PICICA: "O ponto de vista
que guiou o nosso interesse na América Latina, na firme rede de relações
que estabelecemos nessa região do mundo, foram as lutas e os movimentos
que se seguiram à época neoliberal (os anos do “Consenso de
Washington”), até seu final. Entre a grande insurreição dos pobres de
Caracas em 1989 (o “Caracazo”), e a “greve da cidadania” que, em 2005,
destituiu o presidente Gutierrez no Equador; um extraordinário ciclo de
lutas percorre subterraneamente a América Latina inteira. O protagonismo
dos indígenas (simbolicamente relançado pelos zapatistas a partir de
1994) reabre uma história – aquela da conquista colonial – cuja
continuidade se reproduzia através dos séculos. Uma nova questão
agrária, depois da grande transformação da agricultura determinada pela
“revolução verde”, se colocou intransigentemente na ordem do dia das
mobilizações dos camponeses “sem terra”. A conquista tumultuada de
espaços de ação e da própria palavra, por parte parte das multidões de
pobres urbanos, recoloca em questão os códigos excludentes dos sistemas
sociais e políticos em vigência. Lutas operárias de tipo novo (por
exemplo, no ABC paulista) se encontram com as lutas de ocupação e a
autogestão de empresas falidas e com grande mobilização de trabalhadores
desocupados."
América Latina: entre impasse e novo conflito
11/12/2012
Por Sandro Mezzadra
América Latina: entre impasse e novo conflito social. Notas para reabrir a discussão1.
Por Sandro Mezzadra2 | Tradução: Bruno Cava
1. Não somos certamente os únicos, nos últimos dez anos, a considerar a América Latina um formidável laboratório político.
Diferentemete de outros, no entanto, interessam-nos de maneira
particular não tanto a retórica do “socialismo do século 21”, o retorno
do “populismo” ou a celebração das “nacionalizações.” O ponto de vista
que guiou o nosso interesse na América Latina, na firme rede de relações
que estabelecemos nessa região do mundo, foram as lutas e os movimentos
que se seguiram à época neoliberal (os anos do “Consenso de
Washington”), até seu final. Entre a grande insurreição dos pobres de
Caracas em 1989 (o “Caracazo”), e a “greve da cidadania” que, em 2005,
destituiu o presidente Gutierrez no Equador; um extraordinário ciclo de
lutas percorre subterraneamente a América Latina inteira. O protagonismo
dos indígenas (simbolicamente relançado pelos zapatistas a partir de
1994) reabre uma história – aquela da conquista colonial – cuja
continuidade se reproduzia através dos séculos. Uma nova questão
agrária, depois da grande transformação da agricultura determinada pela
“revolução verde”, se colocou intransigentemente na ordem do dia das
mobilizações dos camponeses “sem terra”. A conquista tumultuada de
espaços de ação e da própria palavra, por parte parte das multidões de
pobres urbanos, recoloca em questão os códigos excludentes dos sistemas
sociais e políticos em vigência. Lutas operárias de tipo novo (por
exemplo, no ABC paulista) se encontram com as lutas de ocupação e a
autogestão de empresas falidas e com grande mobilização de trabalhadores
desocupados.
Quando esse conjunto profundamente heterogêneo de
sujeitos – aqui mencionados brevemente – se encontra (por exemplo, em
Cochabamba em 2000; em 19 e 20 de dezembro de 2001, na Argentina), dele
brota uma ação insurrecional de tipo novo. Caracteriza-a o exercício de
um radical poder destituinte, que determina não somente a queda
de cada governo em particular, mas – num efeito multiplicado em escala
regional – o fim da legitimidade do neoliberalismo. Novos espaços
políticos se abrem, ocupados por sujeitos e governos que, somente em
parte (por exemplo, com Evo na Bolívia, ou Lula no Brasil), podem se
orgulhar de uma relação direta com os movimentos e lutas; enquanto
noutros casos (por exemplo, Correa no Equador, e Cristina na Argentina),
essa relação é construída a posteriori, na pretensão de consolidar as
bases de legitimidade dos governos. A ação destituinte dos movimentos é
seguida em alguns países de uma abertura para verdadeiros processos
constituintes, dentro do que (em particular na Bolívia e Equador), os
próprios movimentos se exprimem com força. Mas também onde isso não
sucede (por exemplo, no Brasil e Argentina), a inovação que se produz no
terreno da constituição material e da própria reestruturação do espaço
político durante os ditos governos “populares e progressistas” é
extremamente profunda.
É importante, apesar disso, sublinhar uma rejeição
existente em todos os países mencionados entre a ação das lutas e
movimentos, e a formação dos governos “progressistas”. Isto não
significa apontar aos primeiros a função meramente “negativa”, da
“destituição” dos governos neoliberais, reservando aos segundos as
funções “positivas” da proposição e ação propriamente política. Pelo
contrário, na América Latina, a força dos movimentos se exprime (e
continua exprimindo-se), antes de tudo na geração contínua de relações,
institutos, redes sobre o plano político, cultural, social e econômico.
Registrar a rejeição entre movimentos e governos significa mais do que
um exercício de realismo político no plano da análise. Significa,
também, assumir um ponto de vista que, exaltando a autonomia dos
movimentos, consente em fotografar, sob o perfil técnico, um momento
histórico determinado, quando se possibilita uma experimentação
institucional radicalmente inovadora; uma capaz de contar com a
conversão da força política dos movimentos em força produtiva – tanto
sob o perfil político, quanto o de pesquisa de um novo modelo de
desenvolvimento. Nesses anos (no Brasil como na Argetina, no Equador
como na Bolívia), nos parece possível ver exemplos concretos da nova
relação entre instituições e movimentos; tudo bem que em formas
“espúrias” e jamais com a pureza de um modelo. Buscamos seguir os
desenvolvimentos latinoamericanos, apostando no caráter materialmente
expansivo das experimentações em ato (sem com isso evitar, obviamente,
de evidenciar as características problemáticas e os bloqueios que do
início ao fim as caracterizavam). Ao mesmo tempo nos pareceu essencial o
“fôlego” regional dessas mesmas experimentações, o lançamento de
processos de integração de tipo novo, que parecem pôr as condições –
dentro da crise da hegemonia estadounidense – para a conquista de novas
bases, sobre as quais gerir a inserção nos mercados mundiais e relações
com o capital financeiro.
2. Um balanço do ciclo político
que, na América Latina, foi definido como “pósneoliberal”, demandaria
uma análise profunda dos desenvolvimentos em cada país. Reservando essa
análise a intervenções subsequentes (também da parte dos companheiros
latinoamericanos), vale a pena de qualquer forma evidenciar – sobre a
base de recentes viagens, discussões e leituras – algumas tendências
gerais. E a nós parece que essas tendências indicam um impasse,
com relação ao caráter de inovação que indicamos sumariamente no ponto
anterior. Entretanto, se registra um endurecimento substantivo, uma
reorganização do processo político inteiro, ao redor da figura do
Estado, que muitos celebram o “retorno” e a “recuperação da soberania”. É
uma tendência que assume características extremas no caso da Venezuela
de Chávez, mas também se manifesta no caso, frequentemente apresentado
como oposto, do Brasil de Dilma Rousseff. Em muitos países (aí não, cabe
reconhecer, no Brasil), a centralidade do Estado coincide com a posição
de um líder único, identificado com a continuidade do processo de
transformação. A disputa na Argentina ao redor das hipóteses de mudança
constitucional, para permitir a Cristina Fernandez Kirchner concorrer
pela terceira vez nas eleições presidenciais é, nesse sentido,
emblemática. Mas não menos importante em uma experiência de governo em
que prevalecem as retóricas tecnocráticas e jacobinas – na posição, por
exemplo, de Correa no Equador, onde incidentalmente à Constituição de
2008, se ampliaram muito os poderes do Presidente.
Neste quadro, se é verdade que a acusação de
“autoritarismo”, da parte da direita, é na maioria das vezes puramente
instrumental; um problema se põe em qualquer caso para quem observa,
sejam a formação e a substituição da liderança, sejam (e sobretudo) os
processos de formação e os critérios de legitimação da decisão política.
O tema do “retorno do Estado pode ser enfrentado em termos mais gerais
sem ficar “deslumbrado” com a retórica dos governos “progressistas” (que
celebram a capacidade renovada do Estado de controlar e “temperar” o
desenvolvimento capitalista), mas ao mesmo passo sem renunciar a uma
análise atenta das novas funções sociais e econômicas (mas também de
regulação, por exemplo, num campo crucial como o da mídia) que o Estado
assumiu, contraditoriamente, em muitos países latinoamericanos.
Indubitavelmente, para retomar uma expressão do vice-presidente
boliviano Álvaro Garcia Linera, o Estado é hoje um “campo de luta”, no
caminho da ruptura dos dispositivos de exclusão que, historicamente, —
agindo sobre as linhas da raça, gênero e classe, — têm organizado o
espaço político, assegurando a reprodução e continuidade da élite.
Aqui, no entanto, apresenta-se um primeiro problema: a ruptura dos
dispositivos de exclusão, radicados profundamente na história e na
sociedade latinoamericana, não pode ser pensada se não em termos processuais,
favorecendo e exaltando a continuidade das ações – necessariamente
extrainstitucionais – dos sujeitos que nesses dispositivos sofreram e
continuam sofrendo os efeitos. Aqui, se requalifica a rejeição entre
movimentos e governos, apontando para a trama virtuosa de temporalidades diversas da ação política que os caracterizam.
Pelo contrário, a ênfase sobre o “retorno do
Estado” se faz acompanhar muito frequentemente de políticas de “inclusão
social”, que apontam inteiramente a dinâmicas de redistribuição da
riqueza e estímulo ao consumo, para promover uma nova cidadania
democrática. Esclarecemo-nos: estamos aqui diante de um traço
inegavelmente positivo do “retorno do Estado”. Nada pode ser mais
distante de nossa perspectiva que lamentos moralistas (difusos na
América Latina como alhures), sobre o “consumismo popular”: o acesso,
inegável como a inauguração de políticas redistributivas limitadas, a
novos consumidores da parte dos pobres e subalternos, em muitos países
latinoamericanos é, antes de tudo, conquista de poder social,
problematização das hierarquias e dispositivos de assujeitamento. Mas a
retórica e a política que se referem ao “retorno do Estado” parecem
promover, através da expansão do consumo, uma integração social que
corre paralela à despolitização da sociedade. A “política” parece
inteiramente reabsorvida num Estado imaginado como “puro” — ou talvez
mais precisamente como purificável das incrustrações “corporativas”, ou
ainda do condicionamento por “interesses” variavelmente qualificados. É
inútil dizer que os “interesses” que contam – a começar pelos das
grandes multinacionais – foram amplamente reorganizados (amiúde, sem
dúvida, pagando os preços) ao reconquistar poder negocial e influência
dentro das novas configurações políticas. Porém, ao mesmo tempo, e é
isto que conta mais, nos parece que a evolução das políticas sociais nas
redes de governos “progressistas” dos principais países
latinomaericanos se caracterizou, nos últimos anos, por uma marcha ré,
com relação às características de inovação em que haviam surgido na fase
precedente. E que a retórica de expansão dos direitos e da inclusão
social perderam progressivamente substância material, arriscando
reduzir-se à apologia de uma série de “concessões” do alto.
3. O “retorno do Estado” se
insere materialmente em um modelo de desenvolvimento cuja continuidade
não foi colocada em discussão nos últimos dez anos. Parece importante,
nesse sentido, o debate crítico que em toda América Latina se desdobra
ao redor da categoria do “neoextrativismo”. O que se pretende com esse
termo é, exatamente, um modelo de desenvolvimento que aponta
essencialmente à intensificação da exploração de recursos naturais,
tanto mediante a abertura de novas grandes minas e poços petrolíferos,
quanto o cultivo extensivo de soja, para obter da crescente demanda
internacional (em primeiro lugar asiática) os recursos necessários ao
financiamento de políticas sociais e o lançamento de dinâmicas
redistributivas. Também aqui, não nos parece produtiva a tonalidade
moralista que muitas vezes encontramos no debate: não pretendemos negar,
em princípio, a possibilidade do uso de recursos naturais como asset
estratégico, em vista de uma gestão inovadora das novas condições de
interdependência e da pesquisa de um novo modelo de desenvolvimento. A
impressão é, no entanto, que nos últimos anos o “neoextrativismo”
endureceu, colocando-se a si próprio como indiscutível modelo de desenvolvimento, com
consequências pesadíssimas não só do ponto de vista ambiental, mas
também social. A dura disputa entre diversos países latinoamericanos foi
acompanhada dessa tendência, reunindo movimentos camponeses e indígenas
(na Argentina como na Bolívia, no Equador como no Peru). Parece-nos
emblemático o fechamento da dialética entre desenvolvimento e buen vivir que encontrou reconhecimento constitucional, por exemplo, no Equador e na Bolívia.
A retórica “desenvolvimentista” (para introduzir
outro termo amplamente usado nos debates latinoamericanos) de governos
“progressistas” continua a apresentar o extrativismo como base para um
desenvolvimento econômico de tipo substancialmente industrial (e, em
alguns casos, pós-industrial, centrado na promoção da “economia do
conhecimento”). A nós parece, todavia, que se trata simplesmente de
retórica. A função de içamento exercida pela exportação de matérias
primas não equivale à particular dinâmica de expansão real do trabalho
assalariado e formal, mas, em vez disso, a difusos processos de
precarização (não menos em Equador, onde o governo vetou mudanças nos
contratos de trabalho: a duração média de novos contratos é de três
meses). É um ponto de decisiva importância também para aquele que
observa o “retorno do Estado”: contrariamente o que em geral se
sustenta, esse “retorno” não parece, na verdade, anteceder a “inclusão
social” e a cidadania democrática centrada no trabalho, segundo o modelo
de estado social vigente na Europa ocidental do segundo pós-guerra. Há
aqui um primeiro elemento de fragilidade substancial, tanto do
neoextrativismo quanto do “retorno do estado” (bem como seu cruzamento
na conjuntura presente latinoamericana). A nós parece que a elevação do
consumo dentro do novo modelo de “inclusão social”, em presença das
condições difusas de precarização, se presta a abrir espaço para uma
intervenção renovada (própria da função de financiamento do consumo) de
uma outra “potência” que funciona segundo lógicas fundamentalmente
extrativistas: isto é, o capital financeiro. E em muitas
metrópoles latinoamericanas (o exemplo do Rio de Janeiro, com a
incumbência de organizar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de
2016, é particularmente instrutivo) se representa em termos
particularmente agressivos a aliança entre capital financeiro e capital
imobiliário, com um ataque violento aos moradores das favelas, na
perspectiva de “libertar” espaços para a valorização do capital.
Trata-se, evidentemente, de frontes conflitivos,
sobre o que já se exprimem práticas de resistência e de
auto-organização. Muito raramente, no entanto, os governos
“progressistas” procuram hoje colocar-se em sintonia com essas práticas,
somente do que poderia advir o renovamento democrático deles próprios.
Um segundo elemento de fragilidade substantiva do modelo que na América
Latina está se definindo ao redor do “neoextrativismo” e do “retorno do
estado” consiste do fato que, enquanto muitos países combatem batalhas
sacrossantas contra o capital financeiro na questão da dívida (como, por
exemplo, nesta semana, a Argentina contra os ditos “fundos
especulativos”), os preços das commodities são, em boa medida,
fixados pelos mercados financeiros globais. A dinâmica financeira
exerce, assim, um papel essencial, do ponto de vista da estabilidade
econômica do modelo, que depende, além disso, da demanda global das
exportações. O esfriamento da demanda asiática (em particular, chinesa)
começa, destarte, a determinar uma desaceleração do crescimento, uma
queda dos salários reais, e tensões sociais significativas em muitos
países latinoamericnos (em particular, na Argentina, onde uma forte
inflação multiplica esses processos). A crise global está começando a
golpear também a América Latina, depois de por muitos anos ter sido
vista e efetivamente administrada como uma ocasião extraordinária para o
desenvolvimento.
4. Nesse contexto, seria hoje
particularmente importante um aprofundamento dos processos de integração
em escala “regional”, através da multiplicação da partnership,
dos acordos de cooperação e dos projetos compartilhados. Parece-nos, no
entanto, que também sobre esse terreno se deva registrar um recuo,
primeiro de tudo, por quem acompanha a “opinião pública” e o “debate
político”. Nos primeiros anos do novo século, a dimensão “regional” era
imposta com grande força neste sentido, constrangendo a reformular a
discussão dos problemas e desenvolvimentos “internos” em cada país,
dentro de um espaço supranacional que voltava a denominar-se com uma
fórmula de José Martí, nuestra America. Esse novo “senso comum”
foi antecipado, ainda mais uma vez, nos movimentos, em processos
concretos de integração. O “retorno do estado” parece, no entanto,
coincidir, no fundo de maneira não surpreendente, com o retorno da
“nação” da prioridade de seus interesses como critério essencial da
orientação da política externa de cada governo. Não faltam, decerto, as
declarações – não necessariamente “rituais” – de solidariedade quando de
conflitos em que se envolvem países isoladamente (por exemplo, a
Argentina na questão das Malvinas, ou o Equador na concessão de asilo a
Assange). Mas no conjunto se assiste hoje na América Latina a um retorno
a relações “bilaterais” entre os estados, enquanto sob o perfil
econômico os governos exercem um papel de suporte para as “suas”
empresas, no processo de projeção das atividades e dos interesses no
interior de outros países latinoamericanos. Colossos como a PDVSA
venezuela e a Petrobrás brasileira combinam, assim, lógicas capitalistas
e lógicas nacionais, em seu protagonismo no setor extrativista.
Ao mesmo tempo, ressurgem, com a força das coisas
na ausência de uma vontade política em sentido oposto, lógicas
hegemônicas que condicionam, sobretudo, o comportamento de dois dos
maiores países latinoamericanos: o Brasil e a Argentina. O primeiro,
arrastado pela potência de suas dimensões geográficas e econômicas,
parece apontar hoje essencialmente para a consolidação do eixo BRIC (ou
melhor, para a cooperação “sul-sul” com outras “potências emergentes”),
subordinando neste objetivo as relações internas à América Latina. A
segunda se dobra em si mesma adotando políticas protecionistas. Nestas
condições, é deixado fundamentalmente a cada país não somente a gestão
das relações com as multinacionais (em particular, aquelas ativas no
setor “extrativista”), mas também com a China, sempre mais presente na
América Latina não só do ponto de vista financeiro, mas também, da
construção de infraestrutura e comércio (com relações que envolvem o
próprio setor informal). A nós parece evidente que uma maior integração
na gestão dessas relações criaria condições para impor não somente
“termos de barganha” mais favoráveis, mas também condições qualitativas e
padronizadas mais coerentes com os projetos de aprofundamento da
democracia, que os governos “progressistas” continuam a reinvindicar-se.
Um âmbito particularmente delicado para verificar a importância dos
processos de integração é, ademais, a moeda. No Equador, um dos
países onde se fala de “retorno do Estado” e “recuperação da
soberania”, o único valor em circulação desde 2000 é o dólar.
Não só o governo de Correa não pôs em discussão a circunstância,
verdadeiramente difícil de conciliar com a “recuperação da soberania”,
mas também os seus opositores de esquerda a consideram “tabu político”
(pela via da associação entre o dólar e estabilidade econômica difusa,
em particular dentro das “classes médias”, depois da crise bancária
devastadora de 1999). O fato é, todavia, que os economistas mais
informados sustentam que as bases macroeconômicas da “dolarização” estão
cada vez menos incidentes, e em pouco tempo se deverá encontrar uma
alternativa. O “contraexemplo” argentino, com políticas que se dirigem à
recuperação da soberania monetária plena e à “pesificação” da economia,
porém pagando o preço de alta inflação e pesadíssima desvalorização,
mostra claramente que a via da integração regional seria também, deste
ponto de vista, aquela a percorrer.
O impasse que buscamos colocar em foco
com estas notas não nos induz de maneira alguma ao pessimismo. Nesses
anos, na América Latina, tanto a ação dos movimentos, quanto dos
governos, construíram materialmente um novo terreno de desenvolvimento
político e uma nova dinâmica de forças. Algumas rupturas, a nova
legitimidade dos sujeitos saídos da “subalternidade”, o aprofundamento
do próprio conceito de democracia, nos parecem irreversíveis, por muitas
razões. Sobre essa base, no entanto, nos parece também se esteja
desenhando um dispositivo de contenção das novas forças emersas
na cena latinoamericana, no que o “retorno ddo Estado”, na continuidade
de um modelo de desenvolvimento “neoextrativista”, se traduziria
essencialmente em dinâmicas (mais ou menos moderadas) redistributivas,
na base da capacidade de cada governo gestir a inserção no mercado
mundial. Indicamos aqueles que nos parecem alguns elementos essenciais
de fragilidade desse dispositivo. Mas, mais em geral, estamos
convencidos que na América Latina existem hoje as condições para
forçar-lhe a rigidez, para reabrir a dinâmica política em direção da
conquista de bases mais sólidas de liberdade e igualdade. Estamos,
outrossim, convencidos que essa reabertura pode vir somente de um
relançamento dos movimentos e sua autonomia, também se a própria
referência aos movimentos deve ser requalificada – para não ficarmos
apenas na retórica – nas novas condições determinadas pelo
desenvolvimento da última década. Dentro do novo conflito social de
que se começa a falar na América Latina, novas contradições e novos
sujeitos se exprimem ao lado de antagonismos herdados do passado. As
estruturas institucionais aparecem, com frequência, inteiramente
decaídas em relação às configurações conflitivas emergentes, e é
certamente possível imaginar alianças e convergências táticas entre
estas e os movimentos. É sobre o conjunto dessas questões que
gostaríamos de propor a reabertura do debate, também dentro do “dossiê
América Latina” que, aliás, abrimos no site da UniNômade [Itália].
NOTAS:
Para um relato sobre discussões da Oficina UniNômade com Sandro Mezzadra no Rio de Janeiro, em novembro: http://uninomade.net/tenda/conversa-com-sandro-mezzadra/
1Colaboraram
no artigo Michael Hardt e Toni Negri. Publicado originalmente no site
da UniNômade Itália, 02/12/2012, disponível online em http://www.uninomade.org/america-latina-tra-impasse-e-conflitto-sociale/
2Sandro Mezzadra é professor de ciência política na Universidade de Bolonha e participa da rede Universidade Nômade.
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