dezembro 21, 2012

"Crack não destitui poder familiar", por Isabela Casalotti

PICICA: "O Desembargador Antonio Carlos Malheiros afirma na entrevista que dificilmente mulheres usuárias de crack têm condições de cuidar de uma criança por estarem em situação de risco. E aponta a dificuldade em conscientizá-las sobre o uso de métodos contraceptivos.

Em contraponto, o médico psiquiatra Dartiu Xavier pontua que essa é uma medida preconceituosa, pois essas mulheres não são criminosas. Segundo ele, o uso do argumento do crack é usado indevidamente, já que se trata de uma questão de pobreza. Mulheres de classe média não são submetidas a esse procedimento. Ele ainda aponta que não há evidências científicas de que o crack e a cocaína causam danos cerebrais ao feto, como acontece com o álcool."

Crack não destitui poder familiar

 
Em maio desse ano escrevi um post para o blog sobre a vulnerabilidade e a estigmatização das mulheres usuárias de crack, “Mulheres, crack e manicômios”. Debater esse tema me desperta grande interesse, pois, além de trabalhar com esse público, avalio que é pouco discutido nos espaços de militância feminista que conheço, mesmo estando tão frequente nas grandes mídias.

Essa semana foi compartilhada uma matéria da Folha em nosso grupo de discussão pela Elaine Santana, “Em maternidade para viciada em crack, mãe tem alta, mas bebê fica”, que me motivou a trazer mais reflexões para esse espaço.

O texto fala sobre uma maternidade na cidade de São Paulo que considera partos de usuárias de crack um problema de saúde pública que tem se agravado nos últimos anos. Posto isso, as mulheres avaliadas como usuárias de droga são submetidas a um protocolo de atendimento que visa a proteção ao bebê. “A maior parte das mulheres que dá à luz na maternidade não sai de lá com seus filhos — isso só acontece quando o hospital tem a certeza de que deixar o bebê com a mãe não comprometerá o futuro da criança”.

A Vara da Infância de Juventude é acionada e os filhos podem ser encaminhados para instituições de acolhimento (80% dos casos, segundo a matéria), provisoriamente ou permanentemente, dependendo da avaliação da Justiça. Segue abaixo a imagem que o jornal fez para resumir o protocolo adotado pela maternidade:

Números de partos de dependentes químicas
Fonte: Editoria de Arte/Folhapress

O Desembargador Antonio Carlos Malheiros afirma na entrevista que dificilmente mulheres usuárias de crack têm condições de cuidar de uma criança por estarem em situação de risco. E aponta a dificuldade em conscientizá-las sobre o uso de métodos contraceptivos.

Em contraponto, o médico psiquiatra Dartiu Xavier pontua que essa é uma medida preconceituosa, pois essas mulheres não são criminosas. Segundo ele, o uso do argumento do crack é usado indevidamente, já que se trata de uma questão de pobreza. Mulheres de classe média não são submetidas a esse procedimento. Ele ainda aponta que não há evidências científicas de que o crack e a cocaína causam danos cerebrais ao feto, como acontece com o álcool.

Ao ler a matéria, minha tendência foi concordar com o psiquiatra, pois também compreendo o crack como uma questão de desigualdade social. É uma droga estigmatizada e marginalizada, “droga de morador de rua”, como já ouvi muitas pessoas falarem. E pensar que @s usuári@s não têm autonomia é falacioso e alarmista, serve apenas para justificar medidas emergenciais.

Pensando que, principalmente no caso do crack, estigmatização, criminalização e culpabilização da droga e d@ usuári@ é um disfarce para todo um sistema social excludente, me lembrei de um artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):
Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar.
Parágrafo único. Não existindo outro motivo que por si só autorize a decretação da medida, a criança ou o adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio.
Se não há evidências de que o crack causa mais danos que outras drogas ao feto, o que há nele, especificamente, que destituiria a maternidade de uma mulher? E se as condições financeiras não são critério para isso, de que condições falam que ela não teria para cuidar de uma criança?

Cracolândia em São Paulo. Janeiro/2012. Foto de Edson Lopes Jr./Terra.
Cracolândia em São Paulo. Janeiro/2012. Foto de Edson Lopes Jr./Terra.

Quando fala que muitas vezes essa gravidez não é planejada ou desejada, o desembargador está certo. No entanto, isso ocorre com milhares de mulheres, não só as usuárias de droga. Será que isso não deveria ser considerado um problema de saúde pública? Não vou me aprofundar nas questões de direitos sexuais e reprodutivos, mas não deveria ser escolha da mulher? Penso que, sendo a gravidez planejada ou não, a escolha da mulher em ficar ou não com @ filh@ deveria ser o primeiro e principal critério de condições para a maternidade.

E quando Antonio Carlos Malheiros fala em “convencimento” ao uso dos métodos contraceptivos, novamente interpreto como culpabilização. O acesso precário aos métodos e à educação sexual é exclusivo das usuárias de droga? E como é o atendimento que elas recebem nos serviços públicos? No primeiro post, cito o julgamento moral que muitos profissionais acabam fazendo com essa população. A responsabilidade é, então, somente individual?

Li a publicação da Folha e fiquei pensando: não é uma questão de apontar o dedo para @s profissionais desse hospital, mas para uma lógica preconceituosa e excludente presente nessa análise sobre a maternidade dessas mulheres. Até quando serão submetidas a esse lugar de degeneradas e miseráveis?

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Nota: me refiro nesse post a mulheres cissexuais. Mulheres trans* usuárias de crack também são muito marginalizadas e as especificidades dos problemas que enfrentam também precisam ser vistas com mais atenção por tod@s nós.

Isabela Casalotti

Feminista em formação, paulista na localização, psicóloga por opção, chata por constatação, apaixonada por dedução e não desisto (nem duvido) do ser humano por convicção.

Fonte: Blogueiras Feministas

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