PICICA: "A leitura da crise, contudo, trazida para o contexto da América do
Sul, deve ser retrabalhada. O ciclo constituinte dos anos 2000 ainda não
está encerrado. A leitura da crise precisa ser redimensionada segundo a
história de lutas do subcontinente, que desaguaram em governos com
composições mais politicamente interessantes, especialmente no eixo
Bolívia, Argentina, Equador e Brasil. Nesses países, pelo menos, houve a
transposição da potência constituinte das lutas em políticas
governamentais que passam, em alguma medida, por instituições
representativas. A relação entre governos e movimentos, tendencialmente,
é de fechamento, mas ainda se pode apoiar em instâncias e estruturas
institucionais para o aprofundamento da expressão constituinte. Esta
avaliação, no plano da análise, induz a uma apreensão mais nuançada das
recusas e indignações, de maneira a não perder de vista a imprescindível
determinação material do antagonismo, a única que o torna potente,
expansivo e produtivo. Destacam-se no Brasil, por exemplo, como
políticas que abriram elementos de autonomia: o acesso de contingentes
significativos da população brasileira à renda e consumo (bolsa família,
ampliação do salário mínimo) , o acesso de negros e índios às
universidades, programas de massificação do investimento social, em
favelas, regiões muito pobres e eletrificação rural."
Sandro Mezzadra no Brasil
O autor publicou, neste mês, um artigo com sua análise de conjuntura da América do Sul, traduzido aqui.
Discutiu-se a situação das lutas na Europa. A representação na Europa sofre uma crise em vários níveis. Uma crise, em primeiro lugar, de confiança das pessoas em relação às instituições representativas, como incapazes de representá-las, de acordo com qualquer mistificação de interesse geral. Segundo, a incapacidade de a democracia representativa na Europa afirmar efetivamente algum vetor democrático, e muito menos inovador, diante de um sistema financeiro encarnado nas instâncias de poder, uma governance financeirizada, encabeçada pela tróika: Comissão Europeia (CE), Banco Central Europeu (BCE) e Fundo Monetário Internacional (FMI). Esse triunvirato capitalista determina as condições mais graves da crise no sul da Europa, na Grécia, Portugal, Espanha e Itália, bem como na França e Irlanda. O que, como resposta das mobilizações, implica adotar uma recusa forte às tentativas de impor soluções e medidas from top down, à continuidade dessa “revolução desde acima”, uma que impõe a socialização das perdas sob o eufemismo “austeridade”.
Essa recusa se manifesta, inclusive, quanto ao processo de constituição da União Européia, que tem se mostrado uma articulação meramente internacional dos estados, ao redor do consenso financeiro, invariavelmente conservadora hoje. Isto significa, também, o deslocamento de um posicionamento da luta no sentido “dentro e contra”, como se pretendia há algum tempo, para assumir uma rejeição radical de negociação e/ou tentativa de atravessamento pelos mecanismos representativos existentes, na sua dupla dimensão público/privada.
Não há lugar, segundo o diagnóstico, ainda, para a tentativa de inventar um partido de tipo novo, nem apostar as fichas numa redentora “assembleia constituinte”, cuja composição hoje, necessariamente representativa, acabaria revertendo para o mesmo receituário da austeridade, com potencial, ainda, de absorver parte da xenofobia e paranoia incitadas pela direita europeia. Somente o ciclo constituinte de lutas, a sua radicalização e aprofundamento, podem recolocar os termos do problema europeu segundo as forças vivas do trabalho e a nova composição política de classe, neste começo do século 21. É preciso pesquisar e constituir movimentos sociais de tipo novo, movimentos do comum, movimentos que exprimam a nova composição do trabalho vivo. Essa viravolta constituinte depende, sobretudo, de um emassamento das lutas políticas por fora da representação, um problema de organização e produção de subjetividade.
A leitura da crise, contudo, trazida para o contexto da América do Sul, deve ser retrabalhada. O ciclo constituinte dos anos 2000 ainda não está encerrado. A leitura da crise precisa ser redimensionada segundo a história de lutas do subcontinente, que desaguaram em governos com composições mais politicamente interessantes, especialmente no eixo Bolívia, Argentina, Equador e Brasil. Nesses países, pelo menos, houve a transposição da potência constituinte das lutas em políticas governamentais que passam, em alguma medida, por instituições representativas. A relação entre governos e movimentos, tendencialmente, é de fechamento, mas ainda se pode apoiar em instâncias e estruturas institucionais para o aprofundamento da expressão constituinte. Esta avaliação, no plano da análise, induz a uma apreensão mais nuançada das recusas e indignações, de maneira a não perder de vista a imprescindível determinação material do antagonismo, a única que o torna potente, expansivo e produtivo. Destacam-se no Brasil, por exemplo, como políticas que abriram elementos de autonomia: o acesso de contingentes significativos da população brasileira à renda e consumo (bolsa família, ampliação do salário mínimo) , o acesso de negros e índios às universidades, programas de massificação do investimento social, em favelas, regiões muito pobres e eletrificação rural.
Nesse sentido, podem-se interrogar se os efeitos da crise global reforçam uma posição de radicalização da recusa, ou da tentativa de re-determiná-la segundo as positividades, os interstícios autônomos montados entre expressão e representação. A positividade construtiva do movimento, aqui, está da mesma forma inteiramente determinada materialmente por fora das estruturas e mediações? Onde estão os pontos de acoplamento, de tendencial conexão ou desconexão? A reapropriação, como contraefeito do empoderamento dos pobres, confere bases materiais para uma recusa forte? Onde se pode falar de uma dinâmica de lutas dentro e contra? Neste contexto, podem-se reconhecer, como hipótese de trabalho ao menos, ainda atravessamentos entre a expressão dos muitos, seus efeitos constituintes e de reapropriação, com as estruturas representativas?
Se a resposta é sim, com todos os considerandos que se possam exigir, isto implica, de imediato, a tarefa militante de mapear e copesquisar (autonomia + organização) os nós em que acontecem os antagonismos, as reinvenções e as mudanças de direção, inclusive por dentro dessas estruturas, bem como onde os impasses demandam a abertura de alternativas mediante uma práxis constituinte e antagonista. Esta pesquisa militante pode percorrer a relação entre a composição da pobreza e da resistência e as dinâmicas partidárias e de movimento social organizado; assim como de alguns governos, parcial ou minoritariamente, trespassados pelos vetores de democratização, — ainda que como momentum decorrente de um ciclo anterior, orundo da face potente do lulismo.
Para usar da heurística operaísta, pode-se dizer que o lulismo, assim como o leninismo e o maoísmo em seu tempo e espaço, põe intempestivamente em questão o problema da subjetividade como auto-organização de uma nova composição política de classe, que salta de dentro das (impropriamente) ditas “nova classe média” ou “Classe C”, como motor diferenciante de formas de vida, com efeitos sociais, econômicos e antropológicos.
Há uma disputa por dentro do próprio lulismo, — abertura versus fechamento dessas frinchas, — que coloca em questão a expressão e a imaginação real das lutas. Essa disputa adota como terreno, indubitavelmente, o grande circo reacionário-midiático montado ao redor do “mensalão”. Como noutros momentos históricos de empoderamento das bases multitudinárias, tem-se aí um ponto nodal da disputa entre os vetores por dentro da representação no Brasil, o debate sobre a judicialização/moralização da política e o neoconstitucionalismo, — discursos que servem de engrenagens da máquina estatal, i.e., antidemocrática.
Outros pontos fundamentais, para a análise da conjuntura, consiste em interpretar o resultado das eleições de 2012, que culminaram nos mandatos: a) francamente de fechamento do lulismo revolucionário, com Paes e a aliança PT-PMDB-cidade-empreiteira, no Rio, onde até o PT dirige o trator, e outras forças partidárias têm sido incapazes de alcançar efeito de escala junto à composição do trabalho, embora se esforcem, com algum sucesso, no enraizamento das redes de copesquisa e organização; e b) tendencialmente de abertura, com a eleição de Haddad, em São Paulo, que traz no bojo um conjunto complexo de ambivalências e ambiguidades, e que merece a atenção como laboratório lulista.
Vale também acompanhar as marchas e contramarchas no MinC, com Ana de Hollanda e Marta Suplicy, enquanto lugar de disputa por dentro da representação, de políticas inovadoras disparadas pelo governo Lula e o ministro Gilberto Gil, que tanto podem conduzir a um novo capitalismo 2.0, sob a ideologia californiana culturalivrista e os novos-ricos do empresariado cognitivo; quanto à radicalização da produção do comum, através da Política dos Pontos e a construção de uma base material de renda às minorias (que no fundo são a maioria).
Ainda como reposicionamento do debate, valem copesquisar as novas condições do trabalho vivo e sua composição política, depois de 10 ou 15 anos de profunda mudança da sociedade brasileira e, em maior extensão, sul-americana. Quer dizer, da perspectiva das transformações das forças produtivas, não é mais possível reeditar formas e diagnósticos de décadas atrás, quando a luta contra o neoliberalismo e o Consenso de Washington, com sua retórica que opõe o público ao privado ou o estado ao mercado. A aposta no público simplesmente está funcionalizada na governabilidade da metrópole e do estado-nação sul-americano, num discurso quase consensual de fortalecimento do estado nacional (o que é igualmente funcional ao sistema financeiro globalizado, que faz dos estados suas filiais mais “duras”). Como tarefa militante, faz-se necessário dirigir as lentes sobre processos de positividade e produção de subjetividade, de modo a captar as novas coordenadas da luta e sua contratendência, inclusive enquanto expressão de um estado global de mobilização.
Como terceiro ponto, bastante discutido, está a crítica às indústrias criativas e ao digitalismo. Pelo primeiro termo, refere-se à tentativa de capturar a profunda transformação do trabalho vivo, no começo deste século, como apenas uma segmentação de mercado com ares modernosos, como colonização para novos potenciais de exploração do precariado e a valorização do capital. Nesse sentido, a criatividade e a cultura deixam de ser componente fundamental da composição política de classe, — cultura como processo social e socializado imanente à multidão na sua pletora de diferenças potentes e antagonistas, — para se funcionalizar mera jazida de ouro, para uma nova fase da acumulação capitalista. Esse processo de captura passa por uma tradução das fontes vivas da criatividade, isto é, a metrópole como usina, seus fluxos, suas redes e sua imanência de raças e bacias de autonomia, — uma tradução disso tudo como produtos vendáveis, marcas apropriáveis, propriedade intelectual e copyright ou, enfim, produtividade difusa a ser posta para trabalhar, num parasitismo 2.0 e “horizontal”. Impõem-se, assim, uma métrica e uma subjetividade colonizada, que reproduzem a tautologia do poder e do dinheiro no interior da “cultura livre”.
Pelo segundo termo, o “digitalismo”, como na obra de Matteo Pasquinelli, a ideia que bastariam ampliar as redes e tecnologias sociais, a informação como sem rivais, para que a associação humana universal se impuser por si própria, como rendimento utópico de um processo comunicativo tendencialmente agregador. Uma gnose contemporânea que esquece a materialidade das relações, como o fundamento de luta e dor, — dor ontológica de Jó, afirmada, — atrás de qualquer processo de produção de subjetividade. Essa mistificação opera do lado de um novo “liberalismo horizontal”, que conjuga free market e free work, e acaba negando a conflitividade e a produtividade próprias de uma política de composição, do lado do poder constituinte. Isto significa, uma vez mais, a repetição de um discurso deslumbrado das divisões reais, que são a própria sociedade capitalista; assim como uma sideração das lutas, distanciando-se do aprofundamento da crise como antagonismo entre trabalho vivo e capitalismo cognitivo.
É preciso, portanto, “contratraduzir” a metrificação e captura operadas pela valorização capitalista do que é o próprio núcleo da ontologia constituinte hoje. Um trabalho antes prático do que analítico. O limite da exploração é dado pela resistência e autonomia. Quem determina o grau de proletarização/precarização é o próprio proletário/precário. Nenhum discurso McJob pode mobilizar os consumidores-produtores sem a sua aquiescência. Aí, novamente, a chave marxista e autonomista para uma resistência aos novos culturalivrismos e digitalismos com estética “radical chic”. Desafiar toda a gramática liberal das indústrias criativas, do empreendedorismo e da “rede de redes” parasitária.
Menos do que dizer que tudo seja cultural, deslegitimando a política por dentro da malha produtiva; o caso talvez seja reconhecer a cultura como ponto de vista transformador e qualificador da própria política. O que recoloca toda a problemática da tensão entre expressão e representação, quer dizer, a criatividade difusa da cultura dos muitos, dos territórios produtivos que já produzem e criam o mundo, como uma perspectiva que nega o universalismo do mercado e a primazia da economia política clássica e neoclássica na base dos digitalismos e “neoliberalismos cognitivos”. Ou seja, uma perspectiva de classe nos termos do capitalismo cognitivo hoje. Uma política e uma ética potentes, revolucionárias.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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