PICICA: "Em árabe, tahrir quer dizer “libertação”."
Na Praça Tahrir, por Wendell Steavenson
By Bruno Cava– 02/03/2011
Por Wendell Steavenson, na New Yorker (28.02.2011) | Tradução: Bruno Cava
Em árabe, tahrir quer dizer “libertação”. A Praça Tahrir foi batizada depois do golpe de 1952, que depôs o Rei Farouk e reconfigurou o poder pelo mundo árabe. A praça é um vasto espaço aberto, adjacente a empoeiradas e tumultuadas ruas e ao apertado emaranhado de travessas e becos do centro do Cairo — outrora um distrito central chique, mas decadente desde que a maior parte da elite se mudou para os subúrbios.
Ao redor da Praça Tahrir, erguem-se várias construções imponentes, que quase parecem formar um diagrama da vida egípcia. No canto norte, está o Museu Egípcio, abrigando um tesouro faraônico de milênios. A oeste, fica o moderno complexo do escritório central do Partido Nacional Democrático (PND). Ao sul dele, a sede da Liga Árabe que, noutros tempos, alimentou as esperanças do movimento pan-árabe, mas agora é considerada um lugar moribundo, de muita falação e pouca ação. No lado leste da Praça, situa-se o antigo campus elegante da Universidade Americana no Cairo, em parte construída a partir de um palácio otomano do paxá, no século 19. No canto mais ao sul, se localiza a mesquita de Omar Makram, onde se realizam os funerais do estado, e o Mogamma, um robusto edifício construído no começo dos anos 1950, como presente da União Soviética. O Mogamma aloja uma vasta burocracia — escritórios da receita, da imigração e de trânsito, bem como cartórios —, cuja lógica labiríntica é notória junto à população egípcia. A um quarteirão da Praça, numa rua lateral, está a Embaixada Americana, uma das maiores missões diplomáticas dos EUA, e lembrete da ajuda de US$ 2 bilhões, dos quais US$ 1,3 bi em patrocínio militar, que fluem a cada ano ao país. Três grandes hotéis — o Ramsés Hilton, o Nilo Hilton e o SemiramisIntercontinental — cercam a Praça, recebendo alguns dos 12 milhões de turistas que contribuem com fatia significativa da economia egípcia.
O camareiro que me mostrou o quarto no Semíramis brincou: “Trabalho aqui há 20 anos e é a primeira vez que alguém me pediu um quarto com vista para a cidade. Sempre as pessoas chegam desesperadas por uma vista para o Nilo.” Por muitos dias, a praça esteve lotada de multidões exigindo o fim do regime do presidente Hosni Mubarak. Do hotel, era possível ver a fumaça subindo das paredes enegrecidas do quartel-general do PND, que os manifestantes incendiaram em 28 de janeiro, na Sexta da Ira. O edifício continuou fumegando por dois dias.
Favelados e patricinhas, militantes e “despolitizados”
Na praça, havia trabalhadores vindos das favelas, com sapatos quebrados; professors universitários; ex-militares; patricinhas da classe-média alta com longos cabelos negros e óculos escuros Fendi; padres coptas e imãs; membros do PND. Todos queriam ser ouvidos. “Com licença, jornalista estrangeiro?” diziam, polidamente parando-me. “Tenho algo a declarar!” Conversei com um militante que trabalhava na Vodafone. “Existe uma consciência coletiva”, disse. “Mesmo depois que os celulares se foram” — o regime desligou toda a telefonia celular e o serviço de internet por vários dias — “havia uma espécie de telepatia nacional dizendo para onde ir”. Dia após dia, eles reuniram o ímpeto da revolução, inspirados por seu próprio atrevimento, mas com cautela diante dos tanques dispostos permanentemente no perímetro da Praça.
Em 30 de janeiro, assisti a uma coluna de tanques avançar à praça. Manifestantes bloquearam o caminho deles, enquanto dois caças F-16 zumbiram, barulhentos e intimidantes, acima de todos. “O povo e o exército são um só!”, as massas entoavam, escalando os tanques, pichando “Fora Mubarak!” nas laterais, e falando diretamente com os soldados.
“Somos seus irmãos”, as pessoas diziam.
“Não vamos ferir vocês”, um soldado respondeu.
“Vocês vão atirar na gente?”, alguém perguntou. “Vocês vão atirar se receberem a ordem, não é?”
“Não”, um soldado replicou. “Eu nunca faria isso. Nem mesmo se for dada a ordem.”
No impasse entre o regime e os manifestantes, o exército se tornou um fator crucial. O exército egípcio instila enorme respeito entre os civis. As forças armadas têm sido há tempos a instituição mais forte do país. Ela controla não apenas a defesa e a segurança, mas também muitas atividades econômicas, incluindo fábricas, projetos de habitação e construção de estradas. Com o passar dos dias, as multidões em Tahrir cresciam e Mubarak procrastinava, e eu tentei compreender o papel do exército.
Já deram o recado agora vão embora, exige general
Havia algo de surreal nos tanques estacionados na praça. Poucos exércitos gostam de ser colocados na rua para restaurar a ordem pública, e os tanques não estavam acompanhados por qualquer infantaria. Falei com George Ishak, o cabeça do movimento de oposição Kefaya (“Basta!”), que disse: “Acredito que as forças armadas vão proteger-nos.” Ele também se perguntava por que o exército não havia contido os manifestantes mais eficazmente. “Não sei por que”, disse, “mas eles estão um pouco leves — delicados.” Ele esfregou um dedo no polegar, como se sentisse um pedaço de roupa: “Eles encaram as pessoas de um modo muito gentil”. E também disse: “Os militares são uma caixa preta, ninguém sabe o que acontece internamente.”
No dia seguinte, escutei por acaso uma conversa entre membros da multidão e um tenente-coronel parado ao lado de um tanque, que bloqueava a entrada do Ministério do Interior.
“Quanto tempo você vai ficar aí?”, perguntaram.
“Até vocês, rapazes, se acalmarem”, respondeu. Ele parecia um pouco frustrado com sua missão. “Pessoal, vocês estão indo longe um pouco demais. Vocês estiveram quietos por 30 anos e para eles isso significa que estavam contentes. Agora vocês se expressaram. Vocês já deram o recado, mas agora vão rasgar o país em pedaços.”
O soldado estava preocupado. Talvez tenha visto, como o regime dizia às pessoas na TV estatal, uma conspiração islamista ou estrangeira. Alguém na multidão ofereceu a ele uma garrafa d´água.
“Gostaria de saber de onde vem toda essa coisa”, ele disse. “De onde vem o dinheiro? A quem interessa tudo isso?”. Ele estendeu o braço em direção à imensa ocupação na praça.
A carga de camelos e cavalos pró-Mubarak
A fase mais violenta da revolução veio em 2 de fevereiro, quando os manifestantes mantiveram a posição numa vitória decisiva contra grupos leais ao regime. De tarde, uma massa pró-Mubarak, com vários milhares de pessoas, forçou caminho para dentro da praça. A certa altura, houve uma carga de cavalos e camelos. Ao longo da tarde, os manifestantes empurraram a multidão mubarakista de volta para o perímetro, investindo diretamente contra ela com pedras. No anoitecer, vi soldados dispostos numa entrada da praça, perto da Ponte Qasr al Nil, esconderem-se em seus tanques, que estavam estacionados entre os manifestantes e a multidão pró-Mubarak, e então trancaram as escotilhas. Os tanques formavam uma linha fronteiriça, ao longo da qual os mubarakistas provocavam os manifestantes. De repente, pedras começaram a voar nos dois sentidos. Há nove vias e numerosas travessas que levam à Praça Tahrir, e praticamente todos os pontos de acesso encontravam-se sob assédio: parecia um espaço impossível de ser defendido. Ainda assim, nas horas seguintes, assisti aos manifestantes manterem a posição que eles tanto lutaram para ocupar cinco dias antes.
Os manifestantes arrancaram pedras dos calçamentos da praça e pedaços de metal das cercas usadas numa obra próxima, para uso como escudos. Às vezes, a batalha ficava inteiramente turvada pela poeira, e se podia ouvir somente o som das pedras batendo nos tanques estacionados. Massas flamejantes de lixo foram arrastadas pelas ruas, deixando rastros de fogo, que os manifestantes tentavam apagar. Perto das oito da noite, os manifestantes dispararam uma saraivada de pedras, como fogo de cobertura, enquanto uma vanguarda avançou e perseguiu os mubarakistas, pela curva de acesso e na rua diretamente abaixo de minha sacada. O grupo pró-Mubarak dispersou, alguns buscando proteção na entrada de uma construção abandonada, aparecendo apenas para atirar projéteis em chamas sobre os manifestantes que avançavam. Nas horas seguintes, o grupo mubarakista recuou para lugares escuros fora da área. Rapidamente, os manifestantes erigiram uma barricada com placas de sinalização e pedaços de metal das cercas. Sempre que um grupo pró-Mubarak reaparecia em algum ponto de acesso, os manifestantes batiam metal com metal, e assim convocavam reforços do coração da praça.
A praça é nossa!
No amanhecer no dia seguinte, a Praça estava dominada. Era como se as pessoas não acreditassem no que havia acontecido. Caminhei à praça através dos tanques, suas pinturas riscadas aonde as pedras haviam batido. Um militar, cansado e com barba por fazer, estava na escotilha lendo o jornal da manhã e falando no celular. Perguntei porque os soldados não haviam intervido na noite anterior.
“O que poderíamos fazer?”, ele disse. “Afinal de contas, não iríamos atirar nas pessoas. Eles estavam atirando coquetéis Molotov uns nos outros. Um por acaso pousou na gente.”
Ele apontou para uma parte chamuscada.
“E o que vai acontecer hoje”, perguntei.
“Espero que seja mais pacífico, mais quieto”, ele disse, como todo soldado espera a cada manhã. “É nosso país e devemos temer por ele.”
Ao redor de nós, homens estavam preenchendo sacos com entulho do pavimento e aferrando-os às barricadas, para a hipótese de novos ataques. Outros dormiam, enrolados em camas e cobertas floridas. Muitos tinham a cabeça enfaixada e os narizes tamponados, ou estavam mancando ou tinham braços com tipóias. As pessoas tinham amarrado vários pedaços de papelão na cabeça com elástico, e também usavam caixas de isopor ou baldes de plástico como capacetes. No extremo norte da praça, perto do Museu Egípcio, a batalha durou a noite inteira e ainda havia embates. Eu pude ver um arco de pedras subindo depois da barricada, feita de destroços de metal e carros virados e queimados.
Um grupo de manifestantes passou, gesticulando e gritando; um funcionário das forças policiais havia sido identificado. “Não devolvam ele! Devemos ficar com ele!”, um manifestante berrava. “Não!”, alguém gritou de volta. “Vamos amarrá-lo na barricada!”. Mas o homem foi levado embora, e reparei como manifestantes eram cuidadosos em protegê-lo do espancamento que outros da multidão pretendiam submetê-lo.
Comecei a falar com um farmacêutico que tinha ficado junto do grupo de médicos da linha de frente, apoiando os feridos. Seu nome era Sherif Omar e tinha 30 anos, com olhos suaves e um cabelo ondulado negro. Seu casaco branco estava coberto de sangue. “Estou parecendo um açougueiro!”, ele disse e riu. À noite, ele participou de uma unidade móvel de campo, indo e voltando em função da frente de combate dos manifestantes. Perguntei sobre o número de feridos. “Não existem estatísticas”, disse. “Centenas eu posso garantir. Lá pelas quatro ou quatro e meia, nossos rapazes subiram na ponte e expulsaram os outros”. Ele apontou para a passagem atrás do museu, que era a última fortaleza do grupo mubarakista. Ele tratou queimaduras de coquetéis Molotov e segurou em seus braços duas pessoas que morreram com munição real.
Como superar o paradoxo militar
Enquanto conversávamos, um pelotão marchou ao nosso lado. A multidão entoava: “O povo e o exército são um só!”. O slogan se tornou um bordão importante da revolução. Os manifestantes pareciam tentar superar cantando o paradoxo ameaçador: eles exigiam a queda de um regime que, desde 1952, tem sido dominado pela elite militar.
Assim que os soldados passaram, Sherif me mostrou um tubo queimado de gás lacrimogêneo. Via isso como evidência que muitos dos mubarakistas estavam ligados aos serviços policiais e que haviam sido recrutados pelo regime. Ele chamava-os de mercenários, e disse que muitos dos tratados no hospital de campo tinham identidades de policial e notas de cem libras egípcias nos bolsos.
Nesse momento, o General Hassan al-Roweny, comandante do exército no Cairo, atravessou as barricadas cercado por soldados e pela polícia militar com boinas vermelhas. Veio em nossa direção e começou a repreender Sherif, agitando bruscamente as mãos. Disse que os manifestantes tinham que sair da praça, que todo aquele caos era trabalho de forças estrangeiras conspirando para desestabilizar o Egito. Sherif ironizou essa idéia, e então Rowendy foi em direção a um manifestante ferido, arrancou uma faixa de sua cabeça, falando: “Veja, é só um arranhão”. Vi uma poça de sangue seco na altura do cabelo do rapaz. Rowendy foi até outro homem, que tinha um chumaço de algodão preso a uma ferida no crânio, e deu outro puxão violento, mas desta vez o curativo não saía de jeito nenhum, porque estava muito preso ao sangue ressecado. Aí uma coisa estranha aconteceu. Roweny segurou o homem num abraço apertado e beijou-o à força no topo da cabeça, como se o homem fosse um filho relapso que ele simultaneamente amava e repreendia. Mais tarde, Sherif comentou: “Por que ele estava arrancando os curativos das pessoas? Agora ele tem que colocá-los de novo!”
Encontrei com Sherif freqüentemente na praça. Ele me disse que era de Alexandria, e que há sete ou oito anos, quando ainda estava na faculdade, decidira ignorar a política. Contou que, um dia, pegara um exemplar da Time e lera as manchetes sobre a Guerra do Iraque – Presidente Bush, Israel e Palestina, terrorismo. Então se apercebeu que a revista era de 1991. “Aí pensei comigo, são as mesmas notícias, tem sido a mesma política. Isso não vai mudar.” Agora, sentado ao lado de uma barraca na praça, cercado por centenas de milhares de pessoas exigindo o fim do regime de Mubarak, ele sorriu desdenhando de sua antiga apatia. “Agora eu tenho opinião. Agora eu estou falando de política.”
Para Sherif, o ponto da virada foi a Sexta da Ira, quando pessoas marchando à praça se depararam com a tropa de choque da polícia com cassetetes e munição de borracha e gás lacrimogêneo. Aquela fora a primeira manifestação anti-regime que ele já havia participado. “Na realidade, eu não estava muito a favor da saída de Mubarak, mas pela melhoria do sistema. Eu pensava, por que as pessoas estão tão radicais?” Mas a brutalidade da polícia naquele dia convenceu-o que o regime tinha que acabar. “Todo mundo estava tentando achar ar, e nessa hora eles viraram os canhões de água e nos bateram com os cassetetes. Eles batiam na gente pra valer sem dar nenhuma chance de retirada.” Sherif sofre de asma, e estava asfixiano. “Eu fiquei entre focos de gás lacrimogêneo por três ou quatro horas inteiras. Em certo momento, eu não conseguia respirar ou ver pra onde ia. Tinha um cara na minha frente na mesma condição, e ele me disse: ‘acho que morro hoje’. Eu acho que todo mundo se sentia assim.”
Nos dias depois do combate pela praça, o exército despachou mais soldados, e guarneceu várias entradas à praça com concertina. A impressão era que Cairo tinha sido dividida em duas realidades: dentro e fora da praça. Fora, a ameaça dos espancamentos pelos bandos mubarakistas era grande. Notícias e boatos circulavam sobre a polícia prendendo diversos advogados de direitos humanos, e que militantes e jornalistas estavam sendo detidos, e seu equipamento confiscado, pelos elementos policiais e pelo exército. Muitas pessoas, inclusive meu tradutor, Mohamed El Dashnan, um jornalista e tuiteiro dedicado, foram roubados por comandos de vigilantes. Grupos se organizavam para proteger as ruas locais à noite, quando a polícia simplesmente evaporou depois da Sexta da Ira, e muitos deles agora parecem aceitar a tese do governo que a crise era culpa de forças estrangeiras e de pessoas com notebooks.
República de Tahrir
Dentro, era a República de Tahrir, onde manifestantes estabeleceram uma espécie de utopia revolucionária. Assim que você atravessava as barricas pela Ponte Qasr al Nil, um funil de manifestantes dava as boas vindas e aplaudia e cantava: “Bem-vindo! Bem-vindo aos livres, que se uniram aos revolucionários!” A cena era indescritivelmente comovente. Não havia hierarquia formal na praça, e ainda assim as tarefas se dividiam: alguns guardavam as barricadas, outros acumulavam os entulhos em pilhas, e outros revistavam as pessoas atrás de armas. As pessoas traziam alimentos e água e remédios à praça e distribuiam-nos de graça. “Nós estamos nos preparando!”, me disse um militante que havia batizado a sua barraca de Motel da Liberdade, incrédulo do número de pessoas fluindo à praça. “Qual foi a última vez que você viu os egípcios se preparando?”, ele disse. Perguntei a uma jovem voluntária com um lenço florido na cabeça se ela estava com alguma organização em particular. “Não estou com ninguém”, me respondeu com simplicidade, “Eu estou com o povo.”
“Está ficando mais complicado a cada momento”, me falou Sherif num certo ponto. “As soluções que exigíamos há uma semana agora não são mais válidas. O céu da democracia está ficando mais alto.” Mais o regime resistia às exigências dos manifestantes, mais ousadas elas se tornavam. Depois de três dias de protesto, Mubarak se dirigiu à nação, e nomeou Omar Suleiman, o chefe da agência nacional de inteligência, como vice-presidente. Num segundo pronunciamento, Mubarak prometeu que ele não tentaria a reeleição em setembro, nas eleições presidenciais. Várias pessoas me disseram que achavam essas concessões adequadas; elas tinham aguardado 30 anos, podiam muito bem esperar mais seis meses. Mas a violência de 2 de fevereiro, que todos concluíram ter sido patrocinada por Mubarak, destruiu a confiança das pessoas nas promessas presidenciais.
Nabil Fahmy, o embaixador egípcio em Washington desde 2008, mal podia conter sua raiva quando falava em uma turba atacando os manifestantes. Perguntei a ele se era certo que aquela violência tinha sido planejada. Ele engasgou: talvez haviam simpatizantes genuínos de Mubarak entre eles, mas então se sentiu desencorajado a manter o raciocínio, diante da informação que não houve qualquer intervenção oficial para parar a violência. Como muitos egípcios, ele parecia estar lutando em apreender o sentido de eventos tão velozes, que abalavam as premissas e interpretações da elite do país, e preocupavam pela erosão de suas crenças tradicionais. “Isso tudo me fez perguntar o que a nossa geração e a geração mais antiga fizeram”, ele disse. Ele também falou sobre um certo momento em que percebeu a força e a determinação dos jovens militantes. No começo dos protestos, quando o regime impôs um toque de recolher, seu filho e um grupo de amigos estavam na praça o dia todo e voltaram a seu apartamento, só a dois quarteirões de distância, para descansar. Nabil convidou-os a dormir ali, mas estavam todos decididos a voltar à praça. Então lembrou-os que havia um toque de recolher em vigor. “Eles disseram: ‘e quem vai aplicar esse toque de recolher’? e falaram num tom tão autoconfiante e direto, que isso me atingiu em cheio, e me convenceu que esses meninos agora finalmente acreditavam ser donos do país.
Na praça, atrás de uma tela branca, uma agência de viagens estava abandonada, ocupada por membros do partido de oposição, que chegavam e saíam da praça. Vários políticos discursaram à multidão — inclusive Ayman Noor, que havia se candidatado como adversário de Mubarak nas eleições de 2005 e passado, logo depois, três anos preso. Mas seus discursos eram anódinos e causaram pouco impacto. A maioria das pessoas com quem falei na praça disseram não apoiar partido algum.
As pretensões dos islamistas
Na prece de sexta, fileiras de homens estenderam esteiras improvisadas para orar: jornais, toalhas, a bandeira egípcia, cartazes. Limparam as mãos no pó das pedras destruídas dos pavimentos, porque o Alcorão diz que se não houver água e você estiver no deserto, pode usar areia para limpar as mãos antes da oração. Quando tocavam o solo com seus cenhos, um pequeno disco de poeira se formava, grudando onde havia suor. Muitos egípcios são devotos, mas as pessoas em Tahrir especulavam que o apoio eleitoral à Fraternidade Muçulmana, o partido islamista oficialmente banido mas semi-tolerado, estaria somente entre 10 e 20%.
A Fraternidade Muçulmana tinha uma forte, porém não majoritária, presença na praça. “Nossa estratégia era participar do evento, mas não o liderar”, disse o Dr. Essam E-Erian, membro do Conselho Guia da Fraternidade, quando encontrei com ele na deteriorada sede da entidade, no terceiro piso de um prédio qualquer de apartamentos. Ele explicou que a Fraternidade assumiu essa posição passiva de modo que o governo não poderia utilizar o envolvimento deles como uma desculpa para a repressão. Apesar disso, ele e 33 outros Irmãos Muçulmanos foram presos por dois dias, durante o período dos protestos. El-Erian foi preso várias vezes na sua carreira, e numa delas cumpriu oito anos de cadeia. Ele gargalhou e disse que, desta vez, tinha sido sua detenção mais curta. Na noite de domingo, 30 de janeiro, assim que o Ministério do Interior parou de funcionar, os portões da cadeia foram abertos e ele saiu caminhando, livre.
Por décadas, a política no Oriente Médio tem sido retratada como uma escolha entre ditadores e islamistas, e El-Erian estava naturalmente se esforçando ao extremo para desmontar essa interpretação. Ele disse que a Fraternidade não lançaria candidato nas próximas eleições presidenciais ou disputaria qualquer participação numa eleição parlamentar, e falou em termos vagos de uma esperança que o Egito pudesse mover-se em direção a um estilo diferente de democracia — “outro modelo tolerante e moderado”. Os Irmãos Muçulmanos que eu conheci na praça expressavam uma mensagem similar, mas é difícil saber o que esse partido — banido por mais de meio século no Egito e demonizado fora dele — poderia fazer se tivesse o poder. A Fraternidade Muçulmana “tem uma visão de longo prazo para a sociedade, e ela tem sido muito consistente”, um diplomata ocidental me falou. “A política é somente uma parte dela.”
Enquanto o impasse continuava, os manifestantes se entricheiravam e se tornavam mais audaciosos. As pessoas fizeram uma mini-cidade de barracas e tendas, a partir de faixas de plástico e entulho. Vendedores instalaram fogareiros para fazer chá e penduraram metros de cabos elétricos para recarregar dúzias de celulares a cada vez. As pessoas rearranjaram as pedras empilhadas para montar slogans anti-Mubarak. Novos cobertores foram distribuídos. Havia uma abundância de cartazes feitos à mão. Os egípcios têm um senso fino de sátira. Um homem levantou uma placa que dizia: “Vá embora logo, meus braços estão cansados”. Porém, depois de décadas de repressão política, alguns manifestantes pareciam não ter idéia sobre que tipo de mensagem poderia ser adequada num cartaz. Junto de cartazes mais curtos e sagazes, havia placas com longos e intermináveis manifestos de descontentamento e exigências.
Revolução: Medo e apatia se transformam em revolta e alegria
“Existe a barreira psicológica do medo numa revolução,” me disse o romancista Alaa Al Aswany, completando que, uma vez essa barreira seja rompida, o processo se torna “irreversível”. Aswany, como muitos na praça, sofreu com o assédio policial. Apesar de sua reputação literária internacional, ele nunca foi publicado pelas editoras oficiais ou recebeu qualquer espaço na TV estatal egípcia, e o dono de um café onde ele se reunia com jovens escritores semanalmente foi ameaçado pela polícia. Aswany também exerce a profissão de dentista, e falou comigo em seu consultório, perto da Praça Tahrir. “O regime não consegue entender como é que podem pessoas amedrontadas por 30 anos, de repente, não terem mais nenhum medo”, ele disse. Contou-me que os manifestantes passaram a ironizar com um dos títulos de seus livros: “Porque os egípcios não se revoltam”, dizendo que ele deveria agora escrever uma seqüência: “Porque os egípcios se revoltaram”. Ele discursou às massas várias vezes. “Como escritor, eu escrevi muitas, muitas vezes a palavra “povo”, mas foi só agora, pela primeira vez na vida, que eu senti o significado da palavra “povo”. Ele me disse que está muito impressionado: “Eles são muito organizados, muito corajosos, muito civilizados, muito cuidadosos uns com os outros. Nós comemos na manifestação todos os dias e ninguém podia dizer exatamente de onde tinha vindo a comida. É como uma grande família. Eu joguei um maço de cigarros no chão e uma senhora de 70 anos recolheu-o e disse, ‘Dr. Alaa, por favor jogue o lixo no lixo, porque estamos construindo um novo país e tem que ser um país limpo’”.
Manual de sobrevivência em protestos urbanos
Encontrei um militante amigo de Sherif chamado Ramy Shaath. Meio palestino e meio egípcio, Shaath tinha estudado estratégia militar no King´s College, em Londres, e passou um tempo no Líbano e na Palestina durante a segunda intifada. Seu emprego formal era como consultor administrativo, mas ele acumulou experiência a respeito de barricadas e gás lacrimogêneo. “É só um hobby”, disse, sorrindo. O passatempo de Shaath tornou-o conhecido pelas autoridades. Ele me disse que, na Sexta da Ira, quando a polícia havia sido superada, ele estava tentando correr até o Mogamma e recuperar o arquivo secreto com seu nome. “Eu sei até em que sala está: no segundo andar, a última da esquerda!”
Na internet, Shaath e outros militantes juntaram idéias para enfrentar a tropa de choque. Ele enumerou várias táticas improvisadas: “Como usar vinagre e cebolas contra gás lacrimogêno. Coisas como: não usar água, use Coca-Cola para esfregar os olhos.” Referindo-se aos protestos na Tunísia, que recentemente depuseram o presidente de lá, ele falou: “Nós pegamos um monte de idéias da Tuníisa porque muitos tunisianos escrevem em blogues.” Na primeira semana dos protestos, ele dormiu cada noite num lugar diferente, e continuamente trocou seus números de celular. “Alguns dias atrás, eu parei”, me disse. Abriu as mãos em sinal de vitória com o desenrolar dos eventos. “Fim da história. Game over. O medo acabou!”
Tentei encontrar Amre Moussa, o secretário-geral da Liga Árabe e antigo ministro das relações exteriores do Egito. Junto com Nabil Famy e outros notáveis, ele se uniu a um comitê informal de “homens sábios”, que queriam ajudar a levar as exigências da juventude e do povo na praça ao vice-presidente Suleiman. Aos 74 anos, Moussa é vigoroso, erudito e encantador. Na praça, ouvi ele se mencionado várias vezes como um bom homem para liderar o país. As pessoas respeitam-no como um ancião estadista e independente. Moussa me disse: “A praça se tornou o lugar que se você não for, tera perdido um momento histórico”. Ele acreditava que o regime primeiro tentou sair da tempestade: “Talvez pensando que aqueles manifestantes ficariam cansados, e aos poucos dispersariam aos poucos, mas todo mundo viu que, naquela sexta, havia mais gente do que antes, quando tudo começou.” Agora os esforços na reforma não são mais uma extravagância, mas uma “questão de necessidade”.
A domesticação dos tanques de guerra
Nos dias após os choques, o exército tentou assumir o controle. O general Roweny poderia ser visto percorrendo a via em direção ao Museu Egípcio, atrás do que o exército havia montado seu quartel-general de campanha. Sherif me disse que naquele dia que Roweny estava arrancando os curativos, depois ele retornou com uma equipe da televisão egípcia e confrontou a mim e um grupo de médicos. O general disse-nos para irmos pra casa e “parar com essa brincadeira boba.” Sherif respondeu: “Você chama o sangue dos egípcios uma brincadeira boba!” Roweny disse a Sherif que o exército tinha decidido esvaziar a praça, porque queria restabelecer o trânsito normal no dia seguinte. “Não podemos usar violência, mas podem ser bastante duros com as pessoas”, ele avisou. Sherif perguntou o que significaria essa dureza. “Como um pai com seu filho”, Roweny replicou, sorrindo e respondendo as perguntas na frente das câmeras da TV. Mais tarde, ele se dirigiu às multidões na praça, proclamando: “Vocês todos têm o direito de expressar-se, mas por favor salvem o que sobrou do Egito”. A multidão alegre respondeu que Hosni Mubarak deve ir embora. Roweny então desistiu do seu discurso, dizendo: “Eu não vou falar em meio a essas canções.”
Em certo ponto, o exército tentou empurrar uma linha de tanques mais para dentro da praça, perto do Museu Egípcio. Mas os manifestantes sentaram-se embaixo dos tanques. Eu me sentei junto deles e falei com um homem cujo corpo estava coberto de lepra. Ele veio de uma pequena cidade não muito longe de Cairo e trabalhou para a municipalidade local. Ele disse que seu salário de 700 libras egípcias (cerca de US$ 120), não era suficiente para alimentar a família e pagar o tratamento de sua pele. Ele tentou explicar a situação: “O exército está tentando apertar-nos e afastar as pessoas da praça”. Quando voltei no dia seguinte, os manifestantes tinham se instalado no lugar, estocando sanduíches e cobertores em nichos entre as esteiras dos tanques, dormindo sob suas turretas e orando cinco vezes ao dia em linhas organizadas. Quando os tanques haviam chegado pela primeira vez, os manifestantes viam-nos como bestas misteriosas, que agora pareciam domadas. Pais colocavam seus filhos no topo e tiravam fotos. Os soldados não se importavam com essa domesticação.
O alto comando militar também é parte do regime
O exército, conquanto ostensivamente neutro, estava obviamente implicado no status quo. Depois que Mubarak despediu a maior parte de seu gabinete de governo, nos primeiros dias do protesto, a elite militar se viu no controle de postos-chave. Suleiman, o chefe da inteligência militar anterior, se tornou vice-presidente, e Ahmed Shafik, antigo comandante da força aérea (como antes dele, Mubarak), se tornou o novo primeiro-ministro. Enquanto isso, o marechal-de-campo Mohamed Hussein Tantawi permaneceu na posição que ocupava há quase 20 anos: ministro da defesa e da produção militar. Inicialmente, esse triunvirato pareceu formar uma guarda pretoriana ao redor do regime, eles eram todos militares, todos perto de seus 70, todos próximos de Mubarak. Nesse momento, o diplomata ocidental me disse que não há diferenças significativas entre Suleiman e seu presidente; que o regime pensava que poderia dispersar os protestos, e que Mubarak mantinha a idéia que eram objeto de uma maquinação estrangeira — “um ponto de vista sólido como rocha que vimos ele sustentar há muitos anos”. Tantawi, o diplomata esperava, continuaria com a política de não-violência por parte do exército: “Sim, ele é produto do regime e está perfeitamente feliz em prender pessoas, mas não atirará nelas.”
Parece agora que sempre existiram diferenças entre a elite militar e os elementos mais leais ao regime — a cúpula de Mubarak, o Ministério do Interior e a polícia, os altos dirigentes do PND, e as forças domésticas de segurança. Essa foi talvez a razão que, nos dias seguintes, os pronunciamentos do triunvirato militar, como o comportamento mercurial do general Roweny na praça, tenham parecido oscilar entre a conciliação e ameaças impacientes. Depois dos choques com multidões mubarakistas, o primeiro-ministro Shafik se desculpou pela violência na TV nacional, e então houve tratativas entre o vice-presidente e alguns dos grupos oposicionistas. Contudo, apenas alguns dias depois, Suleiman pareceu ameaçar uma repressão marcial. Nessa hora, era difícil ver onde o balanço de força residia, entre o regime e a elite militar. Porém, através dos protestos no Cairo, duas constantes se mostraram decisivas: o exército nunca atirou nos manifestantes e nunca preveniu as pessoas de vir para a praça.
A elite militar nunca gostou do filho de Mubarak, Gamal, geralmente retratado como o cabeça do grupo que investiu nas reformas econômicas neoliberais da última década. Nos últimos anos, membros do alto escalão expressaram desconforto diante da indicação implícita dele como sucessor. Quando Mubarak nomeou Suleiman como vice-presidente, tradicionalmente a posição ocupada pelo sucessor, aqueles insatisfeitos podem ter se sentido contemplados. Mas as multidões na praça, não. E, nos dias que se seguiram, foram capazes, graças aos números e por reiterar a confiança no exército, de cooptar as forças armadas como um parceiro relutante da revolução.
Na segunda semana dos protestos, além da praça, Cairo voltou ao trabalho. Bancos reabriram, as ruas retomaram seu estado costumeiro de engarrafamento. E ainda os números na praça continuavam crescendo. Na hora do almoço e depois do expediente, as pessoas fluiam à praça para tomar parte no fenômeno da liberdade. Todos com quem falei pareciam insistir que tinham estado ali desde o primeiro dia. “As pessoas estão tentando se juntr ao circo”, um militante disse, rindo.
Sherif voltou ao trabalho, também, mas retornou em cada tarde a seus novos amigos na praça. Depois do primeiro dia de volta ao “mundo real”, como o descreveu, — imaginando o que seria esse mundo real agora — ele admitiu que tinha se sentido “muito pra baixo. Porque começou a estancar todo o banho de sangue.” Mas seus novos amigos — nenhum dos médicos voluntários em Tahrir se conhecia antes — motivaram-no. “É incrível quão pacífico é aqui, e fora todo esse zunzum do cotidiano. Caminhei através da praça, e ela dá esperança a você, isto tudo não é pro nada, alguma coisa vai acontecer”. Ele começou a ir nos encontros militantes, grupos de jovens que discutiam como seguir em frente com a revolução. “A falta de liderança é positiva e negativa”, ele havia me dito num instante, “mas mostra que esta realmente é uma revolução do povo.”
Discutimos possíveis líderes. Nenhum dos partidos da oposição foram capazes de reunir apoio suficiente entre os manifestantes. Muitos pareciam bem-intencionados, mas amadores, e eram guiados pela geração mais antiga. Mencionei Mohamed ElBaradei, o vencedor do Prêmio Nobel, que tinha estado em Viena e agora voltou ao Egito, e se tornou rapidamente associado com os protestos. Sherif, como muitos na praça, não estava impressionado. “Baradei? Cadê ele? Veio à praça por quatro ou cinco minutos e então saiu. Minha irmã diz que ele está na TV a cada cinco minutos, dizendo: eu fiz isso, eu fiz aquilo, eu fiz tudo e eu previ tudo. Mas ele estava em Viena o tempo todo.”
Sem um líder claro ou ideologia dominante, a praça se tornou uma espécie de esquina para oradores. Uma mulher com véu falou de seu sonho com o Profeta Maomé circundando a praça; um psiquiatra fascinou a multidão com sua teoria sobre como Mubarak era um psicopata. As pessoas colocavam manifestos xerocopiados em minhas mãos e perguntavam-me porque o presidente Obama estava se equivocando. Todos tinham se tornado especialistas na Constituição egípcia e nas cláusulas com os critérios de elegibilidade a presidente ou parlamentar. Falavam sobre o “modelo turco”, que teria as forças armadas como garantidores do estado. Sherif sublinhou que a praça tinha se tornado como uma universidade de ciência política — “a taxa de aprendizado era incrível para todos”. Ele queria estar envolvido. “Nós não podemos deixar o sangue dos mártires e dos feridos ser desperdiçado. Eles foram mortos por uma causa, e nós temos de levá-la adiante. Não podemos voltar a nossa vida normal como se nada tivesse acontecido.”.
Com esse pano de fundo de fervor e expectativa, em 10 de fevereiro, todos — a CIA, a CNN, o líder do PND, o primeiro-ministro egípcio, Barack Obama, e mesmo o sacador-de-curativos general Roweny, que agora dizia que “todas as suas exigências serão atendidas hoje” — todos acreditavam que Mubarak anunciaria sua renúncia. Houve uma chuvarada na hora do almoço, um sinal de boa sorte num país desértico, e depois disso o arco-íris apareceu e foi tuitado pelo mundo afora.
O anticlímax mubarakista
Às 10:45 da noite, Mubarak começou a falar, e a multidão ficou quieta. Mohamed, meu tradutor, tinha ido pra casa, pra comparecer à festa de noivado de seu irmão, e então compreendi o discurso através da reação da massa a ele. A voz de Mubarak ecoou por alto-falantes na praça — rosnada, baixa, estridente, e ocasionalmente distorcida pelo retorno da voz. As pessoas ouviam em celulares, e no centro de rodas com dezenas de cabeças curvadas se via o brilho de telas de notebooks. Gradualmente, os rostos ao redor de mim petrificaram à medida que as pessoas percebiam que já tinham ouvido esse discurso antes. Mais ou menos na metade, uma atmosfera de descrença se generalizou. Mais tarde descobri que foi na hora que Mubarak paternalmente lembrou aos ouvintes que ele um dia tinha sido jovem. Daí por diante, as pessoas pararam de ouvir. Levaram as mãos à cabeça, silenciosas em choque e desespero. Um por um, eles brandiram seus sapatos com desprezo. Quando Mubarak terminou o discurso, havia um enorme rugido, um uníssono desafiador de “Fora! fora! fora!” Socavam o ar com fúria. Um homem atrás de mim gritou e colapsou, incontrolável. Alguém perto de mim me disse que seu irmão havia sido morto nos protestos. As pessoas tentavam consolá-lo, mas ele subitamente se enfureceu, berrando e chutando o ar. Quatro ou cinco pessoas tentaram contê-lo, mas era impossível controlar a sua ira. Atrás dele, um homem orava comos punhos cerrados.
Encontrei Sherif na enfermaria de campanha, próxima da barricada. Ele usava uma bandana nas cores da bandeira egípcia. Sua expressão era incompreensivelmente apática e exausta. “Não sei ao certo o que ele ganha com isso”, me disse. Estava tentando precisar o gigantesco grau de negação da realidade que acometia Mubarak. “Nós já estamos celebrando e agora” — ele corta o ar com sua mão — “ninguém mais sabe o que está acontecendo”. Havia uma dureza em sua expressão que eu não havia visto antes. Ele me aconselhou a ficar no hotem amanhã. “Será muito ruim?”, perguntei. “É possível, é possível”, ele disse. “Eu não sei o que aquele idiota irá tirar de sua cartola.” Sherif decidiu pernoitar na praça.
Carnaval revolucionário: nada será como antes
Na verdade, Mubarak nunca renunciou. Coube a Omar Suleiman anunciar a sua saída, no dia seguinte. Na praça, as notícias foram comemoradas com uma parede de assovios alegres e uma nuvem de bandeiras. Era um júbilo exultante e unificado. As luzes de trânsito mostravam todas as cores simultaneamente, como numa boite. Fogos de artifício, aparentemente feitos de aerosóis, explodiram na multidão. Não havia frases, apenas uma palavra: “sensacional”, repetida sem parar. Manifestantes abraçaram os soldados, que desceram dos tanques e tiraram os capacetes para se juntar à festa. Assisti a alguém apertar a mão de um oficial e tirar uma foto com o pequeno filho junto do militar.
Sherif não estava na praça no momento do anúncio e perdeu essas cenas extraordinárias, mas ele viu uma coisa ultimamente mais reveladora. Naquele dia, multidões tinham marchado pacificamente ao Palácio Presidencial, em Heliópoles, a nordeste de Tahrir, e Sherif resolveu participar. Perto das quatro horas, um par de horas antes do discurso de Suleiman, ele estava fora do palácio, tratando uns poucos feridos. Vários tanques estavam estacionados ali, seus canhões apontando na direção da massa. Mas, como Sherif presenciou, os tanques moveram suas torres — parece que aconteceu, disse ele, em câmera lenta — de modo que passaram a apontar ao palácio. Os soldados então começaram a agitar bandeiras do Egito e cantar com a multidão: “Egito! Egito! O exército e o povo são um só!”.
Na manhã seguinte, sentei num café na praça, falando sobre os eventos. Todos liam os jornais e num deles vi uma fotografia do general Roweny apertando a mão de outro oficial, sobre um pano de fundo da multidão em Tahrir. O homem com o jornal disse que era uma foto dos tempos antigos, quando o exército pela primeira vez veio à praça.
“Ele é bom?”, perguntei sobre Roweny.
“Agora, é sim!”, o homem respondeu.
“Mas e antes?”
Ele balançou a mão aberta e fez uma careta: “Quem sabe?”
Alaa Al Aswny me disse que pensou na revolução egípcia como uma mudança fundamental no paradigma do Oriente Médio de populações apáticas oprimidas por ditadores e se refugiando no Islã. “Nós estamos vendo agora o fim das ditaduras pós-independência no mundo árabe”, ele disse. “O que nós vemos agora é o fim de uma era. Analistas ocidentais estão totalmente confusos, porque vai muito além do Sr. Mubarak. Os analistas ocidentais vão ter que jogar fora seus livros velhos”.
Naquela tarde, conheci Mahmoud Zaher, um general reformado da inteligência militar do Egito, que agora exercia um papel cujos contornos ele hesitava em definir. Quando cheguei na casa dele, perto de uma mesquita numa vizinhança agradável no lado esquerdo do Nilo, ele estava orando. Era um anfitrião gracioso, sentado bem reto enquanto seu filho que, ele me disse, esteve muitos dias na praça, trouxe copos de suco natural de laranja e de café turco. Quando fiz as perguntas, suas respostas tendiam a evitar especificidades, concentrando-se em assuntos teóricos sobre a história e o caráter nacional do Egito. A sombra de um sorriso se apresentava nas beiras de seu bigode, como se ele estivesse dizendo: “Sim, bem, é claro que essa é a pergunta óbvia, e eu sei muito bem qual é a resposta, mas como eu posso colocá-la?”
Mahmoud não era defensor de Mubarak, que ele sentia tinha “se tornado uma influência corrupta ao Egito e à reputação da elite militar”. Ele estava certo que até o fim Mubarak quis induzir a violência e o caos — possivelmente acionando a Guarda Republicana, que é leal mais ao presidente que à nação –,- a fim de parecer justificada a repressão. Perguntei a ele se alguém das forças armadas “colocou Mubarak num helicóptero” — se a mecânica do que ocorreu contribui para a interpretação de que ocorreu um golpe militar. Ele se delongou antes de responder: “Existe uma grande diferença entre o que pode ser dito e o que deve ser feito”. Ele pausou. “O que aconteceu foi um desejo muito forte e legítimo do povo da revolução do Egito que, nesse momento, se tornou também da instituição das forças armadas.” Ele disse que se uma pessoa “chega num ponto de insensibilidade e é incapaz de perceber a decisão certa na hora certa, outros precisam assumir o controle.”
Ele falou do exército como “servidor do povo e do desejo popular”, mas enfatizou que o papel do exército no Egito não ficou confinado à esfera militar, e que foi “politicamente influente e policitamente envolvente e politicamente digno.” O exército não pareceu querer ou esperar a mudança da situação, e Mahmoud falou da possibilidade de que, no futuro, possam haver “limitações” ao sistema político egípcio, “que venham a fazer com que gente de fora diga que nossa democracia seja diferente da democracia deles”. Ele exprimiu que quem quer que se torne presidente deve possuir um passado militar.
Na praça, montes de pessoas estavam com vassouras, limpando em júbilo o seu país. Eles transportaram pra fora da praça os entulhos soltos do pavimento e empilharam os quadros de metal de suas barracas. Eu vi um homem, que carregava um saco de lixo preto, com uma placa sobre o peito: “Ontem eu fui um manifestante. Hoje eu construo o Egito”. Conheci um casal de jovens estudantes da Universidade Americana no Cairo, carregando vassouras. Um disse que ela estava debatendo o novo espírito de comunidade com o pai dela. “Nós pensamos que as pessoas não ligavam”, ela disse, “e elas jogavam o lixo de casa na rua, mas agora vemos que no fundo pensavam que o país não tinha esperança — porque se preocupar se está tudo tão sujo? Por qu não ser corrupto quando está tudo corrompido? Mas agora as coisas mudaram, e um humor diferente se alastrou. Eu mesma não consigo parar de sorrir comigo mesmo.
Consegui encontrar Sherif e perguntei a ele sobre seu grupo de militantes. Eles tinham decidido que continuariam a se encontrar e discutir formas que pudessem ajudar o país, mas não formariam um partido político. Perguntei se estava preocupado com a possibilidade de o Exército assumir o controle inteiramente da situação. Ele disse que haveria caos no futuro e que seus amigos estão preocupados. “Mas como eu estava dizendo: ‘pessoal, olha o que nós já fizemos. Nada é impossível.’” Muitas pessoas na celebração disseram que jamais poderá existir outro ditador, agora que descobriram a sua voz política. “Nós sabemos o caminho à Praça Tahrir”, alguém disse.
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Wendell Steavenson, correspondente freelance, autora de The Weight of a Mustard Seed: An Iraqi General’s Moral Journey During the Time of Saddam (2009) e Stories that I stole (2002).
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Fonte: Outras Palavras
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