dezembro 26, 2012

"O Brasil e a Crise na Justiça", por Hugo Albuquerque

PICICA: "Certamente desde que por obra e graça do golpe de 64 a nossa melhor composição do STF foi desfeita -- que contava com juristas do porte de um Victor Nunes Leal, um Hermes Lima ou de um Evandro Lins e Silva --, as coisas andem mal, com repercussão também nos cursos de letras jurídicas. O resultado é que as gerações de juristas formadas depois está longe do brilhantismo das anteriores, os cursos de Direito perderam o ímpeto transformador de antes e se converteram em fábricas de burocratas. Se os juristas de hoje estão longe dos de antigamente, a escolhas do executivo, mesmo em governos de "esquerda" consegue ser pior. Não teríamos como reproduzir de forma alguma a qualidade do STF pré-64, mas isso não quer dizer que os 11 melhores jurístas possíveis sejam hoje os ministros daquele tribunal."

 

O Brasil e a Crise na Justiça

Final de ano, período entre Natal e ano novo, e estamos diante de uma grave crise na Justiça. Não custa lembrar que antes de ser uma pátria de chuteiras, o Brasil era uma pátria de bacharéis, mas por qualquer motivo perdeu a vocação para tanto. Isso até o julgamento da Ação Penal 470, vulgo julgamento do "mensalão", cereja no bolo no processo de aumento do poder do Supremo Tribunal Federal (STF) -- e de todo um estado de coisas que apontam para a judicialização da vida no nosso país. Como aponta o sempre atento Paulo Nogueira, passamos de especialistas em futebol e economia para, também, entendedores de Direito. 
Ainda assim, seguindo a sagaz observação de Paulo, não é para tanto: o STF não tem a confiança de metade da população, em que pese toda a superexposição positiva dada pela mídia, o que demonstra que a coisa é grave, mas confrontável. E, sobretudo, que precisa ser confrontada mesmo pela sociedade, haja vista a maneira como Joaquim Barbosa e Luiz Fux foram indicados para aquele tribunal (ainda mais o último, depois de sua lamentável confissão de como conseguiu a indicação), sem contar todos os demais -- dentre os quais se inclui até um primo do ex-presidente Collor, indicado pelo próprio antes dele ser defenestrado em processo de impeachment.
Mesmo assim, tomemos cuidado: o STF pode não estar com a bola toda, mas atuações punitivistas espetaculares são populares aqui e em todo mundo "civilizado" desde sempre: e bem o sabem filósofo Sócrates e o aniversariante de ontem, Jesus Cristo. A massa pune e quer sangue; o desejo de vingança é expressão máxima do homem na civilização, talvez pelo ressentimento de viver sob as amarras civilizatórias;  no caso da AP 470, qualquer análise lógica dos fatos apontam para tanto: no lugar de se mostrarem isentos, os ministros se revelaram escravos do punitivismo midiático, sem provas e sem teoria como nos lembra Luiz Moreira ou que para condenar, só com atos de ofício como postula Pedro Serrano. 
As coisas também são mais complicadas do que isso: é preciso lembrar que a dureza dos ministros com José Dirceu ou o militante italiano Cesare Battisti (sobretudo com o último) contrasta com sua leniência com banqueiros como Daniel Dantas. Naquela corte, a opção entre o uso do garantismo penal e do direito penal do inimigo varia conforme o réu -- mas não conforme o freguês, que parece ser o mesmo em todos esses casos de relevo. Se as massas detêm um desejo confuso e geral de punição, a mídia corporativa sabe bem quem deve ser objeto dessa fúria toda.
Mesmo julgamentos poucos populares, mas que geraram direitos, apresentam um modus operandi: a corte apareceu como salvadora dos fracos e oprimidos, como se os direitos dos gays (ainda mitigados, apesar da conquista do direito à união estável) ou dos ativistas pela liberação de certas substâncias alucinógenas (como no caso da marcha da maconha) decorressem da boa vontade dos ministros, face ao suposto autoritarismo das massas, e não da atuação de inúmeros ativistas e organizações -- embora reconheçamos que as reivindicações legítimas que lograram êxito por ali foram aquelas que, de algum modo, conseguem ecoar também nos salões da elites, ao contrário, por exemplo, da causa indigenista, relegada sempre ao segundo plano.
A recente crise institucional entre o STF e o Congresso Nacional, peça final do julgamento da AP 470, foi um episódio curioso. O STF deliberou pelo aumento de sua própria competência e, ato contínuo, invadiu a esfera de competência do Legislativo por meio da suspensão de um dispositivo constitucional vigente (!). Ainda assim, como anota o juíz Marcelo Semer, a disputa parece um tanto mais retórica, uma vez que o Congresso se empenhou em aumentar o poder do STF gradativamente nos últimos anos, verticalizando a jurisdição e lhe colocando em um pedestal institucional. Lula e FHC merecem destaque nessa empreitada.
Certamente desde que por obra e graça do golpe de 64 a nossa melhor composição do STF foi desfeita -- que contava com juristas do porte de um Victor Nunes Leal, um Hermes Lima ou de um Evandro Lins e Silva --, as coisas andem mal, com repercussão também nos cursos de letras jurídicas. O resultado é que as gerações de juristas formadas depois está longe do brilhantismo das anteriores, os cursos de Direito perderam o ímpeto transformador de antes e se converteram em fábricas de burocratas. Se os juristas de hoje estão longe dos de antigamente, a escolhas do executivo, mesmo em governos de "esquerda" consegue ser pior. Não teríamos como reproduzir de forma alguma a qualidade do STF pré-64, mas isso não quer dizer que os 11 melhores jurístas possíveis sejam hoje os ministros daquele tribunal.   
Lula e Dilma têm responsabilidade nisso. O PT, assim como boa parte do país, se preocupou demais com assuntos de matéria econômica e pouco com o Direito. O partido da estrela apresentou, é verdade, soluções mais justas no campo econômico, mas não consegue dimensionar o tamanho devido à economia -- e o economicismo grassa no governo Dilma -- ao passo que lida pessimamente com as instituições. O recente veto ao projeto de lei que concederia autonomia às defensorias públicas -- projeto ratificado, inclusive, pelas lideranças do partido e por sua própria Casa Civil e Ministério da Justiça -- é uma mostra disso: falta na cúpula senso jurídico.
Há dois atrás, quando expus as razões do meu voto em Dilma, ressaltei que de todos os três âmbitos de atuação de um governo -- política externa, política econômica e política institucional --, o ponto mais fraco de Lula foi certamente no terceiro item. E as coisas prosseguem nesses termos, embora agora a ferida esteja exposta: os onze ministros do STF, triste ironia em um país no qual o futebol é tão popular, são tanto menos hábeis ou representativos do que os outros onze, que se alternaram na escrete canarinho nos últimos anos. Por outro lado, continuamos pensando muito em economia e pouco em direitos. É um cenário desalentador e fascinante ao mesmo tempo.
Fonte: O Descurvo

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