dezembro 25, 2012

“Malditos maias!” - Uma história real de fim de mundo, por Eliane Brum

PICICA: "Se os anúncios de fim do mundo servem para alguma coisa, além de fazer piadas e encher os bolsos de alguns espertos, é para nos lembrar de que o mundo acaba mesmo. Não em apoteose coletiva, com dia e hora determinados, mas na tragédia individual, sem alarde e sem aviso prévio, que desde sempre está marcada na vida de cada um de nós.

Meus votos de Natal e Ano-Novo pós-apocalipse são: não adiem os começos, porque o fim já está dado."

“Malditos maias!”

Uma história real de fim do mundo

ELIANE BRUM
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista (Foto: ÉPOCA)

- Acabou. Acabou tudo – ela me anunciou, pelo telefone, na fatal sexta-feira, 21 de dezembro de 2012.

- Não acabou. Continua tudo igual. Se quiser ter certeza, vá a um shopping. Tá todo mundo lá, comprando, se empurrando e se xingando – respondi, ranzinza como um duende fazendo hora-extra para terminar uma Barbie Malibu.

Mas para ela tinha acabado. Mesmo. A menstruação atrasara e ela, distraída de si, pensou que era gravidez. Aos 46 anos, e ela acreditou que seria mãe de novo. Um risco, um disparate, uma reviravolta em uma vida tão programada quanto pode ser uma vida. “O que eu vou fazer?”, dramatizara ela durante toda a semana. E se imaginava dando a notícia para a família na ceia de Natal. Tal qual uma Maria, mas desvirginada nos anos 80, numa Brasília verde limão ao som de Legião Urbana. Anunciaria uma nova vida antes de trinchar o peru.

Por que você não faz o exame de farmácia?, nós, as amigas, perguntávamos. Ela não queria. Só tinha conseguido horário com o médico na sexta-feira e tinha decidido que só faria o exame antes de sair de casa para a consulta. Não fazia nenhum sentido e, por isso, entendi que ela desejava aquela expectativa. Mariana (o nome é fictício, a seu pedido) estava gostando de sonhar com uma nova maternidade, fora de hora, imprevista, alterando o curso de uma vida que, eu sabia, ela começava a achar tão suculenta quanto uma uva-passa. Estava gostando de se descabelar diante das amigas, do marido, sobre o “absurdo de ser mãe com quase 47 anos”. E ouvir de algumas – não de mim – uma série de histórias de mulheres que tinham gestações saudáveis e bebês roliços “até com muito mais idade do que você”.

Parei de insistir que fizesse logo o tal do exame lá pela quarta-feira, assim que percebi seu inebriamento com a novidade. Ser uma boa amiga (e uma boa mulher, mãe, filha etc), acho eu, é tanto falar a verdade mais dura, quando necessário, quanto embarcar alegremente nas fantasias de quem amamos e enlouquecer junto. No caso de Mariana, a razão me mostrava que uma gravidez nessa altura da vida, com dois filhos já crescidos e a perspectiva de um cotidiano mais desamarrado de obrigações de todo tipo dali pra frente, podia não ser a melhor ideia. Isso sem falar nos riscos de uma maternidade tardia, já que não sou adepta da falácia de que a medicina resolve tudo e cada uma pode adiar a gravidez o quanto quiser. Fiz um rápido cálculo mental e me arrepiei ao imaginá-la enfrentando uma adolescência com mais de 60. Se a maturidade ajuda, porque, pelo menos na teoria, com a idade a gente fica – ou deveria – ficar mais sábio, minha experiência é a de que, para educar um filho, é necessário também uma boa dose de vitalidade física. Dupla, on the rocks.   

Para Mariana, naquele momento, aquele era um cálculo menor. Ela precisava daquele inesperado, acolhia-o por inteiro. Logo, também eu passei a brincar com cenas inusitadas de um bebê fora de estação. Então, a sexta-feira chegou. Trazendo com ela o fim do mundo.

 Quando o o telefonema de Mariana me alcançou, eu já empreendia minha tradicional fuga natalina. Alinhada a uma considerável parcela da humanidade, eu tinha certeza de que, como nos dizeres precisos de um cartaz que circulou pelas redes sociais, “o problema não é o mundo acabar, mas continuar do mesmo jeito”. E tratava de desaparecer no meio do mato, colocando uma distância regulamentar entre mim e o shopping center mais próximo. Não sei como é com vocês, mas, nas semanas que antecedem o Natal, eu sofro o maior número de agressões verbais, miradas de ódio e demonstrações de total falta de educação de todo o ano. Por isso, já faz algum tempo que, sempre que possível, escapo do espírito natalino e desapareço até dias de maior civilidade.

A voz de Mariana no telefone era de alguém que estava vendo o gigantesco meteoro do filme de Lars Von Trier se aproximando. Eu até olhei para um lado, olhei para o outro, por um momento dominada pelo medo atávico da voz dela, transmitido pelo sinal do celular. Não, não havia nenhum meteoro no horizonte. Não um visível, pelo menos. O que aconteceu?, finalmente perguntei. “Eu não estou grávida. Eu sou uma idiota. Não enxerguei o óbvio”, ela despejou, agora com a voz molhada. E, numa frase que terminou num soluço arrancado das tripas: “É menopausa”.

Silêncio. Eu sabia que poderia desfiar uma série de lugares comuns sobre a menopausa ser algo natural, que chega para nós todas, e não uma doença ou uma deformação ou mesmo uma maldição. Mas isso seria trair uma dor que eu também era capaz de compreender. Ela mesma continuou a falar, antes que eu balbuciasse qualquer coisa: “Eu estava me sentindo potente, entende. Jovem, até. Eu, tão imperfeita, tão atrapalhada com o dia a dia, tão frustrada em tanta coisa que não cheguei a ser. E, de repente, a possibilidade de um bebê. Eu, essa porcaria, ia gerar uma vida”.

Eu sabia que ela sabia que não era uma porcaria. Mas, naquele momento, Mariana precisava se chicotear. E eu precisava escutar. “E agora é oficial. Envelheci. Meu útero está morto. Nem capim nasce de mim, entende? Acabou.” Sim, eu entendia. Mariana foi lembrada no dia do fim do mundo que, desde que nascemos, há um meteoro vindo em nossa direção. E, um dia, com sorte mais tarde do que cedo, ele nos alcançará.

Liguei há pouco para ela do meu não-Natal. Mariana pintava as unhas de amarelo. Por alguma razão cuja lógica me escapa, ela acreditava que daria um toque de estilo quando trinchasse o peru. “Entrei na menopausa no fim do mundo”, já conseguia rir de si mesma. “Malditos maias!”

Desliguei sabendo que minha amiga seguia, agora com um luto a mais.

Para aqueles que acreditaram no fim do mundo e para aqueles que não acreditaram: nosso mundo acaba várias vezes no espaço de uma vida. Mas sempre temos a chance de recomeçar, dando outros sentidos para as marcas que carregamos, sentidos que nos permitam criar novas versões de nós mesmos ou pelo menos olhar para a atual com mais generosidade. Um dia, porém, o meteoro chega. E chega para todos, sem que nenhum de nossos tremendos esforços e vastas ilusões seja capaz de mudar o final.

São muitos os pequenos fins de mundo – e desconfio que os grandes apocalipses nos distraem dessa verdade, como tantas outras manchetes em neon que nos cegam dia após dia. Enquanto o meteoro se aproxima, vai se distanciando de nós a imagem de nosso retrato de 20 anos, quando ainda nos iludíamos que tudo era possível. É um pequeno mundo que acaba quando já não podemos contar com a ignorância que nos fazia viver como se houvesse sempre amanhã. É um pequeno mundo que acaba no primeiro cabelo branco ou na primeira queda, na primeira ruga ou na primeira dor na coluna, no exame de colesterol que anuncia refeições com menos delícias, na ereção que não vem ou não vem nem tão fácil, nem com o mesmo vigor de antes. É um pequeno mundo que acaba no momento em que percebemos que já não seremos bailarinas clássicas ou jogadores de futebol ou escreveremos o romance que mudará a história da literatura universal ou faremos a descoberta que nos levará ao Nobel – no exato instante em que descobrimos que precisamos adaptar nossos grandes planos.

Também é um pequeno mundo que acaba quando o relógio do avô quebra engolindo um tempo que não volta mais, quando vendemos nossos brinquedos de infância para um colecionador para pagar a conta do colégio do filho ou quando olhamos para aquele grande amor que agora lê jornal no sofá da sala e já não o reconhecemos. Ou quando é o outro que já não nos reconhece e duvidamos da nossa capacidade de continuar acordando e dormindo sem nos enxergarmos refletidos no olhar daquele que partiu para refletir outras faces. Ou quando descobrimos que o pai da infância não é nem um herói, nem um tirano, mas um homem – ou a mãe é menos sagrada do que nos fizeram acreditar, mas uma mulher cheia de contradições como todas as outras. E ainda não sabemos que estas são boas notícias. É um pequeno mundo que acaba quando ouvimos que a empresa já não precisa de nossos serviços porque há alguém com mais MBAs, mais idiomas, mais juventude e que custa mais barato que nós. É ainda um pequeno mundo que acaba a cada morte de quem amamos, nos deixando às tontas por aí, sem saber como se faz para transformar falta em ausência.

A cada um desses pequenos apocalipses temos a chance de recomeçar. Partidos, aos pedaços, às vezes colados como um Frankenstein de filme B. Enquanto o meteoro não chega há sempre um possível que podemos inventar. Se os anúncios de fim do mundo servem para alguma coisa, além de fazer piadas e encher os bolsos de alguns espertos, é para nos lembrar de que o mundo acaba mesmo. Não em apoteose coletiva, com dia e hora determinados, mas na tragédia individual, sem alarde e sem aviso prévio, que desde sempre está marcada na vida de cada um de nós.

Meus votos de Natal e Ano-Novo pós-apocalipse são: não adiem os começos, porque o fim já está dado. 

(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)
Fonte: Época

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