PICICA: “O inimigo dos palestinos é o mesmo
inimigo dos mapuches, dos curdos. O inimigo é o mesmo, ele só muda de
língua, de rosto. Se o inimigo é um, a luta também deveria ser uma só”. Carlos Latuff
LATUFF: “FECHEM A BÍBLIA. PRECISAMOS LER LIVROS SOBRE POLÍTICA”!
– 07/12/2012
Os dias tinham sido muito quentes na
Porto Alegre do Fórum Social Mundial Palestina Livre, mas a madrugada
entre sexta-feira e sábado foi lavada pela chuva e o calor dava uma
trégua. Eu corria para arrumar as malas, tomar banho e guardar tudo – a
pressa de quem sabe que tem sair do quarto. Pressa desnecessária: um
albergue é bem menos caxias do que um hotel, além de bem mais barato.
Lancei o keffiyeh (lenço árabe) à cabeça para não me molhar
tanto e tomei um táxi rumo ao campus central da UFRGS, onde seria a roda
de bate-papo com Carlos Latuff.
O salão não estava cheio e o painel
anterior ainda não tinha terminado quando o relógio avisava que já eram
12h15min. Dois ativistas, um tunisiano e um marroquino, aproximaram-se
de mim para me perguntar se eu sabia a senha da internet. Dada a
resposta positiva, quedaram-se a conversar. Uma estadunidense se juntou a
nós e, por fim, uma belga refestelou-se de alegria ao escutar a língua
francesa (“vou ficar por aqui”). Pedi licença e fui achar um lugar na
roda de cadeiras que fora feita para a conversa com Latuff. Assim como
em muitos espaços do Fórum, acabei servindo de tradutor para quem não
falava português – dessa vez para um ativista escocês.
Carlos Latuff é um chargista brasileiro
famoso por sua atuação pró-Palestina. Muitos de seus desenhos já rodaram
o mundo a ilustrar as lutas de vários povos. A identidade visual do
Fórum era, ela mesma, de sua autoria. Latuff nunca cobra os desenhos que
faz sobre a Palestina; são todos copyleft, podem ser reproduzidos e usados livremente.
Ele começou sua fala se apresentando e
se dizendo insatisfeito com o Fórum. Segundo Latuff, a ausência de
pessoas da Faixa de Gaza naqueles dias só mostrava que a organização do
evento estava ao lado de Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade
Nacional Palestina. Abbas é também o líder do Fatah, o grupo político
predominante na Cisjordânia, que não se acerta com o Hamas, grupo que
governa Gaza. Esse posicionamento lhe renderia uma discussão com uma
membra da organização que, ao final da conversa, tentaria explicar a tal
ausência a Latuff como sendo por própria escolha do Hamas – o que não o
convenceu.
O resto da conversa, antes das
perguntas, dividiu-se sobre dois pontos. O primeiro dizia respeito à
mídia. Para Latuff, “temos que construir uma alternativa para dar voz
aos palestinos”. Não podemos esperar que a mídia hegemônica, sionista,
milagrosamente ouça os reclames dos movimentos sociais – isso não lhes
interessa. “Não se pode contar com a imprensa. Precisamos encontrar
espaços alternativos que disputem espaços”.
O segundo ponto foi sobre a crítica que
seu trabalho seguidamente recebe de ser anti-semita, principalmente por
frequentemente usar a bandeira de Israel nas suas charges. Para ele, o
uso da Estrela de Davi e de outros símbolos religiosos é uma tática do
Estado de Israel para desvirtuar a discussão. Parece que tudo que se
fale sobre o país está, no final das contas, criticando o judaísmo.
Latuff mencionou ainda que, na bandeira, podemos ver bem clara uma
segunda intenção: cada faixa azul representa um rio, Nilo e Eufrates,
retratando a extensão dos planos expansionistas de Israel, uma área que
perpassa partes do Egito, a Palestina, a Jordânia, a Síria e o Iraque.
No entanto, Latuff disse que, mesmo com a
constante tentativa de desqualificar as críticas ao Estado de Israel
valendo-se do termo anti-semita, “temos que ter coragem de dizer isso.
Israel representa Israel, representa o governo de Israel. Não existe
nenhum país que represente todo o seu povo”. Logo, a crítica à atuação
do Estado de Israel não tem um fundo religioso, mas político – não se
pode confundir as duas coisas. O que acontece na Palestina é puro
neo-colonialismo – o saque de terras, o extermínio de toda uma
população, sua cultura e sua história. Latuff comentou que muitos
sionistas usam a Bíblia para explicar a barbárie israelense. Sua
resposta: “fechem a Bíblia. Precisamos ler livros sobre política”!
Em referência ao termo ‘anti-semita’,
que é usado como salvo-conduto pelos sionistas para se afastarem de
quaisquer críticas a Israel, Latuff explicou que é um termo cunhado nos
tempos do nazismo que foi reapropriado pelos sionistas europeus. Semitas
são povos vindos do Oriente Médio, entre eles hebreus, samaritanos,
babilônios, fenícios, árabes etc. Semitas não são, portanto,
forçosamente judeus. Assim, o uso do termo se mostra extremamente
tendencioso. Como disse o ativista egípcio-canadense Ehab Lotayef, num
evento organizado pela SEDUFSM (Seção Sindical dos Docentes da
Universidade Federal de Santa Maria): “como egípcio, eu sou semita.
Então como é que eu vou ser anti-semita, contrário a mim mesmo”?
A conversa com Latuff terminou com seu
pedido por uma resistência unida. “O inimigo dos palestinos é o mesmo
inimigo dos mapuches, dos curdos. O inimigo é o mesmo, ele só muda de
língua, de rosto. Se o inimigo é um, a luta também deveria ser uma só”.
Depois da roda de bate-papo, era
impossível chegar muito perto de Latuff. Fotos, autógrafos e
comentários. Eu já havia marcado uma entrevista com ele para aquele
horário, mas também parecia tê-lo feito uma menina que estava à espreita
assim como eu. Fernanda Quêvedo, do grupo Fora do Eixo, também tinha
marcado entrevista com Latuff. Quando eu finalmente consegui falar com
ele, Fernanda interveio e me convidou para ir à Casa Fora do Eixo Porto
Alegre, onde o entrevistariam. Fui convidado no que, mais tarde,
revelou-se uma maneira de não esperar por que eu o entrevistasse
primeiro. Sem problemas! Conseguimos deixar o prédio depois de muito
tempo. Fernanda e eu entrevistamos Latuff ao vivo para o #posTV, um
projeto audiovisual do Fora do Eixo. As duas partes da entrevista podem
ser vistas abaixo. Caso os players não funcionem, é só acessar os links
em seguida:
LATUFF: “FECHEM A BÍBLIA. PRECISAMOS LER LIVROS SOBRE POLÍTICA”!, pelo viés de Gianlluca Simi
gianllucasimi@revistaovies.com
Fonte: O Viés
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