PICICA: Convidado pelo maestro Adroaldo Cauduro, participei do programa "Conversando com o Maestro", da Universidade Federal do Amazonas. O programa é intimista. Inevitavelmente somos levados a revisitar períodos muito remotos do entrelace da nossa história pessoal com a cidade onde fomos criados. Entre as tantas lembranças da Manaus antiga, recordei o artista popular que guardaria para sempre na minha memória: Oscarino, o pai do "Peteleco", um boneco abusado, irreverente que fazia a alegria do povão no Tabuleiro da Baiana, transformado em terminal dos ônibus de madeira no coração da cidade, ao lado da Igreja de N.S. da Conceição. Alguns dia da semana, no final da tarde, quando saia da rua Frei José dos Inocentes com minha mãe, meu pai e minhas irmãs para buscar tia Pátria em sua banca de tacacá, na praça dos Remédios, cruzavamos o Tabuleiro na expectativa de ver e ouvir o boneco falante, ali pelo início dos anos 1960. Jamais esqueceríamos o ritual do artista que nos encantava pelo misterioso dom de fazer um boneco falar. Nada mais excitante ver o "maluvido" Peteleco sair de uma maleta e no colo de Oscarino "falar pelos cotovelos", sem ninguém a lhe censurar. Era tudo o que uma criança sonhava. Peteleco era o meu herói. Levei-o comigo para o resto da vida. Oscarino Farias Varjão não sabe, mas ele foi meu primeiro mestre. Com ele aprendi que o humor não é resignado, mas rebelde. Isso muito antes de Freud. Para minha satisfação, Oscarino me deu a honra de uma ligação telefônica para me cumprimentar pela lembrança de infância, depois de assistir o programa do maestro Adroaldo. Grande Oscarino! Grande Peteleco! Conheça um pouco mais do artista popular em entrevista concedida para Israel Conte e saiba quem foi o governador do Estado que f... a vida da família de Oscarino. Não seria a primeira vítima de um governador com humor pra lá de patibular. Dessa tragédia pessoal fez-se o artista, não antes de comer o pão-que-o-diabo-amassou.
“Se alguém acha que é engraçado, comigo vai se lascar”
por Israel Conte
Foto: Antonio Orlando
Oscarino detesta ser chamado de senhor e talvez seja porque tem um espírito brincalhão. Aqui ele fala de sua infância pobre, de como foi enganado e não entrou no Livro dos Recordes, das mágoas que guarda de políticos influentes, de como superou os obstáculos com o boneco Peteleco e do que espera que façam após sua morte.
Fale um pouco sobre sua família e de como foi sua infância.
Eu estou casado há 38 anos com minha terceira esposa. Eu a suporto todo esse tempo (risos). Foi a companheira que deu certo. Com ela tenho 5 filhos. Mas somando o que tive com as outras duas são no total 20. Já sou avô e até bisavô. Fui criado no centro de Manaus. Estudei no Grupo Escolar Nilo Peçanha e depois na Escola Normal Francisco de Assis. Nesta última estudei de graça porque dois professores se compadeceram da situação de miséria que minha mãe tinha como tapioqueira. Então eles ofereceram dois anos de estudo de graça. Lá fiz o 3º e o 4º ano. Foram meus contemporâneos o jornalista Abrahim Aleme, Frank Lima, o Coronel Valdemiro Lustoza e o jornalista Guilherme [Aluízio de Oliveira], diretor-presidente do Jornal do Commércio.
Como começou sua história com o boneco Peteleco?
O Peteleco é o quarto boneco da minha vida. Antes dele eu trabalhei com o Chiquinho, o Marinheiro e o Charles. O Peteleco apareceu na minha vida em 15 de maio de 1957. Foi ele quem me deu notoriedade e com ele convivo até hoje – e este é o primeiro e único boneco feito. Com ele percorri mais de 3 mil municípios brasileiros. Em 1962, fui de Belém a Porto Alegre. Já trabalhei em todas as emissoras de televisão em Manaus. Fazia “no ar” o que fazia nas festas de aniversário de criança. Em 2000, o [Secretário de Estado de Cultura] Robério Braga me contratou para ser mestre de cerimônia do Teatro Gebes Medeiros. Fique lá por dois anos. Hoje estou aposentado pela Assembleia Legislativa do Estado e recebo uma pensão do Estado. Não vou dizer que vivo bem, mas também não passo fome. Tudo o que ganho hoje agradeço a quatro políticos do Amazonas, que são o Bernardo Cabral, Átila Lins, Belarmino Lins e Amazonino Mendes. Eu só vivia viajando, ninguém me queria aqui, mas eles me ajudaram a ficar em Manaus. Então hoje, se estou aposentado, agradeço a eles.
Você se inspirou em alguém para compor o Peteleco?
O Peteleco é o meu 4º boneco. Na realidade, ele foi criado para ser o vovô Bastião, para aconselhar as pessoas – por aí tu já vês que ia morrer de fome (risos). Foi então que o meu pai, que nem gostava do que eu fazia – ele queria que eu fosse médico ou advogado, mas aceitava -, sugeriu o nome Peteleco. O nome era uma gíria da época e significava uma pequena pancada mal dada, geralmente no pé do ouvido. A partir do nome eu criei então a personalidade do Peteleco, um boneco adulto, “maluvido”, esculachado, esculhambado, que só quer levar vantagem. A cor negra dele é uma homenagem à cor do meu pai.
Como você descobriu que tinha o dom para ser ventríloquo?
Muitas vezes as coisas acontecem em nossa vida e nós não sabemos nem o porquê. Em 1953, quando tinha 13 anos, meu pai precisou viajar para o Ceará para cuidar da saúde e eu fui junto. Lá eu vi pela primeira vez os mamulengos [tipo de fantoche típico do nordeste brasileiro apresentado em teatro de rua]. Eu gostava muito de assisti-los e aquilo me marcou. Voltamos para Manaus e quando tinha 15 para 16 anos de idade fiz o meu primeiro boneco, o Chiquinho. Para mim ia ser apenas uma brincadeira, um hobby. Mas deu certo e fui trabalhar em aniversário. Depois veio o Marinheiro e o Charlie. Quando o Peteleco surgiu na minha vida eu passei a trabalhar profissionalmente.
O show do Oscarino Peteleco é um show de humor. Você sabe quantas piadas têm no seu repertório ?
Não dá pra somar. Não tenho registrado nada em papel. Todo o meu repertório de piadas e paródias é tudo criação minha, está tudo na minha cabeça. Trabalho na base do improviso. Sempre provoco alguém do público, e se alguém acha que é engraçado, que vai levar vantagem, comigo vai se lascar (risos).
Você se considera artista e também costuma dizer que “artista não é cidadão”. Por quê?
O artista geralmente nasce do nada. Difícil é ver um artista que nasceu rico. E um artista como eu, que veio do nada, foi tapioqueiro, engraxate, garçom de botequim no mercado e cresceu e venceu na vida porque Deus quis que fosse assim. Por isso costumo dizer que artista não é cidadão pelo fato de não ser ninguém na vida. Eu me considero um artista mambembe – uma coisa que não presta, que não vale nada, mas é útil. Eu sou um artista que deu sorte e conseguiu vencer.
Dentre os seus filhos, algum deles se interessou em seguir a carreira artística?
Minha filha Rosana é cantora e tenho um outro que é baixista. Mas o único artista da família é só eu mesmo, que até hoje não sabe o que é trabalho. Mas deixa eu dizer uma coisa. O gostoso de ser artista em qualquer lugar do Brasil é a amizade que você ganha do povo. Por onde você passa você é reconhecido e cumprimentado. Você fala com quem não conhece, mas que gosta do teu trabalho e a gente percebe que aquilo não é falsidade.
Quando se fala em Oscarino, dificilmente as pessoas conseguem ligar o nome à pessoa. Mas quando se fala em Peteleco todo mundo reconhece. Às vezes você não tem a impressão que o personagem aparece mais que o criador?
Não. Na apresentação, diante do público costumo dizer, que eu sou artista e ele é a atração. Vou repetir. [Oscarino inicia um diálogo com o boneco Peteleco]
- Peteleco!
- Oi, responde Peteleco.
- Quem é o artista?
- Tu.
- E você?
- Eu sou a atração.
- Então se não fosse eu você não existia, né?
- E se não fosse eu você já teria morrido de fome…
[O diálogo termina aos risos.]
Portanto, não tem esse negócio de vaidade. O artista sou eu e ele é a atração. O meu dever profissional é fazer rir com o boneco. O povo simpatiza comigo, mas gosta é dele.
Você era para entrar no Livro dos Recordes, mas foi enganado. Conta como foi essa história.
Era o ano de 1963. Estava trabalhando na Praça da Sé, em São Paulo. E lá apareceu um cara dizendo que tinha me visto em Manaus, e que poderia me registrar no livro dos recordes. Então tirei cópia da minha identidade. Dei umas fotos minhas em preto e branco e uma quantia equivalente hoje a 150 reais para ele fazer essa coisa. Depois desse encontro em São Paulo, ele me ligou várias vezes dizendo que estava demorando a sair o registro por conta da burocracia brasileira. O registro acabou nunca acontecendo. Mas eu deixei pra lá. Eu já fui entrevistado centenas de vezes Brasil afora, sendo três em rede nacional. Na Globo, em 2000, no Programa do Jô; em 2002, no Programa do Ratinho, no SBT, e na Band, mas a data eu não me lembro agora.
Você adoeceu numa época recente e parou os seus shows. Essa foi a única vez que deu uma pausa?
O pessoal pensa que artista não adoece. Eu já quebrei o braço esquerdo, depois o braço direito. Nessa época virei estofador para ganhar o pão de cada dia. Em 2004 tive um AVC [derrame cerebral]. Desmaiei 1h da manhã. Fui parar no [Pronto Socorro] 28 de Agosto e acordei às 5h da manhã todo amarrado porque estava agitado. E há uns 3 anos tive problema na minha perna esquerda – escorreguei da escada. Sarou, mas ainda não ando direito. Fora disso, sou hipertenso. Foram três paradas. A última em 2008. Voltei a trabalhar somente em junho deste ano.
Você guarda mágoa de alguém?
(Pausa. Depois de tomar coragem revela) Guardo mágoas, sim, de algumas pessoas. E se eu falar isso pode causar uma grande polêmica. Mas teve um político aqui em Manaus que vocês todos enalteciam, que era o Gilberto Mestrinho. Ele acabou com a vida do meu pai no mercado grande. Ele expulsou meu pai de lá, tudo por causa de uma mulher. Aí nós ficamos na miséria. Foi nessa época que virei engraxate na Rua Marquês de Santa Cruz.
Você já sentiu a chamada Síndrome de Pinóquio, ou seja, a de o boneco ganhar vida própria, após tantos anos juntos?
Não. A minha neta Yasmin é que às vezes pega o boneco de cima da cama e diz que o Peteleco não tá falando com ela. Aí ela me dá e ele fala.
O que você acha do humor que é feito atualmente, tipo “Pânico”, “CQC”, além das comédias stand up?
O primeiro artista brasileiro a fazer stand up no Brasil foi o saudoso José Vasconcelos – famoso pelo personagem gago Rui Barbosa Sa – Silva. Ele era acreano, depois foi para Belém e para o Rio de Janeiro onde gravou o LP “Eu sou o espetáculo”. O José Trindade, Grande Otelo e o Paulo Silvino também faziam esse tipo de comédia na década de 60. Para mim o humorista tem que saber o que vai fazer e, acima de tudo, respeitar o público. O povão mesmo não gosta de piada de salão, mas de piada de fresco, veado, corno. E o humorista tem que saber respeitar, se tiver criança e mulher na platéia, e tomar cuidado com o que fala.
Você se considera um artista de rua ou um artista de palco?
A rua é o meu palco. Comecei na rua. Eu só tenho uma exigência. É um som perfeito, pois se for ruim eu me apago.
Qual a maior alegria daquele que dá tanta alegria aos outros com o Peteleco?
É ter o carinho e o reconhecimento do público.
Um dia os artistas se vão. E quando o Oscarino se for, o Peteleco vai virar peça de museu?
Eu tinha vontade que o Estado comprasse minha casa e transformasse num museu. Mas infelizmente muita gente ainda não valoriza como deveria o artista amazonense. Eu sei que um dia eu vou e o pessoal vai fazer o que quiser com o Peteleco. Mas eu já pedi para não destruí-lo.
Como está sua agenda de shows e como se faz para contratar?
Me apresento todo domingo, às 17h, e às quartas-feiras, às 15h, na Casa Ivete Ibiapina, do lado do Teatro Amazonas. Para contratar o Peteleco é só ligar para o 3232-7882 e falar com o meu secretário, que sou eu mesmo. (risos)
Fonte: Revista Argumento
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