dezembro 04, 2012

"Toni Negri: “América Latina deixou de ser periferia”" - Entrevista a Verônica Gago e Diego Sztuwark

PICICA: "Prestes a completar oitenta anos, o pensador italiano Antonio Negri, autor, ao lado de Michael Hardt, da trilogia “Império-Multidão-Commonwealth” (a última parte ainda sem tradução para o português) e de clássicos como “Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade”, participou do IX Colóquio Internacional Spinoza, na Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Negri centra o foco de suas análises na transformação radical pela qual passou o capitalismo, a partir dos anos 70, com o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, fato que alterou a forma de produção — agora imaterial e cognitiva — e a maneira como o capital controla o trabalho.

Toni Negri: “América Latina deixou de ser periferia”

 


Dinamismo das lutas sociais na região seria contraponto ao declínio da esquerda europeia e abriria caminho para política dos “comuns”

Entrevista a Verónica Gago e Diego Sztuwark, no Página 12 | Tradução: Hugo Albuquerque | Imagem: MZK,sem título 
 
Prestes a completar oitenta anos, o pensador italiano Antonio Negri, autor, ao lado de Michael Hardt, da trilogia “Império-Multidão-Commonwealth” (a última parte ainda sem tradução para o português) e de clássicos como “Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade”, participou do IX Colóquio Internacional Spinoza, na Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Negri centra o foco de suas análises na transformação radical pela qual passou o capitalismo, a partir dos anos 70, com o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, fato que alterou a forma de produção — agora imaterial e cognitiva — e a maneira como o capital controla o trabalho.

A saída de cena da linha de montagem fabril e a ascensão dos grandes salões de telemarketing — enquanto o sistema financeiro termina por se afirmar como o “elemento que unifica o complexo social, de um modo abstrato, porém efetivo” — é o que interessa a Negri, na sua leitura inovadora de Marx, firmemente assentada no imanentismo de Spinoza — que se volta para a defesa do comunismo no horizonte do capitalismo cognitivo e, por tabela, globalizado. Não existem, dentro do sistema negriano, concessões para o sistema do capital como também não há saída que não seja global para um capitalismo globalizado, no qual os Estados-nações estão postos em função do funcionamento do sistema.

Diante do Império capitalista global, é necessário mais do que indignação e velhas táticas, a compreensão do fenômeno e a produção de novas formas de atuação, baseadas na multidão como classe emergente global e na reapropriação da riqueza comum. É essa preocupação que fez de Negri um observador atento, e visitante recorrente, da América Latina: ele enxerga nas experiências dos movimentos sociais do continente, e sua relativa “chegada ao poder” nos últimos anos, fatos dignos de atenção no que concerne à constituição de uma nova práxis revolucionária global, objeto central de sua obra militante.

Lutas como as do novo sindicalismo e dos sem-terra no Brasil, dos movimentos indígenas na América Andina — sobretudo na Bolívia e Peru — e de movimentos democráticos antineoliberais por todo o continente, sua ascensão na forma dos governos Lula, Kirchner, Chávez ou Morales (entre tantos outros) e o consequente atravessamento que passou a existir entre Estado e movimentos animam o pensamento de Negri — em contraste com a constatação da paralisia da esquerda europeia, burocratizada e elitizada.

É certo que o ciclo de mais de uma década desses governos apenas aprofundou certas contradições já existentes nos seus planos iniciais, sobretudo no que toca ao fortalecimento do extrativismo. Como agir diante disso? Quais ganhos e quais projetos merecem mais atenção? Quais ainda merecem atenção? São questões como estas que Negri buscou responder em uma entrevista ao periódico argentino Pagina 12. (Hugo Albuquerque.)



Há alguns anos, você propôs uma hipótese para entender a situação política na América do Sul: disse que havia um atravessamento do Estado por parte dos movimentos sociais. Desta maneira, o poder constituinte dos movimentos podia desenvolver-se, ainda que de modo conflitivo, no interior do poder constituído. Agora fala em estar “dentro e contra” o Estado. Como você lê atualmente esta relação entre potência popular e Estado?

Eu penso que quando se diz “dentro e contra”, se faz uma afirmação metodológica que sempre deve ser confrontada com as determinações do concreto. Não é que “dentro e contra” signifique sempre o mesmo, mas sim que se trata de adotar uma perspectiva da qual se enxergam as coisas. Tenho a impressão de que tanto do ponto de vista da gestão econômica como da política houve, nos últimos anos, um relativo declive a partir da situação inicial formada na última década, depois de 2001, quando havia um quadro efetivamente revolucionário. Houve um primeiro deslocamento do ponto de vista econômico a partir do governo de Néstor Kirchner: a partir de uma recuperação produtiva, que tomou como base a produção social em um sentido amplo, se produziu uma confrontação com os ditadores dos mercados, sustentada pela experiência de resistência do período anterior. Aquele primeiro momento foi efetivamente muito importante, na medida em que ganharam força os movimentos piqueteiros, as ocupações de fábrica, a organização das vizinhanças como base de ampliação do terreno da produção social, sem fechar essas experiências em uma interpretação puramente ideológica. Este elemento novo da produtividade social insurgente é a força que consegue se fazer representar em um processo institucional efetivo, que tem a nação como espaço definido. Nesse sentido, o poder político nacional consolidou a efetiva necessidade de ter um ponto de referência central para enfrentar os mercados e suas manobras monetárias. Por exemplo, deste ponto de vista, a renegociação do pagamento da dívida e as tratativas com o Clube de Paris têm sido um momento de requalificação da trama institucional da democracia argentina em relação aos esquemas herdados do peronismo tradicional, levando em conta as mutações no tecido social.

E qual sua impressão sobre o que aconteceu depois?

Do ponto de vista econômico, parece que foi dado um impulso ao extrativismo, empurrado pelo agronegócio da soja, consolidando a estrutura de relações com as grandes empresas multinacionais. Seguramente, a disputa com o campo teve a ver com isso. Desse ponto de vista, parece ter havido uma paralisação e uma forte intenção de centralizar o poder por parte do governo. O extrativismo não é apenas um fato econômico. Não se trata somente de discutir que pode ser útil concentrar a produção em certos produtos, mas sim ter em conta que isso funciona como negação efetiva de uma democratização econômica, no sentido de que nega uma produtividade generalizada. Agora, a pergunta é como faz o modelo atual para garantir um regime efetivo de bem-estar na Argentina. Tenho a impressão de que as políticas sociais — tal como acontece, por exemplo, na Venezuela — adotam cada vez mais a aparência de concessões ao povo e, por tabela, cada vez menos parecem ser consequência de uma mobilização geral produtiva, à qual corresponde um welfare efetivo.

E como funciona então o “dentro e contra” o Estado nesse 

Consiste na utilização do Estado, por assim dizer, no interior do espaço global dos mercados, colocando no centro esse problema fundamental da democracia, que não é tanto o problema da liberdade, mas sim o da produção. Quero dizer que é no nível das condições materiais de produção que se desempenham, em essência, o devir democrático e a conquista de novas liberdades.

Como você acredita que outros países da América Latina manejam a relação entre welfare e extrativismo? Pensemos nas experiências importantíssimas de Venezuela e Brasil.

Já mencionei o que se passa na Venezuela. Não sei se podemos chamar de welfare, mas há ali, sem dúvida, uma difusão de serviços às comunidades com significativo salto político e tecnológico com o apoio cubano (médicos, professores etc). Foi algo muito importante, na medida em que houve um constante crescimento no nível de expectativa de vida. Sem dúvida, uma verdadeira democratização da sociedade supõe enfrentar muitas dificuldades. Por exemplo, os problemas que se abateram sobre as missões, ao mesmo tempo em que se forma uma nova burguesia, tão ativa quanto espoliadora. Tenho uma avaliação mais positiva do processo brasileiro, que conta com condições excepcionais do ponto de vista dos recursos naturais e sociais. Há, de fato, uma situação muito afortunada, mas não há dúvida de que a política de Lula foi capaz, efetivamente, de permitir que todos participassem do desenvolvimento, configurando uma sociedade aberta, em termos democráticos e produtivos. Lula desencadeou uma luta de classes contínua, contra uma burguesia e um setor capitalista fortes e com grande capacidade, o que supõe problemas enormes.

O Brasil lhe parece um modelo?

Não sei se essas lutas podem se dar de modo igual em diferentes lugares. Não creio que sua política seja um modelo. Mas, esses dias eu me perguntava sobre a ênfase do discurso oficial argentino a respeito da batalha contra o grupo Clarín. Lula precisou enfrentar o enorme poder da televisão brasileira e não fundou um só diário, preferindo apoiar-se na capacidade de intervir sobre outros setores, sustentado em uma politização das bases por meio dos grandes movimentos, como o MST e os movimentos de favelados que foram extremamente importantes. A situação argentina não parece contar hoje com uma capacidade de recriar movimentos sociais dessa magnitude, ainda que eu tenha muitas dúvidas a esse respeito. De toda a maneira, me parece que o problema da democracia se mostra com toda clareza na América Latina, isto é, que ela já não pode ser pensada como um território periférico, pois em muitos aspectos constitui um cenário central para todos nós.

O extrativismo convive em boa parte da América Latina com uma retórica contrária ao neoliberalismo, mesmo que não haja uma série de práticas sociais que funcionam segundo lógicas de apropriação neoliberais. Como avalia essa defasagem?

A mim parece que quando o Estado se pronuncia contra o neoliberalismo, ele mente. Existe toda uma série de acordos específicos com multinacionais. É um pouco o que aconteceu aqui (na Argentina) no momento da crise do campo. Dentro do marco no qual surgem esses acordos, atuam as empresas nacionais e os empreendimentos cooperativos imersos na lógica capitalista. Esses governos estão contra o neoliberalismo? Talvez seja melhor dizer: estão contra as extremas consequências do neoliberalismo, que são aquelas que buscam anular o welfare. Mas essas são apenas as consequências extremas.

Podemos pensar que é o capital financeiro, enquanto tal, que funciona de um modo parasitário em relação à produção de valor do conjunto da sociedade?

Tenho a impressão que há uma identidade completa entre capital financeiro e extrativismo. Mesmo que os governos progressistas da América do Sul tenham construído novas relações de força em relação aos mercados financeiros, o certo é que esses capitais seguem funcionando a partir da expropriação do valor produzido pela cooperação social. É certo que o capital financeiro continua sendo o elemento que unifica o complexo social, de um modo abstrato, é verdade, porém efetivo. E não se trata de uma intervenção que venha de fora, de um modo imperialista: ao contrário, trata-se de uma intervenção que condiciona a máquina social inteira, e busca prefigurá-la. Por isso é insuficiente toda tentativa de lhe opor meramente uma estrutura de regulação vertical. O problema político que se impõe é, na verdade, como articular contra isso as pluralidades produtivas. Eu não vejo uma proposta diferente.

Não lhe parece também um problema o modo como se fixa uma certa imagem do movimento social, incapaz de dar conta de novos modos mais difusos de organização?

Creio que isso se trata, efetivamente, de um verdadeiro problema. Vejo que, por esses dias, fala-se muito [na Argentina] dos panelaços. Para além do sentido político que possui o movimento — pelo que escuto aqui, é um movimento basicamente de direita –, trata-se de fenômenos que não se expressam no nível institucional, mas no das multidões. Coloca-se a pergunta: como se pode dizer que uma multidão é “boa” ou “má”? Creio ter uma resposta, embora ela seja abstrata: o que distingue uma boa multidão da má é o que chamo de comum. Trata-se de uma hipótese teórica que abarca também uma noção de democracia substancial, não como algo meramente formal. Eu me refiro à democracia enquanto capacidade de organizar um conjunto de relações, e extrair delas uma consciência política. O comunismo não é algo que pode brotar do comum de modo direto. Por isso, há de se criar formas políticas capazes de pôr as singularidades em relação, e de dar-lhes uma forma institucional no decorrer do processo.

Como você pensa essa forma institucional sem que se termine atado ao Estado nacional?

Creio que depois da grande polêmica contra o Estado-nação, e também frente ao poder de inovação capitalista, devemos refletir sobre os termos nos quais se considera a questão hoje, a partir de uma visão de esquerda. Na Europa, o fracasso da esquerda consiste em não ter conseguido ir além do Estado-nação e de não chegar a imaginar uma gestão do poder por fora e para além dele. O defeito da esquerda europeia é ter identificado a própria ideia de governo como uma única instância. Ao identificar a ideia de governo à de Estado nacional, a capacidade de imaginar formas de governo sobre os mercados ficou bloqueada, uma vez que eles possuem poderes que excedem as fronteiras dos países. E então, acontece que os mercados criam por eles mesmos suas instância de governo. Assim, o Banco Central atua como representante da rede europeia: é disso que se trata o comunismo do capital. Na América Latina, as coisas se dão de outro modo, embora também aqui se trate de superar visões que se fecham nos limites dos projetos nacionais-extrativistas. E me parece que a possibilidade de articular uma espacialidade mais ampla passa pela compreensão do papel desempenhado pelo Brasil.

Em que sentido?

Porque o Brasil produz mais do que produzem os demais países da América Latina, e tem uma enorme capacidade de atração no nível internacional, fato que o coloca necessariamente em posição hegemônica. Esse problema se situa fora do conceito de hegemonia que propõe Laclau, referido exclusivamente ao nível nacional, e que exclui a necessidade de levar a sério o nível regional. Creio que teríamos de pensar em um equilíbrio da relação entre espaços nacionais e regionais a partir de uma colaboração real. Porque se os países se fecham na exportação de seus recursos naturais, é muito fácil que passem a competir uns com os outros, ao estilo do Oriente Médio, mas sem xeique.

Você fala de uma série de paradoxos em torno do que chama biocapitalismo e o sujeito atual “homem-máquina” como parte da dinâmica de valorização. De que se trata?

Seria importante voltar a trabalhar sobre as noções de Marx, tais como capital constante e capital variável, além de capital fixo e capital circulante, para ver como essas categorias se modificam a partir da hegemonia do capital financeiro. O paradoxo é que, ao mesmo tempo que as finanças constituem atualmente o próprio poder do capital, a força de trabalho está determinada por novas formas de existência em virtude de sua mobilidade, da incorporação do conhecimento e do fato de que sua cooperação tornou-se autônoma. Neste sentido, pode-se dizer que o trabalho vivo sofreu uma mudança antropológica: o homem-máquina, tomando aqui como exemplo a imagem de Deleuze e Guattari, se apropriou de elementos do que Marx tradicionalmente chamou de capital fixo, isto é, as máquinas. Essa mutação supõe que o capital já não dirige o trabalho de modo direto, mas sim à distância, capturando o trabalho a partir de dispositivos financeiros. Trata-se de um capital que capta o resultado do trabalho em rede. Esta é uma grande diferença, que implica uma série de consequências políticas.

Por exemplo?

Por exemplo, a respeito da questão da propriedade, que concerne cada vez menos à posse imediata de um bem e mais à apropriação de uma série de serviços. A propriedade depende cada vez mais do conjunto do trabalho que se organiza em torno da posse. A composição desse trabalho se dá como uma realidade inteiramente bipolítica, que implica um movimento de subjetivação fundamental. Me parece que a reconstrução de um pensamento revolucionário deve se desenvolver sobre este terreno, no sentido de ligar a análise dessas transformações à utopia: nisso, Maquiavel, Lenin e Gramsci continuam sendo muito atuais.

Você fala também de uma moeda do comum, a que se refere?

Creio que hoje se coloca o problema da reapropriação da riqueza comum, processo que só poderá se dar por meio da moeda do comum, de modo a torná-la o mais extensa possível, aceitando sempre a abstração da relação, já que isso não pode ser revertido. Logo, nesse território, só uma luta comum em nível global é que resolve o problema. Não vejo outras soluções. Pode haver soluções particulares de ruptura, expulsar uma multinacional, repetir operações com a de 2001, não pagar, declarar a insolvência: são momentos de luta, mas não de solução. Esses são problemas que se colocam politicamente de maneira muito forte, por isso este é um momento maquiavélico puro.

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Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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