fiz teatro a minha vida inteira e de repente, em 28 de julho de 2010, eu renasci para o teatro (emociona-se)


O que passou pela sua cabeça nessa hora?
Gente, eu consegui. Eu tive toda a consciência no palco, de estar interpretando um texto, mas queria estar mais à vontade. Mas saiu. E agradeço muito de confiarem em mim, me dar isso de presente, porque eu fui homenageado. Eu e Procópio. Nunca pensei em estar tão perto de Procópio. Mesmo no Rio, quando fui assistir às peças dele. Eu na plateia e ele no palco. Senti junto dele. Teve cenas que parecia que eu estava atuando ao lado dele, falando com ele. A voz até embargou naquele momento. Eu até chorei. Chorei por dentro, como se tivesse arrebentado todo ali.


O senhor é um ator que precisa de diretor?
Eu tenho que ser claro que eu não posso deixar de ser dirigido. Eu preciso de diretor. Eu não me autodirijo. O pior da minha situação são as pessoas não acreditarem que eu sou frágil, que eu sofro, ao pisar no palco. Que eu tenho medo de errar. Imaginam que, pelo fato de eu ter toda essa carreira, essa estrada toda, eu não sou frágil. E eu sou, gente!


Acha que Brasília respeita o senhor e tudo o que construiu até agora?
Sim. Eu sempre ouvi, mas nunca tive a confirmação. Achava que era invenção do povo. E não. Eu vi. A partir desse dia 28, eu fui realmente acarinhado. Então há um respeito. Desculpem, Procópio Dulcina, Nelson Rodrigues, Cacilda Becker e Sergio Britto, mas eu também agora me considero um mito. A partir daquele momento, eu vi real mente que há um respeito pelo meu nome, minha trajetória. O sentimento é tão grande que não tenho palavras pra explicar o que eu sinto.


Agora é um retorno mesmo? Quais são seus projetos?
Luciana Martuchelli quer que eu faça um trabalho com ela, que é o João de Ferro, espetáculo com sua direção. E mais um filme que ela pretende rodar. Eu estou convidado pelo Sérgio Lacerda para fazer um filme chamado Hereditário, que vai estrear em 2011. Estou dirigindo Insigth, que é um mix de teatro e ópera com a Vilma Bittencourt.


Foi difícil vir pra Brasília?
Eu morava em Copacabana, numa área chamada Peixoto. E moravam ali várias pessoas ligadas ao teatro. Domingos Oliveira, Leila Diniz, e eu frequentava esse meio. Estava sendo descoberto no meu trabalho como ator. Eu não tive o prazer de ser descoberto. Mas eu não tive o prazer de fazer os personagens da minha idade. Os de 18, 15, 20 e poucos, porque eu era jovem, mas careca. E não ganhava papel. Eu era r apaz, mas só interpretava velho. Mas nem com peruca? Diziam que não, eu era bom ator, mas peruca só para o Rubens de Falco, só ele podia usar e ninguém dizia que era peruca. Papéis mais velhos foram o meu forte. Isso me deu uma credibilidade e um suporte grande para chegar onde eu cheguei. E cheguei em Brasília, no fim da década de 1960, eu comecei a ensaiar, conhecer as pessoas e tinha uma bagagem maior do que as pessoas que estavam aqui. Então, eu era aquele profissional. Mas sem dizer para a s pessoas que eu era profissional. Não. Eu nunca disse isso. Eu estava começando como eles. Uma coisa fundamental, eu não pertenci a grupo nenhum em Brasília. Eu quis pertencer a todos, tive o prazer de contracenar com grande parte dos atores e diretores da cidade.


A adaptação foi tranquila?
No Rio, eu ficava em cartaz por um ano. Quando vim a Brasília pela primeira vez , na produção de Leny Andrade e Peri Ribeiro, ajudando como contrarregra, acabei fazendo uma peça infantil, em que eu fazia o Coelho Juju, nas festividades de inauguração da Martins Pena. Então fiz o primeiro trabalho sem pertencer a Brasília. Aqui, aliás, eu conheci a atriz Gisele Lemper, que viria a ser a mãe da minha filha, Luciana Martuchelli. Mas eu não gostava de Brasília. Vivia num mundo agitado e aqui, como dizia Roberto Carlos, era uma grande fazenda iluminada. O que eu queria aqui? Daí, a um ano Gisele me liga avisando que nossa filha nasceria… Nesse momento, o MEC meu deu cinco anos para ficar em Brasília. Então, eu vi porque a vida seria melhor para criar a minha filha. Tinha um apartamento funcional com dois quartos, enquanto no Rio eu morava numa quitinete, que ainda dividia para ajudar na renda. Aqui, eu colocava 40 pessoas em casa para ensaiar, tinha cozinha com água quente e elevador para descer numa quadra maravilhosa, que é a 107 Norte, onde fui um dos primeiros moradores. Pensei: tenho uma filha e como sair daqui? O nascimento de Luciana contribuiu para que eu ficasse em Brasília.


Na cidade, o senhor protagonizou espetáculos históricos como Bella ciao, um sucesso que até hoje está na memória das pessoas. O que vem à mente desse momento?
Quando eu conheci a Oficina do Perdiz e cheguei naquele montão de ferros distorcidos, brinquei. “Gente, eu sei fazer teatro na Sala Martins Pena, e não na Martins Espelunca. Gente, o Perdiz ouviu esse comentário e saiu de onde se encontrava para me bater. O clima ficou pesado e passei a olhar aquele proje to com desconfiança. Até que o Mangueira Diniz e o Francisco Rocha fizeram uma adaptação de Bella ciao, que ficou um ano em cartaz. Uma loucura. Eu falava italiano e, ao mesmo tempo, traduzia. As pessoas estavam bem perto da gente. Tinha uma cena na cozinha que a Lucinaide Pinheiro preparava uma macarronada. Havia uma briga e o povo saía correndo achando que voaria macarrão nele. Era um teatro itinerante, a gente caminhava com os espectadores por dentro da oficina. Ganhei até prêmio de melhor ator.


Quem matou a Oficina do Perdiz?
Os políticos. Os sucessivos secretários de Cultura. É lamentável, mas a Oficina do Perdiz está morta. Eles são os assassinos. Teriam que reestudar toda a política cultural brasileira. Deveria ser uma política de estado e não de governo. Se desse certo o projeto, não poderia mais acabar com a mudança de secretariado.


Está mais fácil ou difícil fazer teatro?
Nunca vi dificuldade ou facilidade, depende de cada um de nós. Se quiser fazer um trabalho maior, é difícil Mas o que mudou é a plateia, que está mais esclarecida, mais consciente. Há mais escolas de teatro, mais faculdades… O povo es tá indo ao teatro. Agora, fui reconhecido na rua por um senhor que gostou do Procópio e por uma senhora, na Rodoviária, que viu minha pequena participação na homenagem a Dercy Gonçalves.


O senhor é um ator bem requisitado para o cinema…
Hoje, eu respiro e penso cinema. Quando estava ensaiando para o teat ro, eu via os diretores como câmeras. E você não pode mentir para câmera, porque ela colhe a verdade. Aprendi a fazer cinema em Brasília, em 1982, e fui muito requisitado. Vim com a bagagem grande, como figuração nos filmes da Atlântida. Além disso, fiz 78 programas da TV Tupi e Globo para o Mobral. Decorava com dálias (colas do texto espalhadas pelo set sem que o público perceba). Tudo era anotado e seguia lendo e a câmara pegando. Todos achavam fantástica a minha facilidade de ler e me posici onar diante a câmera… Isso me ajudou muito aqui nos sets brasilienses.


Foi natural a Luciana Martuchelli seguir a carreira artística?
Acharia estranho, se não fosse. Desde pequenina, era uma exibida, cantava, dançava e rebolava. Dizia Gê é artista; Gisele é artista. Não chamava a gente de pai e mãe. Quem quis cortar esse barato foi a professora. Então, eu fui lá e disse. Deixe ela chamar a gente como quiser. Ela tinha 8 anos e dirigia teatro na escola escondida da gente porq ue tinha medo de não acertar. Ela deu uma entrevista nessa idade a uma revista. Na casa da minha sogra que morava em Taguatinga, ela fazia cenário, figurino, dirigia as colegas. Não forçamos a barra, mas dizíamos que essa era uma estrada pouco segura. 

 

"O pior da minha situação são as pessoas não acreditarem que eu sou frágil, que eu sofro, ao pisar no palco”

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