Latuff, o chargista das revoltas: ‘Nunca houve ano tão prolífico’
PICICA: "O chargista ainda adota certa cautela em comparar esta época de mobilizações de jovens nos países árabes, na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina com 1968, mas revela que às vezes se sente no ano que não terminou. “Muita gente gosta de comparar com 1968, não acho que seja assim, mas, às vezes, tenho a sensação de estar em 68. Aquele ano foi a quebra de paradigmas, depois de uma década careta (de 50), a coisa vai evoluindo e em 68 neguinho chuta o pau da barraca. Agora, as décadas de 1990 e 2000 foram uma merda e você começa a ter uma insatisfação. A pessoa uma hora cansa e parte para dentro”."
Felipe Prestes
Ele nasceu no Rio de Janeiro, mas está nos estádios e nos cafés do Cairo. É comentado na televisão egípcia, dá entrevistas para os jornais. Sem sair do Brasil, o cartunista Carlos Latuff, 42 anos, é um dos personagens das revoltas sociais nos países árabes. “Meu trabalho tomou proporções que eu nunca poderia imaginar”, conta. Há pouco tempo, um egípcio o procurou no Rio de Janeiro, queria conhecer o desenhista e revelou a enorme repercussão do seu trabalho. Hoje, 80% de seus 45 mil seguidores no Twitter são egípcios.
“Não houve ano tão prolífico para charge como 2011. As pessoas estão indo para a rua com facilidade”, afirma Latuff. Recentemente, ele esteve no Chile acompanhando a mobilização dos estudantes, fotografando, filmando e desenhando. “Em sete dias aspirei mais gás lacrimogêneo que em toda minha vida”, brinca.
O chargista ainda adota certa cautela em comparar esta época de mobilizações de jovens nos países árabes, na Europa, nos Estados Unidos e na América Latina com 1968, mas revela que às vezes se sente no ano que não terminou. “Muita gente gosta de comparar com 1968, não acho que seja assim, mas, às vezes, tenho a sensação de estar em 68. Aquele ano foi a quebra de paradigmas, depois de uma década careta (de 50), a coisa vai evoluindo e em 68 neguinho chuta o pau da barraca. Agora, as décadas de 1990 e 2000 foram uma merda e você começa a ter uma insatisfação. A pessoa uma hora cansa e parte para dentro”.
“Egito vive uma ditadura controlada por uma junta militar”
O prolífico ano de 2011 começou para Latuff com a revolta na Tunísia. Depois de mais de uma década desenhando sobre a causa palestina, Latuff foi procurado em janeiro deste ano por ativistas tunisianos. “Eles disseram que tinham derrubado Ben Ali, mas a ditadura continuava. Queriam que eu desenhasse sobre isto”, conta. No mesmo mês, foi procurado por egípcios, mas em uma situação diferente. Eles estavam preparando as primeiras manifestações e apenas sonhavam que poderiam derrubar Mubarak.
Os desenhos de Latuff tomaram as ruas do Egito desde o primeiro dia de protestos. “Eles imprimiam as imagens e levavam para a rua. Até a queda do Mubarak não parei de desenhar um só dia. Agora, permanece a mesma situação que na Tunísia, eles derrubaram o ditador, mas a ditadura continua”.
O cartunista revela que após a queda de Mubarak parou de ser requisitado, o que voltou a ocorrer no mês de junho, quando os manifestantes perceberam que a junta militar que está no poder dá mostras de que não quer sair dele. “Nem de longe é a democracia pela qual eles lutaram e venceram. Hoje, há uma ditadura, mas controlada por uma junta militar. Eles estão criando situações para justificar sua permanência no poder. Alegam que é preciso estabilizar o Egito, e colocam conflitos como os que envolvem os cristãos coptas e muçulmanos como motivo. A única maneira de estabilizar o Egito é eleger um presidente civil”, diz o desenhista.
Se antes as charges de Latuff satirizavam Mubarak; agora retratam a opressão militar e pregam a união entre cristãos e muçulmanos pela democracia. Na final da Copa do Egito, realizada na terça-feira (11), uma bandeira com o desenho feito pelo carioca apareceu na torcida do Zamalek. Era a imagem de um cristão e de um muçulmano abraçados, com as roupas de ambos formando a bandeira do Egito.
Latuff explica que os egípcios têm muita admiração pelos militares, mas acha que a “ficha está caindo” e que os cidadãos do país já não têm mais medo de ir para rua protestar como teve durante largo período do regime de Mubarak. “Antes o inimigo era muito claro, Mubarak representava a censura, a repressão. Com os generais é diferente, porque os egípcios têm admiração pelos militares. Como o regime militar está mandando bala em ativistas, acho que está caindo a ficha. E o egípcio não tem mais medo de se manifestar”, diz.
Ainda assim, o chargista diz que é impossível prever o que vai ocorrer no país africano. “Mesmo os egípcios dizem que ninguém consegue prever o que vai acontecer no Egito. Ninguém previa nem que Mubarak cairia. Mas as pessoas estão tendo consciência, não são mais intimidadas”, diz.
Do fax ao Twitter
A trajetória de Carlos Latuff como desenhista começa em 1990 na imprensa sindical, que até hoje é seu ganha-pão. À época, tinha apenas uma “inclinação”, como define, para a esquerda. Procurou a imprensa sindical porque era mais acessível para começar a carreira. No contato com os sindicatos passou a lutar por suas causas. “Me orgulho muito de trabalhar para a imprensa sindical”, diz.
O chargista diz que não se importa em definir seu trabalho em charge ou cartoon. “Aqui no Brasil se costuma dizer que charge é o desenho político, então digo que sou chargista, mas lá fora não há essa divisão, tudo é cartoon”. Ele explica porque privilegia o desenho ao texto. “Procuro reduzir as falas ao que for necessário, prefiro que o desenho fale por si”. Ele revela que a inspiração para o desenho não vem de nenhum ídolo em especial, mas das coisas que via e lia desde criança, como gibis.
Antes da internet, a divulgação do trabalho como ativista se dava por fax e pela televisão. “Mandava uma pergunta e uma charge sobre o tema por fax para programas de debates como o Sem Censura, uma vez fui até chamado para um programa, para as pessoas saberem quem era o chargista”, conta. O fax também o fazia chegar mais longe. Latuff enviava charges de apoio aos zapatistas de Chiapas. Em novembro de 1996, criou uma galeria de charges em solidariedade aos zapatistas na internet, com copyleft, para serem reproduzidas por todo mundo que apoiasse a causa.
Em 1999, mandou um conjunto de charges para uma ONG palestina de Ramallah. Os palestinos gostaram e até lhe convidaram para visitar a região. Desde então, Latuff nunca mais parou de produzir charges em apoio à Palestina. “Os israelenses me ajudaram a ter visibilidade, porque me combatem muito, me acusam de ser antissemita”, ironiza. A internet já havia ajudado, mas o Twitter amplificou ainda mais o trabalho. Conhecer seus trabalhos sobre a Palestina pela rede social foi o que motivou outros ativistas de outros países árabes a procurá-lo.
Latuff é neto de um libanês, mas diz que nem conheceu o avô e que a solidariedade aos países árabes não tem relação com a ascendência. “Nem conheci meu avô. As pessoas acham que para você defender uma causa, precisa ser um deles. Defendo a causa LGBT e não sou gay, defendo os sem-teto e não sou sem-teto”, diz.
O convívio do chargista com as “instituições democráticas” do Brasil
Latuff projeta que só poderá botar os pés no Egito um dia se houver um governo civil e aberto. Em Israel, acredita que jamais poderá entrar. Mas ninguém tentou lhe reprimir mais que a polícia do Rio de Janeiro. O chargista já foi chamado a depor três vezes, em 1999, 2000 e 2007, sempre por charges que falavam da violência policial. A última delas satirizava o mascote do Pan-Americano: Latuff o desenhou carregando um fuzil ao lado de um “Caveirão”, veículo blindado utilizado pelo Bope.
“Dizem que a gente vive uma democracia. Fui chamado três vezes para conhecer as nossas instituições democráticas”, ironiza. Além da violência policial, as temáticas preferidas de Latuff sobre a realidade brasileira são a dos sem-teto e dos sem-terra. Atualmente, tem retratado bastante a remoção das famílias para os Jogos Olímpicos e Copa do Mundo, “esta limpeza social que está sendo feita no Rio de Janeiro”. “Combato este terrorismo de Estado perfumado, com uma roupagem palatável para a classe média, como a invasão do Complexo do Alemão, as UPPs”, dispara.
Latuff não fica receoso quando acha que alguém merece críticas. Recentemente, por exemplo, retratou o músico Lobão rindo em frente ao cadáver de Vladimir Herzog enforcado. Lobão havia declarado que a ditadura militar tinha apenas “arrancado umas unhazinhas”. “A gente precisa ter bom senso, mas tem que expor as coisas, elas não podem ser colocadas em uma vala comum. Não só eu, mas outros cartunistas, não podemos deixar barato. Se não ocorre a criação de um consenso artificial. Isto tem que ter resposta. O mal maior é feito por declarações como estas. O que eu faço é usar a força dos outros contra eles. Esta charge sobre o Lobão não partiu da minha cabeça, mas de uma declaração dele. Foi ele que criou, quando falou aquela merda”, critica.
Diante da discussão sobre o humor brasileiro, em especial feito na televisão, com o afastamento de Rafinha Bastos do programa CQC, perguntamos para o chargista como ele avalia o humor que vem sendo feito. Para Latuff, se trata de um humor infantil, semelhante ao que feito pelas crianças nas escolas, um “bullying televisivo”. “As crianças são cruéis e quando você é criança todas as piadas exploram um defeito físico, algum atributo de sua aparência. Tudo o que não é padrão, não é considerado normal, é atacado. Não é questão de ser politicamente correto, que é chato mesmo. Isso para mim além de ser primário, meio selvagem, é exercitar o preconceito. É ofensa, agressão”, opina.
Fonte: Sul 21
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