março 10, 2011

"Sedutor lírico x sedutor épico", por Bruno Cava

PICICA: "Os dois sedutores convergem na sua existência flutuante, signos de uma modernidade em que a transcendência se mostrou impossível. Quando a experiência os torna lúcidos, um e outro compartilham da alegre desesperança. De um modo ou de outro, se convencem que o amor não pode ser concretizado em toda a sua infinita potência. É assim mesmo: envelhecido, exausto, impotente, ridicularizado, o Don Juan contemporâneo não se arrependerá de nada."

Sedutor lírico x sedutor épico



por Bruno Cava

“Do amor só conheço a mistura de desejo, ternura e entendimento que me liga a determinado ser. Não há amor generoso senão aquele que se sabe ao mesmo tempo passageiro e singular.”
- Albert Camus, em Donjuanismo.

No romance A insustentável leveza do ser, Milan Kundera enuncia dois tipos no amor: o “sedutor épico” e o “sedutor lírico”. São duas atitudes amorosas do mundo contemporâneo, que se manifestam através de alguns dos personagens de sua obra, como Ludvik, de A brincadeira, ou Jaromil*, de A vida está em outro lugar; mas também mulheres, como Tereza, a sedutora de A insustentável…, ou Agnes, de A imortalidade.

O sedutor lírico é o idealista. Acredita em mulher ideal. Pretende casar-se com ela e só com ela. Quer um amor total e para sempre, no qual deseja embriagar-se, apaixonado de corpo e alma. Trata-se de um amor maior do que todas as coisas, mais forte do que todos os sentimentos e afetos, um amor fora da história. Amor capaz de reencantar a vida, reinstaurar o absoluto e redimir o homem das baixezas e imperfeições da matéria. Em todas as mulheres que ama, o lírico procura somente uma. O lírico ama aquela mulher.

O sedutor épico é o realista, o pé-no-chão. Não crê no amor ideal, acolhe a imperfeição e relatividade de tudo o que existe e de todas as mulheres. Mas não se contenta com isso. É um inconformado erótico. Daí sai em campanha atrás de todas e qualquer uma. Todas lhe interessam e nenhuma pode decepcioná-lo completamente. Sua ética é da quantidade. Cônjuge do mundo, multiplica o que não consegue unificar e singulariza o que não pode universalizar. Esbalda-se na diversidade. Em cada mulher que ama, o épico busca todas. O épico ama esta mulher.

O mulherengo lírico ambiciona uma utopia feminina que está dentro de si mesmo. Por isso, como esse ideal depende de sua visão pessoal, para ele a sedução consiste também numa jornada de autoconhecimento. Não o confundir com o romântico onírico (Álvares de Azevedo, John Keats etc), porque o lírico seduz uma mulher após a outra, incansavelmente, ao encalço da definitiva que nunca aparece. Essa inconstância culmina na decepção menos pela intangibilidade da mulher ideal, do que pelo fato desse ideal se mover sempre um pouco mais além, se porventura encontrado.

O mulherengo épico quer o não-eu. O que o fascina não está dentro de si. Portanto, ao possuir totalmente a amada, desinteressa-se. Não o confundir com o libertino, cuja ética desafia a moral. O épico não afronta Deus e a sociedade, essas coisas pouco lhe importam. Com o passar dos anos, a sua errância não lhe causa a angústia, como no lírico, mas tédio. Padecendo da perda sempre iminente de tudo o que conquista, o épico não constitui patrimônio amoroso. Suas conquistas vão tão fáceis quanto vieram, e o jogo se torna previsível. Ele não está nem aí: entedia-se.

A beleza para o sedutor lírico se torna cada vez mais pura e transcendente. Almeja por uma perfeição de corpo e mente, que só vai sentir quando inebriado pela paixão. Que cedo ou tarde se dissolve, decepcionando-o. Já o sedutor épico tende a afastar-se do padrão convencional. Concentra-se no detalhe, no curioso, no exótico, no que cada uma tem de singular. E, assim, pode acabar amando uma mulher à beira da feiúra, porém rica nas sutilezas.

Invariavelmente, o sedutor lírico adquire um ar melodramático, uma frustração diante da “dura realidade” do amor. Tem, portanto, o seu apelo com mulheres sentimentais, que nele vêem um pobre e desiludido romântico. A sua memória amorosa recheia-se de dramas, traumas, catástrofes, conflagrações.

O amante épico não se apaixona por ninguém e não cultiva vínculos. Quando “desmascarado” pela mulher romântica, finda rotulado: egocêntrico, vaidoso, fútil, soberbo, individualista, coração de pedra, colecionador. Mas o épico não coleciona, porque não sente nostalgia. Seu coração é generoso demais para não se engajar plenamente no momento que vive. Deseja esta mulher, a do instante, e não o passado. Nômade, não coisifica o desejo. Persiste teimoso navegando na sua odisséia.

Os dois sedutores convergem na sua existência flutuante, signos de uma modernidade em que a transcendência se mostrou impossível. Quando a experiência os torna lúcidos, um e outro compartilham da alegre desesperança. De um modo ou de outro, se convencem que o amor não pode ser concretizado em toda a sua infinita potência. É assim mesmo: envelhecido, exausto, impotente, ridicularizado, o Don Juan contemporâneo não se arrependerá de nada.
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* PS – Jaromil se realizou amorosamente ao descobrir e explorar o fascínio (inclusive erótico) que as palavras escritas exercem sobre as pessoas. Daí utilizar a poesia como instrumento de sedução. A postura dele se assemelha a de blogueiros que, até então pouco sociáveis e introvertidos, passaram a editar blogues com o único intuito de chamar a atenção para si, ser querido, desejado e admirado. Tudo bem! cada um se arranja como pode.



Bruno Cava 
Engenheiro aeronáutico e bacharel em direito, mas gosta mesmo é de literatura e cinema. Autor de A vida dos direitos: Ensaio sobre violência e modernidade (Lumen Iuris, 2008).

Fonte: Amálgama

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