PICICA: "Mais
de um ano depois da ocupação de Zuccotti Park, talvez se possa esboçar
uma investigação sobre o sentido que se tem falado, e se possa falar,
que o Occupy seja inovador. Enquanto forma de organização, pauta
política ou engendramento de instituições, até que ponto se pode afirmar
que o Occupy traz algo novo?
[...]
Se
o Occupy ensina algo de fundamental para todas as ações que se
proponham à transformação radical deste mundo, é que a democracia real
não dispensa a imaginação e construção de instituições capazes de lidar
com as divisões reais da sociedade e suas violências de
classe/raça/gênero, impregnadas na própria estrutura produtiva e no
regime político. Essas instituições em construção durante o Occupy e o
movimento global de que é expressão, embora autônomas e imaginativas,
não deixam de se calcar em conflitos e desafios bastante candentes e sem
solução à vista. Enfrentá-los sem culpa ou medo, na ação coletiva, no
entanto, é o primeiro passo para outra forma de fazer política e
democracia."
Occupy: da indignação à democracia real
Versão em PDF para impressão aqui: http://www.4shared.com/office/FtCEVm2B/A_democracia_real_como_constru.html
Este
é um mundo bem mais infame, não é muito alentador o mundo em que
nascemos, mas há outro mundo esperando na barriga deste. É um mundo
diferente e de parto difícil e não é fácil que nasça, mas, sim, é certo
que já está latindo neste mundo. Eu o reconheço nestes acampamentos.[1]
1. Introdução
No
final de 2011, começando em 17 de setembro com a ocupação de Zuccotti
Park, em Nova Iorque, centenas de acampamentos improvisados tomaram
praças e espaços públicos pelos Estados Unidos[2]. Auto-organizado e sem líderes anunciados, o movimento adotou o imperativo Ocupar [Occupy] e se alastrou para dezenas de países[3].
Nenhuma bandeira partidária ou eleitoral foi levantada, mas as
ocupações compartilharam princípios, ideias e formas organizacionais;
adaptando-se às particularidades de cada lugar. Em pouco tempo, esse
movimento de protesto impactou irremediavelmente a percepção sobre a
realidade política[4],
aglutinou forças e movimentos heterogêneos e organizou a primeira greve
geral nos EUA desde 1946 (em Oakland, Califórnia). O slogan mais
difundido do Occupy, Nós somos os 99% [We
are the 99%], pontuou a desigualdade profunda da sociedade, contrastada
entre a acumulação e privilégios de uma pequena minoria e a escassez e
exploração da grande maioria.
Mais
de um ano depois da ocupação de Zuccotti Park, talvez se possa esboçar
uma investigação sobre o sentido que se tem falado, e se possa falar,
que o Occupy seja inovador. Enquanto forma de organização, pauta
política ou engendramento de instituições, até que ponto se pode afirmar
que o Occupy traz algo novo?
2. A indignação e as recusas do Occupy
Não é difícil identificar as causas negativas do Occupy. Desde 2008, os Estados Unidos sofrem uma crise econômica e financeira[5]
que pôs a nu a tremenda desigualdade de sua sociedade. Os efeitos da
crise foram sentidos mais severamente pelos mais pobres. Uma onda de
insolvência arruinou projetos de vida de muitos que não puderam arcar
com as prestações da casa própria e financiamentos de bens duráveis, os
próprios estudos ou dos filhos, planos de saúde e previdência, ou
simplesmente com as faturas do cartão de crédito. Para a maioria, o
padrão de vida conquistado nos últimos anos se tornara simplesmente
insustentável. O endividamento geral alimentou uma sensação de
isolamento e frustração, destruindo expectativas e sonhos.
Nesse
contexto, o governo norte-americano decidiu salvar os bancos e não as
pessoas. Sob o pretexto de evitar a catástrofe, houve transferências
massivas do erário público diretamente às instituições bancárias, no
maior resgate (“bailout”) da história. Por um lado, a manobra revelou
como os governos e o sistema financeiro compartilham lençóis,
destroçando a crença que o estado exerceria comando último ou regulação
eficaz dos fluxos de capital e investimento. Por outro lado, levou as
pessoas à percepção de que havia algo de muito errado no âmago de seu
regime político. As dívidas bilionárias do topo eram perdoadas, enquanto
as da população implacavelmente cobradas, através de execuções
judiciais, cancelamentos de crédito e despejos. A desculpa padrão
consistiu em dizer que perdoar as relativamente pequenas dívidas das
pessoas significaria corromper os fundamentos da sociedade, um “risco
moral” na medida em que elas não se sentiriam mais obrigadas a trabalhar
e cumprir seus deveres. O recado implícito era que as pessoas deveriam
trabalhar mais e acumular mais empregos porque não era suficiente. Não
por acaso, quando das primeiras ocupações nos EUA, críticos reacionários
chamaram os manifestantes de fracassados ou vagabundos, e recomendaram
que arrumassem um emprego [get a job]. Um passo importante para os
protestos consistiu em rejeitar a culpa que o próprio sistema atribui,
ao propagar a ideia que cada um é responsável individualmente por seu
próprio sucesso e felicidade. No momento da crise, para se
autopreservar, os representantes da ordem estabelecida tentaram
sobrecarregar as pessoas de ainda mais obrigações, deveres e
sacrifícios, manipulando a culpa e usando o medo do colapso, como
chantagem para manter-se no poder ou mesmo fortalecer-se em meio às
incertezas.
Com
a crise, essa narrativa de tonalidade moral se tornou cínica e
insuportável. Ao contrário da explicação oficial, a responsabilidade se
evidenciava como do próprio sistema, incompetente para solucionar os
problemas que ele mesmo produzira, sempre dependente de recursos
públicos colhidos junto da população. Por isso, a primeira e mais
audível recusa de um movimento como o Occupy foi desencarregar as
pessoas da atribuição de responsabilidade, mudando o sinal da culpa e do
medo. Essa moralização se revela funcional para impedir que a pessoa se
movimente politicamente, que perceba a sua condição como resultado de
um tipo de hierarquia social e regime político, isto é, como uma
condição coletiva e que, portanto, pode ser resistida coletivamente. Daí
a potência do Occupy como mudança de uma percepção social e política: a
culpa está mais enraizada institucionalmente, é culpa de um poder
político que conserva e reproduz o sistema econômico-financeiro, e que
nos fabrica como indivíduos impotentes e submetidos à moral das
cobranças e obrigações. Trata-se então de perceber como esse modo de
culpar tem por objetivo a servidão voluntária, o que, no conjunto, tem
servido para sustentar determinada estrutura produtiva. Uma que funciona
mediante a privatização dos ganhos suportada pela socialização das
perdas, numa desigualdade operada e legitimada pelo estado e a
democracia representativa.
Tudo
isso, aos poucos, foi ganhando visibilidade e dizibilidade com o
aprofundamento da crise disparada em 2008, e a consequente proliferação
de lutas e resistências, até culminar na explosão do Occupy.
Quando
se tornou óbvia a conexão entre crise econômico-financeira e a
democracia representativa, foi por água abaixo a separação artificiosa
entre leis econômicas e a esfera política. Agora, o mercado e a economia
não pareciam mais guiados por leis naturais e condições objetivas,
entendidas apenas por especialistas e insondáveis ao cidadão, mas por
decisões políticas bastante palpáveis. A pretensão de passar por
“racionalidade econômica” ou “interesse geral” deixou de ser uma verdade estabelecida,
o que escancarou a escandalosa distância entre as pessoas e seus
representantes; entre o poder dos muitos e as instituições que o exercem
em nome deles, para favorecer poucos.
Seis meses antes do Occupy Wall Street (OWS), um protesto de grande escala chegou a reunir 100 mil ativistas[6]
de movimentos sociais, sindicatos e alguns setores do Partido
Democrata, em Madison, capital do estado norte-americano de Wisconsin,
contra as medidas de austeridade propostas pelo governo local, sob o
pretexto de sanar o déficit das contas públicas. Embora contasse com uma
composição um pouco diferente do Occupy, o protesto em Madison foi um
antecedente do movimento, tanto por emergir do mesmo contexto de crise,
como também pelas várias ocupações do espaço público por meses a fio.
Vale lembrar que as ocupações em Wisconsin já aconteceram sob o pano de
fundo das revoluções árabes e da Praça Tahrir, transmitida ao vivo e em
cores pela TV Al Jazeera e mídias livres.
Cercadas
por todos os lados pelos constrangimentos causados pela crise, muitas
pessoas não se resignaram a esperar que os governos viessem em socorro.
Em vez disso, resolveram enfrentar a condição (induzida) de isolamento,
por meio da organização política, na alegria da ação coletiva. Se a
insegurança econômica e a situação de endividamento tendem a aumentar a
sensação de solidão e drenar a motivação política; uma mobilização
potente como o Occupy restaura o sentimento de engajamento pessoal,
empoderando as pessoas a lutar e fazer da condição precarizada e
indignada uma ação concreta de revolta e proposição. A essa altura,
essas pessoas não depositavam mais esperança nos representantes
governamentais, já que eles próprios haviam sido parte do problema, já
que os acontecimentos indicavam que as instituições políticas e o
sistema financeiro eram variáveis da mesma equação viciada.
Ao
se decidir começar uma ocupação diante dos arranha-céus das
instituições financeiras de Wall Street, o caso não estava simplesmente
em ocupar o coração do sistema financeiro global. Mas também o coração
do poder político, isto é,
o lugar onde as verdadeiras decisões sobre o futuro de todos estão
sendo tomadas. Foi caso de retomar o próprio poder político usurpado por
financistas e governantes. Ocupar Wall Street não significou, portanto,
o alfa e o ômega do movimento, como se estivesse tudo bem com o
restante da sociedade, bastando corrigir os desajustes do sistema
financeiro. Esse seria o próprio “discurso emergencial” dos governos,
que impõem sacrifícios à população, enquanto anunciam um incremento
maior da regulamentação sobre o mercado financeiro, — como se o problema
por trás da crise não fosse estrutural e sistêmico. A divisão entre os
99% e o 1% é mais profunda e enraizada na sociedade, do que meramente
opor Wall Street a Main Street (a “Rua Principal”, o que no uso cultural
norte-americano remete aos “valores tradicionais”[7]), o sistema financeiro versus o mundo do trabalho “real”. Não há motivo, aqui, para nostalgia de “bons patrões” ou moral do “bom trabalhador”[8].
Diante
de todo esse quadro, soa extremamente cínica a cobrança quase
exasperada com que jornalistas interpelam os militantes do movimento.
Por que se revoltam, afinal?
Como anotou o blogueiro e professor Idelber Avelar:
O
que é tão difícil de entender aqui? até mesmo um garoto de nove anos de
idade, Sam Kesler, acampava na recém-nomeada Praça Liberdade com total
clareza de seus motivos para estar ali: “o nosso sistema está montado
para tirar dos pobres e dar aos ricos. É o contrário de Robin Hood. Não
faz nenhum sentido!”.[9]
Além
disso, quando reclamam (ou secretamente se comprazem) da falta de uma
pauta de reivindicações do movimento, se enganam sobre um aspecto
essencial. O Occupy não teria como dirigir-lhes uma pauta de
reivindicações, pois não lhes reconhecem como legítimos representantes.
Não aceitam, de princípio, as estruturas e mediações da democracia
representativa, como hábeis para resolver os problemas. Na realidade, os
representantes – nos governos, instituições financeiras ou grande
imprensa – simplesmente não têm a menor ideia de como resolver a crise, e
mesmo que tivessem, não seriam respostas interessantes aos 99%. Por
isso, os ativistas do Occupy não perdem tempo reivindicando a quem nada
lhes poderia oferecer, senão reformas cosméticas e promessas insossas de
reequilíbrio do sistema.
3. A positividade e a construção de novas instituições
Não
há dúvida que o movimento Occupy se manifesta por meio de uma
negatividade muito acentuada em relação à ordem político-econômica,
entendida numa acepção ampla que engloba as instituições da democracia
representativa, o sistema financeiro, a grande imprensa e a própria
esquerda convencional em partidos e sindicatos. As recusas e
indignações, no entanto, não exprimem simplesmente o aspecto destrutivo
dos protestos em relação ao existente. Para compreender melhor um
movimento de grande repercussão, é preciso também entender como se
esforça construtivamente em apresentar alternativas. Ou seja, como a
resistência ao poder igualmente importa desenvolver coletivamente
instâncias de contrapoder, que possam adquirir consistência e duração
para continuar agindo no “tempo longo”. As ações em parte destrutivas
dos novos movimentos, de fato, refletem a falta de perspectivas dentro
da sociedade, mas isso significa antes a construção de uma perspectiva
alternativa, em dissonância com a atual, do que qualquer esboço de
violência gratuita ou desvairada. A indignação constitui apenas o “grau
zero” de uma mobilização com efetividade. A negatividade, ao fim e ao
cabo, está assentada sobre uma positividade. A investigação pela
positividade, aqui, consiste em desdobrar como o movimento Occupy pode
se inscrever numa revolução permanente mais gradual, de que ele exprime
um tempo mais “quente” e explosivo.
Escrevendo
num dos momentos mais destrutivos do ciclo de lutas de 2011, quando
levantes e quebradeiras tomavam as ruas de Londres, Judith Revel e
Antonio Negri são enfáticos em atribuir precedência ao momento da
positividade em relação à negatividade dos protestos:
[E]stes
não são movimentos caótico-niilistas, não se trata de queimar por
queimar, não se quer decretar a potência destrutiva de um no future
inédito. Quarenta anos depois do movimento punk (que, diferentemente
dos estereótipos, foi apaixonadamente produtivo), não são movimentos que
decretam o fim de todo futuro, mas que, ao contrário, querem
construí-lo.[10]
Mas
em que consiste essa construção? E o que, nesse movimento, sucede de
novo, que mereça a atenção de todos aqueles que lutam por mudança? Menos
do que recair num fetichismo do novo, como se a inovação fosse boa por
si, trata-se de interrogar sobre a diferença qualitativa do Occupy ante a memória de lutas e movimentos.
Uma
primeira tentativa poderia ser apontar na forma da ocupação, no
imperativo Ocupar, um aspecto inovador. O que, no entanto, se depara com
uma longa tradição de movimentos de ocupação, que vão das ocupações de
fábricas, universidades e teatros, até as ocupações urbanas de prédios
abandonados por grupos ativistas, sem tetos e/ou centros sociais ou
culturais autônomos. Na América Latina, por exemplo, não se podem
esquecer as ocupações protagonizadas pelo movimento zapatista ou os
assentamentos “ilegais” do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)
ou mesmo, numa acepção mais ampla, as próprias favelas como ocupações
permanentes “clandestinas”, que constroem suas instâncias locais de
contrapoder e culturas de resistência.
Outra
tentativa estaria em priorizar na apreensão da força inovadora do
Occupy a dimensão global dos protestos. É evidente que, agora, a par das
questões locais e nacionais, se estabeleceu uma rede global de
contágios entre as lutas da primavera no norte da África e Oriente
Médio, do verão europeu dos indignados do 15-M e, finalmente, do outono
americano do Occupy. Esse duplo rendimento global e local, no entanto,
tampouco difere de outros momentos da tradição de esquerda, desde as
mobilizações contra a guerra do Vietnã, o ciclo alterglobalização e seus
enfrentamentos maiores em Seattle (1999) e Gênova (2001), ou os Dias de
Ação Global contra a guerra do Iraque (2003-04). Todas essas
importantes lutas foram mundializadas por meio de uma produção de mídia e
organização política atravessando fronteiras e idiomas.
Uma
das conclusões mais frequentes, e talvez mais mal compreendidas, esteja
em assinalar no movimento Occupy a inovação da forma-rede e das
tecnologias digitais. De fato, a organização se robusteceu bastante com
as redes sociais, como IRC, Facebook, Skype, Twitter ou Meetup. Essas
mídias ajudaram a coordenar eventos, propagar mensagens e adensar os
debates e processos de formação de consenso e dissenso. Mais do que
servir de canal de divulgação, elas contribuíram para a organização elas
mesmas, como expressão e conteúdo do movimento[11]. Essas redes e mídias digitais estiveram todo o tempo enredadas e presentes nas ocupações físicas, em coengendramento. Seu papel foi, sem dúvida, fundamental, e não se resumiu a propiciar ferramentas para os objetivos da luta.
Isto não significa, contudo, que participar delas já seria suficiente por si só, ou que teriam sido a causa principal das
mobilizações, o que seria superestimar sua relevância, como se fossem
possíveis revoluções pelo Twitter ou Facebook. Por vezes, essas
tecnologias são encaradas como soluções em si próprias: a sua mera
aplicação seria capaz de conferir um sentido libertador, potenciando os
novos movimentos. É uma espécie de tecnutopia reeditada, que contorna o
fato que a transversalidade e a produtividade das redes e mídias já
constituem lugares de disputa incessante. A disseminação das tecnologias
não significa nada, – em termos construtivos de autonomia e libertação,
– se não vier acompanhada de uma incansável luta política. Assim foi
com o surgimento das ferrovias e do telégrafo, no século 19, e da
televisão e do rádio, no último século, – quando utopistas como Saint
Simon se apressaram em anunciar a chegada de uma nova era da associação
humana universal, – possibilitada pelo avanço da técnica em si mesma.
Não tardou para que se conhecerem os efeitos ambivalentes dessas
tecnologias[12].
A
luta política ainda é (e continuará sendo) indispensável para assegurar
a democracia do processo e combater as capturas, tais como tentativas
de instalar componentes de verticalidade por dentro das tecnologias, ou
reduzi-las a hypes criativos, a alguma new big idea
e produtos imateriais imediatamente comercializáveis por empresas
especializadas em parasitismo. A internet é a maior prova da
persistência da luta. A democracia não se resolve em algoritmos. Toda
produção e circulação de informação detêm rivais na medida mesma de sua
dimensão política. Dizer vivas à rede não pode nos levar a renunciar à
política.
Nesse quesito, o movimento Occupy responde ao problema com uma dupla afirmativa: yes networks, yes politics.
Além do intenso fluxo de informações nas redes e mídias, as ocupações
não prescindiram de uma existência física. Os ativistas, em maior ou
menor grau de envolvimento, ficaram efetivamente na praça. Difundiu-se o
slogan Organizar online, ocupar offline
[Organize online, occupy offline]. Os manifestantes resistiram com seus
próprios corpos, contra todo o tipo de dificuldade: repressão policial,
condições climáticas, epidemias e conflitos internos. A infraestrutura
dos acampamentos demandou um trabalho duro e disciplinado de
organização, para garantir alimentação, acomodações, higiene, segurança,
cuidados médicos e outras facilidades[13].
Para a professora e ativista do OWS, Jodi Dean:
Destacadamente,
ainda que o Occupy se utilize de redes e telas do capitalismo
comunicativo, a sua energia vem de uma vanguarda de ativistas
comprometidos e disciplinados, que sustentaram as ações nas ruas. O
emassamento físico de pessoas fora produziu um novo sentido na Esquerda
norte-americana, que a resistência coletiva era novamente possível aqui.
Os manifestantes deliberada e abertamente abandonaram o roteiro de
marchas anódinas, para adotar a nova, incessante e exigente prática da
ocupação. Eles escolheram a inconveniência em uma sociedade ideologicamente comprometida com a conveniência.[14]
Sobre esse tema, novamente Idelber Avelar:
É
exatamente por isso que nada é mais ingênuo que celebrar as novas
tecnologias digitais como instrumentos emancipatórios em si. Foi a
rebelião presencial que desatou, tanto nos EUA como na Inglaterra e no
Egito, a repressão aos fluxos digitais, com cancelamento de contas,
bloqueio de circuitos e censura a mensagens subversivas. Justamente
porque as ágoras digitais e físicas não estão separadas – ou seja,
porque elas compõem a teia do capitalismo cognitivo, não tem sentido
tecer loas ao poder liberador das novas tecnologias sem reconhecer que o
inimigo acusou o golpe precisamente porque o povo revoltoso ocupou a
praça. Nenhuma ocupação da praça acontecerá sem fluxo de energia
revolucionária digital. Nenhum trabalho de rede substituirá a ocupação
da praça.[15]
O
posicionamento das redes ativistas em acampamentos pelas cidades
determinou a qualidade do movimento. Não tanto o fato de ocupar ou o
caráter global, mas o arranjo desses elementos de uma maneira singular,
recusando as receitas preexistentes da esquerda convencional. Uma vez
situado nos territórios, o movimento Occupy pôde se defrontar não só com
os fluxos de trabalhadores pelos espaços públicos no dia a dia, mas
também com a realidade das pessoas em situação de rua, os dependentes
químicos, os desabrigados, e um longo etcétera de pessoas
inclassificáveis que se aproximam e terminam participando dos
acampamentos[16].
Esses encontros, apesar de geralmente demandantes e desgastantes,
ampliaram e redimensionaram o escopo das atividades de organização e
mobilização, conferindo-lhes maior consistência política. Graças à
existência física nas cidades, o problema dos 99% foi sucessivamente
recolocado no interior do próprio movimento[17].
4. Conclusão
Se
existe um novo, no sentido forte, como acreditamos, no movimento
Occupy, enquanto expressão de um estado de lutas globais, ele deve ser
pesquisado nesse entrecruzamento das redes e mídias com a reapropriação
efetiva da cidade. Está num plano de composição em que todos esses
elementos se arranjam produtivamente, simultaneamente como autonomia e
antagonismo. É nesse agenciamento que se determinam as coordenadas de
espaço e tempo do movimento, bem como as possibilidades de alianças e
propagações. Isso sem perder de vista o contexto de resistência ao modo
de governar do capitalismo hoje, que encontra nas finanças sua principal
rótula e seu cérebro, e que dessa maneira condiciona as formas de lutar
e ocupar.
Se
o Occupy ensina algo de fundamental para todas as ações que se
proponham à transformação radical deste mundo, é que a democracia real
não dispensa a imaginação e construção de instituições capazes de lidar
com as divisões reais da sociedade e suas violências de
classe/raça/gênero, impregnadas na própria estrutura produtiva e no
regime político. Essas instituições em construção durante o Occupy e o
movimento global de que é expressão, embora autônomas e imaginativas,
não deixam de se calcar em conflitos e desafios bastante candentes e sem
solução à vista. Enfrentá-los sem culpa ou medo, na ação coletiva, no
entanto, é o primeiro passo para outra forma de fazer política e
democracia.
Em
suma, só faz sentido pensar em democracia real quando se enfrenta o
intolerável diluído nas instituições e estruturas do capitalismo
supostamente “democrático” em vigor hoje. Este “mundo infame” de cuja
barriga só a luta, e a constante reafirmação de propósito da luta, podem
fazer rebentar o novo mundo. Se o futuro já está embutido como força
minoritária do presente, preenchê-lo de realidade consiste numa tarefa
política.
________________________________________________
5. Referências:
Textos:
ALIM, Samy H. What if we occupied language. 26/12/2011. In The New York Times. Traduzido pela Vila Vudu em 30/12/2011, no site Redecastorphoto:
AVELAR, Idelber. Sete teses sobre as ocupações de 2011. 14/02/2012. In blogue pessoal (Um Outro Olhar, na Revista Fórum).
______________. Ocupar Wall Street e o poder constituinte da multidão. 11/01/2012. In blogue pessoal (Outro Olhar, na Revista Fórum)
CAVA, Bruno. OcupaRio: l´etcaetera on marche. In revista Chimères: revue des schizoanalyses. Toulouse, outubro/2012. n.º 77, p. 55-62.
DEAN, Jodi. The communist horizon. Nova Iorque: Verso, 2012.
FUMAGALLI, Andrea; MEZZADRA, Sandro (orgs.). A crise da economia global: mercados financeiros, lutas sociais e novos cenários políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
GALEANO, Eduardo. Hay otro mundo en la barriga de este y lo reconozco en las acampadas. 28/05/2011. Transcrição de entrevista concedida na Praça Catalunha, Barcelona (Espanha). In site Periodismohumano.
HOWELL, Sharons; FELDMAN, Richard. Madison: uma chance de recomeço para os EUA. Trad. Bruno Cava. 09/03/2012. In portal Outras Palavras (http://www.outraspalavras.net/2011/03/09/madison-uma-chance-de-recomeco-para-os-eua/)
MEDINA, Javier T. Una mirada tecnopolítica sobre los primeros dias Del #15M. Maio/2011. In site Universidad Nómada.
MONKS, Kieron. Occupy must embrace the homeless and marginalised, not shun them. 07/02/2012. In The Guardian.
MOORE, Michael. America is NOT broke. 05/03/2012. In site Openmike:
OWS (texto coletivo). 2011: A year in revolt. 3/1/2012. In site oficial OWS. (http://occupywallst.org/article/2011-year-revolt/)
PASQUINELLI, Matteo. Animal Spirit: a bestiary of the Commons. Bélgica: NAi Publishers, 2008.
REVEL, Judith; NEGRI, Antonio. Il comune in rivolta. 13/08/2011. In site Universidade Nômade. (http://www.uninomade.org/il-comune-in-rivolta/)
Verbetes – Wikipedia:
List of Occupy movement protest locations.
Main Street.
Filmes:
Inside job (Charles Fergunson, EUA, 2010, 120 min.)
Rise like lions: OWS and the seeds of revolution (Scott Noble, EUA, 2011, 97 min.)
The flaw (David Sington, EUA, 2011, 78 min.).
[1] GALEANO, Eduardo. Hay otro mundo en la barriga de este y lo reconozco en las acampadas. 28/05/2011.
Transcrição de entrevista concedida na Praça Catalunha, Barcelona
(Espanha), tomada pelo acampamento do movimento dos indignados do 15 de
Maio. In site Periodismohumano. (http://periodismohumano.com/sociedad/hay-otro-mundo-en-la-barriga-de-este-y-lo-reconozco-en-las-acampadas.html) (tradução nossa)
[2] Apanhado das realizações do movimento em 2011, em OWS (texto coletivo). 2011: A year in revolt. 3/1/2012. In site oficial OWS. (http://occupywallst.org/article/2011-year-revolt/)
[3] Para uma relação abrangente dos locais ocupados em vários países, vale consultar o verbete da Wikipedia: List of Occupy movement protest locations. (http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_Occupy_movement_protest_locations)
[4] ALIM, Samy H. What if we occupied language. 26/12/2011. In The New York Times. Traduzido pela Vila Vudu em 30/12/2011, no site Redecastorphoto (http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2011/12/palavra-do-ano-e-occupy.html)
[5] Dois documentários propiciam um panorama inicial para compreender a crise: Inside job (Charles Fergunson, EUA, 2010, 120 min.) e The flaw (David Sington, EUA, 2011, 78 min.). Para um trabalho insider do próprio movimento Occupy, a principal referência ainda é Rise like lions: OWS and the seeds of revolution (Scott Noble, EUA, 2011, 97 min.). Este documentário feito com imagens dos próprios manifestantes pode ser visto online em http://www.openfilm.com/videos/rise-like-lions
[6] MOORE, Michael. America is NOT broke. 05/03/2012. In site Openmike (http://www.michaelmoore.com/words/mike-friends-blog/america-is-not-broke). Trad. VilaVudu in site Redecastorphoto (http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2011/03/nao-queremos-ser-os-estados-dos.html). HOWELL, Sharons; FELDMAN, Richard. Madison: uma chance de recomeço para os EUA. Trad. Bruno Cava. 09/03/2012. In portal Outras Palavras (http://www.outraspalavras.net/2011/03/09/madison-uma-chance-de-recomeco-para-os-eua/)
[7] Conforme verbete Main Street, na Wikipedia: (http://en.wikipedia.org/wiki/Main_Street)
[9] AVELAR, Idelber. Ocupar Wall Street e o poder constituinte da multidão. 11/01/2012. In blogue pessoal (Outro Olhar, na Revista Fórum) (http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/01/11/ocupar-wall-street-e-o-poder-constituinte-da-multidao/)
[10] REVEL, Judith; NEGRI, Antonio. Il comune in rivolta. 13/08/2011. In site Universidade Nômade. (http://www.uninomade.org/il-comune-in-rivolta/) (tradução nossa).
[11] MEDINA, Javier T. Una mirada tecnopolítica sobre los primeros dias Del #15M. Maio/2011. In site Universidad Nómada. (http://www.universidadnomada.net/spip.php?article380)
[12]
Uma referência para a crítica das novas tecnologias digitais e de rede
como essencialmente libertadoras (o “digitalismo”), em PASQUINELLI,
Matteo. Animal Spirit: a bestiary of the Commons. Bélgica: NAi Publishers, 2008. Principalmente o capítulo 2. Disponível em http://matteopasquinelli.com/docs/temp/Pasquinelli_Animal_Spirits.pdf
[13]
É curioso anotar, também, como no momento em que o governo egípcio de
Hosni Mubarak derrubou a quase totalidade dos serviços de internet da
população, no início de fevereiro de 2011, os protestos cresceram,
porque mais pessoas saíram às ruas e se envolveram na construção do
movimento. Em certo sentido, e isso é digno de reflexão, a própria Praça
Tahrir se fortaleceu, quantitativa e qualitativamente, com o apagão das
redes sociais, uma vez que, não sabendo o que fazer ou para onde ir, os
ativistas se concentraram como um enxame no ponto nevrálgico do
protesto.
[15] AVELAR, Idelber. Sete teses sobre as ocupações de 2011. 14/02/2012. In blogue pessoal (Um Outro Olhar, na Revista Fórum). (http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/02/14/sete-teses-sobre-as-ocupacoes-de-2011/)
[17] MONKS, Kieron. Occupy must embrace the homeless and marginalised, not shun them. 07/02/2012. In The Guardian. (http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2012/feb/07/occupy-homeless-marginalised)
Fonte: Quadrado dos Loucos
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