dezembro 19, 2012

"Psicologia, religião e direitos humanos: onde está o limite?", por Luiz Eduardo V. Berni

PICICA: "O fundamentalismo religioso é, talvez, uma das maiores ameaças ao estado de direito na contemporaneidade, como um resquício da constante e milenar tensão entre política e a religião. O cerne do fundamentalismo reside numa postura de “defesa da verdade religiosa contra o que é percebido como perigos da Modernidade, como o caráter histórico e subjetivo da fé, assim como pela aversão ao socialismo e a busca da recuperação da base religiosa da sociedade” [FUNARI, P. P. VASCONCELLOS, Pedro Lima: “Fundamentalismos. Matrizes, Presenças e Inquietações”. São Paulo, Paulinas, 2008, ISBN 9788535623659. 130 pp. Revista de Estudos da Religião setembro / 2009 / pp. 124-126. Disponível aqui, acessado em 28/11/2012]. Daí se justifica a existência de uma Frente Parlamentar Evangélica. A rejeição de uma hermenêutica histórica leva a uma exegese literal, ou seja, à compreensão interpretativa ipsis litteris do texto sacro e, portanto, a uma negação do relativismo e do pluralismo da cultura. No caso do cristianismo, no Brasil esse enfoque recai muitas vezes sobre populações entendidas como em estado de pecado, como os indígenas, os homossexuais e os adeptos de religiões de matriz africana. Como foco secundário, mas não menos relevante, está que a “espiritualização do corpo”, se opondo às religiões de matriz africanas que, por exemplo, enfatizam “corporificação do espírito”."

MÍDIA & PRECONCEITO

Psicologia, religião e direitos humanos: onde está o limite?

Por Luiz Eduardo V. Berni em 18/12/2012 na edição 725

Nos últimos tempos, a mídia tem sido acometida por um boom de informações relativas a um suposto preconceito religioso do Sistema Conselhos de Psicologia contra uma psicóloga que, reportando-se ao Artigo 5º da Constituição Federal, afirma “sofrer perseguição religiosa” por parte de seu órgão de classe [LOBO, M. – Fala do Processo Ético – CFP Perseguição Religiosa e Preconceito. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=CLMBMkk-xsM acessado em 27/11/2012]. A psicóloga afirma que o CFP deu-lhe um prazo de quinze dias para que ela tirasse de suas redes sociais “tudo que a ligue a Deus”. A profissional afirma que se recusou a cumprir a determinação do Conselho, assegurando que “dentro de seu consultório, nunca induziu ninguém a convicções políticas, religiosas ou de orientação sexual”, conforme preconiza o Código de Ética Profissional da categoria em seu Artigo 2º, b, “Ao psicólogo é vedado induzir a convicção política, filosófica, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções” [CFP – Código de Ética Profissional do Psicólogo, disponível aqui, acessado em 27/12/2012]. A profissional em suas redes sociais apresenta-se como “psicóloga cristã”, suposto motivo que justificaria a ação do CRP-08.

A laicidade do Estado

As polêmicas envolvendo a temática não terminam na questão apresentada acima, ao contrário aprofundam-se, na verdade, a origem teria sido um posicionamento assumido pela psicóloga, afirmando ser viável a “Cura Gay”. Em matéria publicada no Portal Terra pode se ler a seguinte fala atribuída à psicóloga “a retirada da homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID) em 1990 foi por votação, o que indicaria um caráter não científico da decisão. A ciência ainda não tem entendimento do que é a homossexualidade. Não tem pesquisa que comprove que a homossexualidade é genética” [TERRA, “Debate sobre 'cura gay' gera polêmica na Câmara”, disponível aqui, acessado em 27/11/2012]. Neste quesito o ponto assume proporções mais profundas, pois se alia ao Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 234/11 do deputado João Campos (PSDB-GO), da Frente Parlamentar Evangélica, e visa sustar a aplicação de dois dispositivos da Resolução CFP 1/99 que “estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual”. Especificamente, o que diz que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”, e outro que afirma “os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica [BRASIL, Câmara dos Deputados Federais – “Projeto susta resolução de psicólogos sobre preconceitos contra homossexuais”, disponível aqui, acessado em 27/11/2012]. A questão já suscitou três audiências públicas na Câmara dos Deputados em Brasília. A psicóloga que também que é também “missionária e pregadora da palavra de Deus” [LOBO, M. “Carta Aberta em resposta a Lanna Holder”, disponível aqui, acessado em 27/11/2012, participou das três e afirma com clareza ser capaz de distinguir seu papel profissional de sua atuação religiosa.

A despeito dos efeitos midiáticos que a questão teve para a psicóloga, que tem estado em muitos espaços de exposição, o assunto traz, pelo menos, três questões relevantes que precisam ser consideradas com atenção. Primeiramente cabe abordar o assunto das profissões, no caso da Psicologia, frente às pressões sofridas pelo fundamentalismo religioso, das missões, sobre o fazer profissional. Depois, quais as relações possíveis entre o conhecimento científico e o conhecimento religioso/espiritual e por fim como ficam os Direitos Humanos nessas relações.

As profissões regulamentadas no Brasil são geridas por autarquias federais denominadas geralmente como “Conselhos”. A Psicologia que em 2012 comemorou seu cinquentenário, com uma grande “mostra de práticas”, em sua maioria com grande adesão aos direitos humanos, é a maior categoria profissional de psicólogos do mundo. Segundo dados do CFP o Brasil conta com 210 mil psicólogos, enquanto nos EUA estes são aproximadamente 130 mil, e na União Europeia, cerca de 90 mil. O papel de um órgão de classe é prioritariamente o de orientar, fiscalizar e disciplinar a profissão, de modo que os serviços profissionais oferecidos à sociedade primem pela qualidade. A forma de gerir o fazer profissional é sempre pautada pela ética, assim as diferentes categorias discutem entre si os preceitos éticos de seu fazer profissional, definindo um corpo normativo básico para a conduta profissional, normalmente denominado de “Código de Ética Profissional”. Portanto, trata-se de um processo democrático que envolve muitas instâncias de discussão. Foi assim que os psicólogos ao longo de sua história profissional na sociedade brasileira estabeleceram o código atual, o terceiro de sua história, que é acessível a qualquer pessoa que consulte os sites das 20 regiões que se articulam com o Conselho Federal.

Ao lado do Código de Ética existem as Resoluções que regulamentam a ação profissional em campos que necessitam de um olhar mais acurado por parte do parte dos profissionais, como é o caso daquele em que se inserem as questões da sexualidade humana. Um campo que constitui tabu em muitas sociedades, na nossa inclusive. Assim, depois de um longo processo de discussão com a categoria e com a sociedade surgiu, em 1999, a Resolução CFP 01, que se encontra amplamente lastreada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. A vida de uma resolução, sua revisão ou revogação depende da configuração do campo ao qual ela se dirige. A perenização da Resolução CFP 001/99 indica a necessidade de sua manutenção, pois situações como as descritas nos parágrafos anteriores ainda são muito frequentes.

No campo dos direitos humanos a laicidade do Estado e da Ciência assume papel preponderante. É a inquestionável laicidade que garante que o estado de direito preconizado no Artigo 5º da Constituição Federal, possa ser exercido por todos. É a laicidade que sustenta a diversidade religiosa, e que refreia tentativas fundamentalistas de dominação, como muitas das propostas da Frente Parlamentar Evangélica. Assim, ações organizadas pela religião frente ao Estado necessitam de constante vigilância e a Psicologia tem um papel fundamental neste cenário.

Perigos do fundamentalismo religioso

O fundamentalismo religioso é, talvez, uma das maiores ameaças ao estado de direito na contemporaneidade, como um resquício da constante e milenar tensão entre política e a religião. O cerne do fundamentalismo reside numa postura de “defesa da verdade religiosa contra o que é percebido como perigos da Modernidade, como o caráter histórico e subjetivo da fé, assim como pela aversão ao socialismo e a busca da recuperação da base religiosa da sociedade” [FUNARI, P. P. VASCONCELLOS, Pedro Lima: “Fundamentalismos. Matrizes, Presenças e Inquietações”. São Paulo, Paulinas, 2008, ISBN 9788535623659. 130 pp. Revista de Estudos da Religião setembro / 2009 / pp. 124-126. Disponível aqui, acessado em 28/11/2012]. Daí se justifica a existência de uma Frente Parlamentar Evangélica. A rejeição de uma hermenêutica histórica leva a uma exegese literal, ou seja, à compreensão interpretativa ipsis litteris do texto sacro e, portanto, a uma negação do relativismo e do pluralismo da cultura. No caso do cristianismo, no Brasil esse enfoque recai muitas vezes sobre populações entendidas como em estado de pecado, como os indígenas, os homossexuais e os adeptos de religiões de matriz africana. Como foco secundário, mas não menos relevante, está que a “espiritualização do corpo”, se opondo às religiões de matriz africanas que, por exemplo, enfatizam “corporificação do espírito”.

Essa visão (r)estrita do texto religioso justifica as missões religiosas e, consequentemente a existência do missionário, como a psicóloga Marisa entende seu papel quando não está no consultório [LOBO, M. “Carta Aberta em resposta a Lanna Holder”, disponível aqui, acessado em 27/11/2012]. Todavia, apesar de afirmar competência em distinguir seu papel missionário de seu papel profissional, seu discurso mostra perigosa ambiguidade e pende para o fundamentalismo quando, por exemplo, no programa Super Pop [Rede TV, programa Super Pop exibido em agosto de 2012. Disponível aqui, acessado em 28/11/2012] afirmou compreender que “a homossexualidade não seja doença, e que o psicólogo não pode obrigar um homossexual a tratamento de algo que não é entendido como doença”. Entretanto, momentos após fazer essa afirmação, a profissional se contradiz ao afirmar “o fato da homossexualidade ser admitida como usual na sociedade não a torna normal”. Asseverando como critério de normalidade a “natureza biológica” reportando, também, a uma estatística de aceitabilidade da ordem de 100% da população, ou seja, uma total falta de compreensão de critérios de normalidade aceitos pela ciência. Além disso, seu posicionamento nega a dimensão da cultura sobre a formação das subjetividades e invalida as próprias raízes da ciência Psicológica que ela representava naquele momento, que vão muito além da Biologia. Assim se aproxima de forma flagrantemente de suas concepções fundamentalistas, revelando, ainda, uma “homofobia cordial” [CASTRO, Rosangela de Barros. Amor e ódio em relações homoeróticas. Dissertação de Mestrado. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2007, apud MELO, C.V.G, CASTRO, R. B., MIRANDA H. “As Relações Raciais e a Psicologia”. Disponível aqui, acessado em 28/11/2012] uma vez que a profissional afirma “amar os homossexuais”.

O fundamentalismo e a construção da subjetividade

O fundamento moral do discurso religioso pode mudar de acordo com o momento psicológico das pessoas, ou de acordo com a exegese que se faça do texto religioso. No já citado programa Super Pop, a psicóloga Marisa Lobo, foi confrontada pela pastora da Igreja “Comunidade Cidade de Refúgio”, e praticante da “teologia da Inclusão” Lanna Holder, cujo caso pode ser emblemático para se entender a fugacidade do discurso fundamentalista. Lanna se converteu evangélica aos 21 anos, depois de um período de nove anos em que havia se assumido como homossexual, inclusive vestindo-se como homem [Lanna Holder – “Testemunho de Ex-lésbica”. Disponível aqui, acessado em 28/111/2012]. Ao converter-se “crente” muda sua orientação sexual para a heterossexualidade, casa, tem um filho e fervorosamente prega uma fé fundamentalista contra os pecados da homossexualidade. Sua pregação inflamada a converte numa liderança de expressão internacional como “um milagre de Deus”. Com discurso envolvente, vai se firmando como liderança de expressão. Entretanto seu projeto de conversão não logrou sucesso, pois Lanna volta a assumir sua homossexualidade. Hoje, mais madura, casada com a também pastora Rosana Rocha e em postura serena afirma que “que no passado, pregou uma realidade que, na verdade não vivia” [Rede TV!, programa Manhã Maior, acessado em 28/11/2102]. Como Lanna, há relatos de outras pessoas, pastoras ou não, que mudaram sua orientação sexual. Isto demonstra tanto a existência do fenômeno, como também a variabilidade da sexualidade. Todavia é extremamente necessário destacar que a mudança de orientação sexual que pode ocorrer durante a vida não se dá de forma voluntária.

Bloqueio do diálogo entre psicologia e religião

É muito comum a partir da argumentação aqui levantada que “dá nome aos bois” tomar-se a questão como pessoal. Esse não deve ser o caso, pois a pessoas citadas estão na grande mídia, aliás, são apenas exemplos de algo maior e que poucas vezes é abordado. Na verdade, em parte o problema é reflexo de uma formação profissional deficitária, distante da realidade social do Brasil, muito direcionada por perspectivas de uma psicologia que se construiu na esteira de outras sociedades, como a europeia e estadunidense. Formadas por instituição de ensino que visam o lucro e dão pouca ênfase à pesquisa. Dos 396 cursos de Psicologia que existem no Brasil, 211 são oferecidos por instituições que visam o lucro e dão pouca ênfase à qualificação docente que, na maioria dos casos é ainda horista e pode pouco se dedicar à pesquisa [LISBOA, F.S. e BARBOSA, A. J. G. A formação em Psicologia no Brasil: Um perfil dos cursos de formação. Psicologia Ciência e Profissão, 2009, 29 (4), 718-737. Disponível aqui, acessado em 21/11/2012]. Os currículos dos cursos oferecem, em geral, poucos elementos que ajudem os psicólogos em formação a entenderem a diversidade religiosa e cultural do Brasil.

Isso, todavia está mudando, as novas DCN (2011) para cursos de graduação em psicologia disponível no site da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) apresenta avanços para contextualização. As novas diretrizes, assim como o Sistema Conselhos de Psicologia se orientam por perspectivas psicossociais e encampam perspectivas relevantes para a construção de uma psicologia que possa atender às necessidades dos brasileiros e brasileiras, como de fato vêm ocorrendo no Sistema Conselhos de Psicologia ao pautar e se posicionar em temáticas que enfatizam a defesa dos Direitos Humanos.

Mas, se por um lado a psicologia deva se afastar do corpo doutrinário da religião, sobretudo acautelando-se contra o fundamentalismo dogmático, em momento algum nega à religião ou à espiritualidade sua relevância na construção social. Os estudos sobre o coping religioso ou espiritual [PANZINI, R.G. e BANDEIRA, D. R. Coping Enfrentamento Religioso/Espiritual. Revista de Psiquiatria Clínica, Vol. 34, Suplemento 1, Edição Especial Espiritualidade e Saúde Mental, 2007. Disponível aqui, acessado em 28/11/2012], ou o enfrentamento de adversidades por meio da religiosidade demonstram de maneira inequívoca o valor dessas crenças na vida das pessoas. Porém uma coisa é a religião como estratégia de enfrentamento local/pessoal, outra coisa é o dogma de uma religião ser imposto à sociedade como forma de conduta, como propõe o PDC do deputado evangélico.

O perigo representando pelas posturas fundamentalista em relação aos avanços psicossociais faz com que o debate sobre a espiritualidade/religiosidade avance pouco no Sistema Conselhos, pois muitas pessoas têm medo de que, ao discutirem a temática possa haver algum tipo de retrocesso no distanciamento crítico frente ao fundamentalismo.

Ao mesmo tempo o diálogo aberto pelo sistema conselhos junto aos povos indígenas do Brasil e a premência de discussão da Psicologia sobre as Práticas Alternativas e Complementares, uma vez que há uma Política Pública que as fomenta no SUS e, considerando que essas práticas trazem em seu cerne racionalidades eivadas de espiritualidade, como a Medicina Tradicional Chinesa-Acupuntura, permitida ao Psicólogo pela Resolução CFP 05/02, além de outras práticas como as ligadas à Antroposofia que se fundamentam no conhecimento teosófico, devem levar o sistema a vencer seus medos e avançar na discussão.

Mas qual é o limite? Entendo que o limite está acima da religião e da ciência. O limite para o diálogo da ciência psicológica com a religiosidade/espiritualidade deve ser obrigatoriamente o dos Direitos Humanos, que devem ser encarados numa perspectiva de construção sócio-histórica permanente lastreada pela laicidade da ciência e do Estado.

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[Luiz Eduardo V. Berni é psicólogo, São Paulo, SP]

Fonte: Observatório da Imprensa

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