dezembro 06, 2012

"Corromper a corrupção", por Bruno Cava

PICICA: "Vive-se numa República corrupta. Se não houver uma transformação radical, é provável que os nossos netos ainda tenham de conviver com os Sarney, a bancada ruralista, os juros e lucros fabulosos dos bancos, o oligopólio do cimento, a existência da PM, as megaempreiteiras financiando todas as campanhas eleitorais, as capas da Veja, o mercado imobiliário, o mesmo discurso elitista e racista nos principais telejornais com ares de qualidade e isenção, dentre outras criaturas do capital tupiniquim. Essa corrupção é a normalidade. Governar o Brasil passa por beijar a mão desses grupos, enraizados que estão em suas zonas de poder e conforto. Tem quem beije com mais ardor e mesmo quem lamba, mas cuspir, isso ninguém faz. Porque não tem correlação de força pra isso hoje, e é verdade. Ameaçá-los exige um projeto de poder muito consistente, um jogo duríssimo em diversos territórios, sem prescindir da esfera institucional e comprido espectro de atores e protagonistas." 

Corromper a corrupção


Num Brasil que teve UDN, Lacerda, uma imprensa que saudou o golpe de 1964, ditadores ilibados, caçador de marajás e até um movimento de madames que vaiou aeronave, não dá pra sossegar diante da febre midiática “contra a corrupção”. Embora não me anime em nada com a ideia de voltar a participar de partido, e certamente seja um crítico sem meias palavras da lógica estatal-representativa; não me sinto nem um pouco contemplado pelos apartidários arregimentados ao “combate à corrupção”. A palavra certa é essa: arregimentados. Como se todos os mandatos e partidos fossem iguais, achatando nuances e atravessamentos. Aliás, prefiro suprapartidário a apartidário.

Lá vêm os puros a reclamar de tudo-o-que-está-aí, com suas falas impostadas, cenhos franzidos, suas condenações totais e oniscientes e seus pesadelos de sociedade. É tudo o que a direita sempre sonhou: um exército de indignados com tochas na mão, à espera de quem o William Bonner vai indicar, em horário nobre, como o corrupto da vez. E depois outro, e outro, e assim sucessivamente, de modo que tudo mude para que tudo fique como está — o duplipensar exato no cerne do discurso anticorrupção.

Vive-se numa República corrupta. Se não houver uma transformação radical, é provável que os nossos netos ainda tenham de conviver com os Sarney, a bancada ruralista, os juros e lucros fabulosos dos bancos, o oligopólio do cimento, a existência da PM, as megaempreiteiras financiando todas as campanhas eleitorais, as capas da Veja, o mercado imobiliário, o mesmo discurso elitista e racista nos principais telejornais com ares de qualidade e isenção, dentre outras criaturas do capital tupiniquim. Essa corrupção é a normalidade. Governar o Brasil passa por beijar a mão desses grupos, enraizados que estão em suas zonas de poder e conforto. Tem quem beije com mais ardor e mesmo quem lamba, mas cuspir, isso ninguém faz. Porque não tem correlação de força pra isso hoje, e é verdade. Ameaçá-los exige um projeto de poder muito consistente, um jogo duríssimo em diversos territórios, sem prescindir da esfera institucional e comprido espectro de atores e protagonistas.

Existe um fundo de verdade quando se diz que os políticos são todos corruptos. Porque, num sentido extramoral, o sistema é mesmo corrupto. A corrupção é produzida e reproduzida inclusive respeitando-se as regras existentes. A construção da sociedade brasileira foi e é baseada na desigualdade de classe/gênero/raça, mediante uma rede de relações de força, em distintos graus de violência real ou simbólica, que sustenta essa ordem social e a perpetua. É o 1% de privilegiados sobre a exploração dos 99%, o branco sobre o negro e o índio, o homem sobre a mulher, o rico sobre o pobre. Nesse contexto, em vez de ficar perguntando pelas bondades ou maldades do poder: resistir!
 
Mas o que poderia ser luta por transformação dessa realidade, é reduzido à pedagogia do cidadão de bem. A luta é moralizada e a corrupção degenerada como um problema individual. Numa profusão de narrativas novelescas (o que a Globo realizou literalmente), a indignação é dirigida a uma “classe política” perversa, um grupo de gangsters que se apropriaram do poder. E contra corrupto, não se discute: pago meus impostos, dou um duro danado, só quero que político não roube! é pedir muito?!

O erro está no sujeito da corrupção. Erra-se ao atribuir a corrupção a indivíduos específicos, numa espécie de revezamento em função dos calores midiáticos. Confunde-se a consequência por causa. Como se estivéssemos em um regime político essencialmente bom, em que algumas pessoas teriam sido corrompidas, contaminadas pelo Grande Mal, teriam escolhido conscientemente o Mal, teriam se tornado, por fraqueza, ganância, vontade de poder ou interesse próprio, pessoas corruptas. Então devem ser punidas para reequilibrar o sistema essencialmente bom e prevenir que outros sigam o mau exemplo. Bastaria substituir essa gentalha no poder pelos cidadãos de bem, de preferência as belas almas à frente dos movimentos anticorrupção, que o país voltaria aos eixos.

Claro que há niilistas e cínicos de toda espécie, aninhados nos vários gabinetes e corredores dos palácios, aproveitando para gozar o nada de que é feita a substância ética do estado e o regime de equivalências do mercado (duas faces da mesma moeda, o próprio dinheiro). Por sinal, tem os corruptos sinceros, mas também os corruptos inocentes.

Sempre é mais difícil lutar contra o Bem. Uma artimanha da moral, essa que purifica o nosso inimigo. A moral estende panos brancos para disfarçar a indecência cotidiana. Existe um quê de subversivo quando uma criança torce pelos bandidos no desenho. Onde estão os inocentes? O funcionário que trabalha consciente do dever, lídimo, incorruptível, não molda ele mesmo a boa consciência da nação? Não acredita estar a serviço do interesse geral, cumpridor de uma lei cujo dogma está em afirmar sua própria coerção, além de qualquer conteúdo, qualquer que seja ele? Que culpa tem ele, ao participar conscientemente da economia de coações que sustenta o todo?

Os anticorruptos atribuem a corrupção a causas externas, como se o poder estivesse alhures, mais ali, no outro. Seu poder de agir não vai longe, resume-se às escolhas banais de uma vida ordinária. Que eles escolheram viver. Tanto mais “culpados” quanto inocentes. Porque não há inocentes: de uma forma ou de outra, escolhe-se viver neste mundo como um idiota, e com os idiotas, e a conformar-se com isso, a deixar-se acometer pelo desamor que o estrutura, como injustiça e mesmice. Ora, a boa consciência serve de refúgio para os covardes da história. A dor, a miséria, e o acúmulo de poder e dinheiro, isso é incontornável, está escancarado.Quem não vê, escolheu não ver, ou escolheu ver mas não enxergar; escolheram, de uma maneira ou de outra, esta vida. Me engana que eu gosto! O auto-engano de quem ocupa uma terra de conforto, e fará de tudo para justificá-la com a moral à mão, e precisa justificá-la para tolerar, para si mesmo, as fundações podres e corruptas debaixo do carpete. Escolheram, sim, sem voto de pureza, viver a superstição chamada normalidade, a estrutura produtiva deste mundo. Se o sistema é corrupto, dele participa a própria boa consciência coletivizada, como instância auto-absolutória dos idiotas.

Disso tudo sabia Winston no romance de G. Orwell, e também Sócrates (nós não beberemos cicuta!), Spinoza, mas sobretudo Nietzsche, para quem a boa consciência não é mais do que uma afecção fisiológica, uma debilitação da vontade, dirigida a uma mistura de subserviência e certeza moral. O entorno facilita e incentiva essa boa consciência da nação: basta ligar a TV, sentar no sofá e deixar fluir. O Bonner e a TV Globo não enganam ninguém: oferecem uma verdade, a quem quiser nela plugar sua culpa. E se não der, se o intolerável da esquina acabar tirando lascas dessa consciência , sempre se poderá recorrer a terapias, auto-ajudas e jogos de computador.

De minha parte, só sei que é repulsiva essa pureza. Deus me livre dos puros. Diante deles, prefiro ser corrupto até os ossos. Que a virtude não sobrevenha em lugar algum. Politicamente, que se corrompa a corrupção, até as bases da República.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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