PICICA: "Favorecidos pela brutalidade de Gaddafi, os Estados Unidos tentariam apresentar-se novamente como agentes de uma “intervenção humanitária” semelhante às que conduziram na antiga Iugoslávia, na década de 1990. Contariam com o suporte da mídia tradicional. (...) Sonho dos que se incomodam com a revolução árabe, a intervenção militar é difícil, contudo. Para ter o aval da ONU, teria de passar pelo Conselho de Segurança — onde China e Rússia poderiam exercer seu direito de veto. Restaria a hipótese de uma intervenção unilateral, mais uma vez liderada por Estados Unidos e Inglaterra, à revelia do Direito Internacional. Haverá disposição para correr este risco, depois do profundo fracasso do Iraque, numa região potencialmente muito mais explosiva?.
O Império tenta enquadrar a revolução
By Antonio Martins – 1 de março de 2011
Por que a presença de uma frota da OTAN, diante do litoral líbio, nada tem a ver com a democracia. Quais os verdadeiros motivos para uma eventual intervenção militar do Ocidente. Como a ameaça pode se dissipar
Capitaneadas pelo porta-aviões nuclear USS Enterprise (foto), o maior navio de guerra do planeta, vinte embarcações militares dos EUA, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Grécia e Turquia rumam, desde ontem (28/2) para o litoral da Líbia, conflagrada há dez dias. Estão sob comando da OTAN, a aliança militar dirigida por Washington. Seu deslocamento foi decidido, informa o The Guardian, no final da semana passada, no Pentágono, em reunião entre chefes militares norte-americanos e britânicos. Fontes do jornal londrino afirmaram que uma intervenção militar direta não está excluída — embora a hipótese seja complexa e arriscada, política e militarmente.
O pretexto para tal ação foi oferecido pelo ditador líbio, Muammar Gaddafi, que voltou a investir militarmente contra a população rebelada. O setor das Forças Armadas que permanece fiel ao governo avançou ontem contra a cidade de Zawiyah, importante centro petroleiro a 50 quilômetros da capital, já sob controle dos insurreitos. O ataque foi rechaçado. As força bélica do governo parece ter-se reduzido. Os opositores estão armados e assumiram, em diversas cidades, o controle dos serviços públicos, como mostram reportagens do próprio Guardian e do El País. Em Benghazi, o centro rebelde, fala-se que a expedição para desalojar de vez Gaddafi, em Tripoli, já está em fase de articulação.
Uma ação militar externa, comandada por grandes potências, não visaria, portanto, garantir a democracia. Estaria relacionada — como se verá a seguir — a três objetivos nada altruísticos, mas muito ligados entre si: enquadrar a revolução árabe; assegurar o suprimento de petróleo; conter o fluxo de imigrantes.
Impedir ou neutralizar revoluções é um objetivo intrínseco a qualquer poder — e o vendaval árabe pode ter repercussões mundiais. Num artigo publicado em Outras Palavras, Toni Negri e Michael Hart frisaram ao menos três características que podem multiplicar seu alcance. 1) Há emergência de novos sujeitos políticos: a juventude bem-formada, conectada com o mundo e inconformada com os limites e a mediocridade de sua vida quotidiana; as periferias de metrópoles como o Cairo, que já não aceita a condição de subalternas e, para deixá-la estão dispostas a sacudir o status-quo. 2) Estes setores cultivam o embrião um projeto emancipador: eles querem organizar a produção e a distribuição de riquezas horizontalmente e em rede — sem os limites das hierarquias e da mercantilização atuais; 3) Eles praticam o esboço uma nova democracia, numa época em que a representação tradicional está se tornando cada vez mais obsoleta e desprestigiada.
Uma intervenção militar embaralharia o jogo. Favorecidos pela brutalidade de Gaddafi, os Estados Unidos tentariam apresentar-se novamente como agentes de uma “intervenção humanitária” semelhante às que conduziram na antiga Iugoslávia, na década de 1990. Contariam com o suporte da mídia tradicional. Atuariam, nas regiões em que interviessem, com o peso de seu poderio político e militar — incomparavelmente maior que o de uma levíssima revolução de jovens, sem ligações partidárias, articulada pelo Twitter e Facebook.
A ultra-direita norte-americana já enxergou a oportunidade. O repórter norte-americano Jim Lobe relata, num texto para a Agência IPS/Envolverde: no fim-de-semana, quarenta expoentes do movimento neocom enviaram carta aberta ao presidente Obama em que pedem abertamente um ataque militar à Líbia. Os signatários falam em “interesses humanitários”, mas entre eles estão os mentores ou responsáveis diretos pela violações dos direitos humanos praticadas no governo George Bush: Paul Wolfowitz, secretário de Defesa; Elliot Abrams, principal assessor político para o Oriente Médio; Marc Thiessen e Peter Whener, redatores dos discursos do então presidente.
EM NOME DO PETRÓLEO: A presença militar também restabeleceria o controle sobre o abastecimento do petróleo. Em texto publicado há uma semana, a revista Economist analisa as fortes oscilações no preço do combustível (+ 16%, de 96 dólares para U$111 dólares o barril), após o início das revoltas. Depois de uma breve queda, na fase mais aguda da crise financeira, a demanda por petróleo voltou a crescer rapidamente: 3% em 2010; provalemente 2,5%, este ano. O consumo mundial chegou a 88 milhões de barris por dia, um volume muito próximo à capacidade máxima de produção. Embora a produção da Líbia seja pouco importante (1,7 milhões de barris/dia, menos de 2% do total mundial), o corte do suprimento, após o início da revolta, deixou tensos os mercados e repercutiu imediatamente nos preços.
Ainda mais grave, para os grandes consumidores: apenas os países do Oriente Médio (Arábia Saudita, Kuait, Emirados Árabes) têm condições de elevar a produção em prazo relativamente curto, para substituir o fornecimento líbio. E haveria um autêntico terremoto nos mercados, em caso de uma eventual desestabilização de um novo país produtor — especialmente se fosse a Arábia Saudita, responsável, sozinha, por 10% da produção mundial (veja gráfico abaixo). Analistas do banco japonês Nomura especularam que não é impossível uma alta do barril até US$ 220. A própria Economist alerta: “o dano para as grandes economias do mundo rico, em recuperação, poderia ser enorme, se as cotações subissem e permanecessem elevadas por muito tempo”.
O VENDAVAL NÃO PÁRA: Por fim, há a questão candente dos imigrantes. Embora pouco mencionado pela mídia, as ditaduras do Egito, Tunísia e (em especial) Líbia mantinham com os países europeus acordos para cotenção dos próprios cidadãos africanos, inclusive por meios violentos. O fim destes regimes já desencadeou uma primeira onda de migrações — em especial da Tunísia para o sul da Itália, hoje fortemente influenciada pela xenofobia. Num texto sobre possível intervenção militar no mundo árabe, a edição francesa do Le Monde Diplomatique aponta: “Na prática, o deslocamento de uma armada poderia constiutir na prática um cordão de segurança que desencorajaria uma fuga em massa, pelo mar, de líbios ou de imigrantes africanos, rumo à Europa”…
Sonho dos que se incomodam com a revolução árabe, a intervenção militar é difícil, contudo. Para ter o aval da ONU, teria de passar pelo Conselho de Segurança — onde China e Rússia poderiam exercer seu direito de veto. Restaria a hipótese de uma intervenção unilateral, mais uma vez liderada por Estados Unidos e Inglaterra, à revelia do Direito Internacional. Haverá disposição para correr este risco, depois do profundo fracasso do Iraque, numa região potencialmente muito mais explosiva? Mesmo Obama, que poucas mudanças estimulou até o momento, apoia-se numa base social e num discurso muito distintos dos de Bush. Estaria disposto a desdizer-se?
Enquanto os poderes fazem planos, o vendaval avança. Ontem, houve novos protestos em Bahrein e num outro emirado petroleiro: Omã, governado por um sultanato absoluto e também parceiro dos EUA e seus aliados. Democracia e Império parecem cada vez mais distantes, num início de década vibrante como há muito não se via.
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