maio 31, 2013

"Capitalismo e estado social: qual o sentido do SUS?", por Ana Luiza d'Ávila Viana e Cristiani Vieira Machado

PICICA: "No capitalismo qual é o papel do Estado Social? Reafirmar o compromisso de extensão dos direitos sociais e evitar a privatização, entendida como promoção dos padrões individualizantes do mercado de consumo.

Para isso são necessárias inúmeras políticas públicas de fomento à construção de instituições produtoras e reguladoras de serviços sociais, de regras fiscais equânimes, de promoção e incentivo à ocupação e à capacitação da força de trabalho, de melhorias e instalação de intensa fluidez urbana, de garantia habitacional, entre outras.

O Estado Social atua de forma diminuir os impactos do mercado na criação voraz de desigualdades, o que somente a política e a criação de estruturas voltadas para o interesse coletivo podem fazer, promovendo o princípio da comunalidade endossada, do seguro coletivo contra o infortúnio individual e suas consequências, como diria Zygmunt Bauman.

Mais do que isso, o Estado Social olha o futuro no sentido de criar uma sociedade de semelhantes, promovendo políticas e regras voltadas para igualdade e a diminuição das diferenças de partida (desde o nascimento), assegurando maiores chances para aqueles não portadores de ativos (na forma de renda, propriedades, capital social).

São numerosas as explicações para o surgimento do Estado Social no século XX, porém o certo é que a política foi crucial para conter o avanço do mercado autorregulado e a ausência de mecanismos de proteção social em todos os países.
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Capitalismo e estado social: qual o sentido do SUS?

Capitalismo e estado social: qual o sentido do SUS?

Ana Luiza d'Ávila Viana* e Cristiani Vieira Machado**, membros da Plataforma Política Social via Jornal do Brasil

No capitalismo qual é o papel do Estado Social? Reafirmar o compromisso de extensão dos direitos sociais e evitar a privatização, entendida como promoção dos padrões individualizantes do mercado de consumo.

Para isso são necessárias inúmeras políticas públicas de fomento à construção de instituições produtoras e reguladoras de serviços sociais, de regras fiscais equânimes, de promoção e incentivo à ocupação e à capacitação da força de trabalho, de melhorias e instalação de intensa fluidez urbana, de garantia habitacional, entre outras.

O Estado Social atua de forma diminuir os impactos do mercado na criação voraz de desigualdades, o que somente a política e a criação de estruturas voltadas para o interesse coletivo podem fazer, promovendo o princípio da comunalidade endossada, do seguro coletivo contra o infortúnio individual e suas consequências, como diria Zygmunt Bauman.

Mais do que isso, o Estado Social olha o futuro no sentido de criar uma sociedade de semelhantes, promovendo políticas e regras voltadas para igualdade e a diminuição das diferenças de partida (desde o nascimento), assegurando maiores chances para aqueles não portadores de ativos (na forma de renda, propriedades, capital social).

São numerosas as explicações para o surgimento do Estado Social no século XX, porém o certo é que a política foi crucial para conter o avanço do mercado autorregulado e a ausência de mecanismos de proteção social em todos os países.

No Brasil foi construído um Estado Social voltado para o mercado de trabalho, de forma a cobrir infortúnios gerados pelo assalariamento, no processo de industrialização tardia, assentado no êxodo rural e na imigração. A intensa urbanização dos anos iniciais do processo de industrialização, sem políticas públicas mais abrangentes, colocou uma imensa massa de assalariados recebendo benefícios diferenciados conforme a sua inserção laboral, convivendo (ainda) com formas pré-modernas de proteção social, como aquela ofertada pelas ordens religiosas e associações comunitárias de todo tipo. Dessa forma, a marca histórica do Estado Social brasileiro é a segmentação (urbano/rural; trabalho formal/informal), a diferenciação dos benefícios e o paternalismo político e religioso dos sertões do nosso país.

Tardiamente, na crise e no processo de democratização dos anos 80 do século XX, é que uma política para a Seguridade Social foi pensada e endossada pela sociedade em meio a uma discussão sobre novos padrões de desenvolvimento, justiça social e liberdade, palavras sempre ouvidas nos grandes comícios das “Diretas Já” (realizados em São Paulo, Rio de Janeiro Belo Horizonte e em outras cidades brasileiras). Porém a trajetória política do país se distanciou dessas insígnias, quando uma nova ordem conservadora quis reverter todas as conquistas do período de capitalismo regulado e de alargamento dos direitos sociais no mundo, com forte repercussão nos países emergentes.

Como construir um novo Estado Social sobre as bases da solidariedade, da justiça social e da responsabilização coletiva pelos riscos individuais, em um momento de questionamento profundo do papel do Estado e de políticas públicas voltadas para reversão do quadro de desigualdades inerentes ao processo de acumulação capitalista?

No último decênio do século passado, a tônica dos discursos conservadores (mais do que liberais) foi o forte questionamento do Estado-protetor, burocrático e paternalista, assentado numa cultura de dependência assistencial e em uma estrutura tradicional de família. Criticou-se o excesso de taxação e de igualitarismo promovido pelo Estado, com efeitos negativos sobre o plano da eficiência, o estímulo empreendedor, o estímulo ao trabalho e a liberdade de escolha.

Esse questionamento repercutiu fortemente em todos os países e provocou reformas institucionais que, de maneira geral, iniciaram ou acentuaram processos de privatização, que buscam transferir, para os ombros dos indivíduos, parcelas crescentes da cobertura dos riscos sociais e o estímulo à participação privada (com e sem fins de lucro) na oferta e gerenciamento dos serviços sociais.

Porém, foi nos países fora do centro econômico mundial que a onda conservadora mais se impregnou e teve efeitos deletérios. Isso se deu pela incipiente base do Estado Social, pela crise econômica que assolou vários desses países no final do século, pela estreita base tributária, pela frágil cultura de solidariedade e ethos público, pela escassez de partidos de cunho socialista e social democrata, por um perfil econômico agrário baseado na grande propriedade, pela pouca proteção ao trabalho, entre outros fatores.

Mesmo assim, foi possível construir ou adensar políticas de proteção em algumas nações, com destaque para os países emergentes da Ásia, e implantar políticas redistributivas na América Latina, o que gerou o fortalecimento da assistência social no tripé da Seguridade Social (Previdência, Saúde e Assistência).

Essa forte vocação para a área assistencial se explica também pelo tipo de desenvolvimento econômico (pós 2004) das economias sul americanas, com forte participação do consumo privado no PIB, expansão do setor de serviços, fraco desempenho da indústria local e crescimento das exportações de commodities de diferentes tipos (minério, petróleo, carne, produtos agrícolas).

Tal padrão de desenvolvimento necessita incorporar massas crescentes ao mercado de consumo, o que impõe melhoria e redistribuição de renda (via trabalho ou transferências), desoneração fiscal, aumento progressivo de salário, investimentos em serviços sociais de atendimento pontual e voltados para problemas e populações específicas.

Nessa perspectiva, outros tipos de políticas sociais, como a de saúde, por exemplo, se justificam mais pelo incentivo econômico à produção de insumos, equipamento, enfim, ao complexo da cadeia produtiva da saúde, do que pela instituição de um sistema com ações e serviços igualitários e atendimento equânime, eficiente e de qualidade a todos os cidadãos.

No Brasil, a criação e a expansão do SUS nesses últimos 25 anos se deu justamente em meio a concepções distintas sobre o Estado Social. De um lado, assentou-se em uma proposta abrangente de Seguridade, inscrita na Constituição de 1988, baseada em um desenho integrado e universalista de políticas sociais, e sustentado por intensa mobilização de atores políticos setoriais. De outro, iniciou-se nos anos 1990 em um contexto de predomínio de uma visão negativa do Estado; para se defrontar, a partir dos anos 2000, com uma retomada da valorização do Estado, mas sob um modelo de articulação entre o econômico e o social que confere pouco espaço às políticas sociais universais.

Mesmo em um cenário adverso, o SUS propiciou algumas mudanças importantes. Em primeiro lugar, houve a criação de uma estrutura de serviços descentralizada, calcada no desenho federalista, favorecendo a criação de uma base de apoio nos políticos e outros atores locais e regionais. O processo de descentralização ocorreu com progressiva redução da participação federal no financiamento, e maior assunção subnacional dos gastos, dos arranjos assistenciais, da gestão do mix público-privado e do padrão e extensão de cobertura.

Em segundo lugar, ocorreu uma expressiva expansão dos serviços de atenção básica em saúde no território nacional, propiciada por amplo consenso internacional e nacional em torno do tema, com repercussões positivas para o acesso e melhoria de alguns indicadores de saúde da população. No entanto, pouco investimento de forte conteúdo tecnológico foi feito no período, e os serviços privados na área diagnóstica, terapêutica e hospitalar de alta complexidade se expandiram, principalmente nos maiores centros urbanos.

Assim, outro processo se alastrou: o da intensa participação privada na assistência à saúde, de diferentes formas: na oferta de serviços; na oferta de tecnologias de ponta para todo tipo de procedimentos médicos; na intermediação financeira no mercado de saúde; no estímulo à conformação de grandes grupos capitalistas na área, envolvendo serviços, finanças e indústria, de caráter multinacional. Tal expansão privada contou com forte financiamento e subsídio estatal, o que em parte explica um gasto privado maior que o público na área da saúde no Brasil e um mercado de saúde de natureza privada operando fora e dentro do SUS.

Na ótica econômica, o crescimento do segmento privado via empresas que comercializam planos e seguros de saúde tem uma fácil explicação, pois há um gatilho acionado para a expansão toda vez que cresce o emprego formal e há expansão econômica, como ocorreu nos anos mais recentes. O mesmo gatilho funciona de forma muito mais leve no SUS, dado o atrelamento da elevação do financiamento via Tesouro segundo a variação nominal do PIB. Os gatilhos são diferentes em intensidade e impacto e podem explicar os movimentos de expansão ou de retração no SUS e no segmento privado.

Na ótica da política, o crescimento desse segmento também pode ser explicado pelo caráter e sentido da ação estatal, em face dos numerosos incentivos e do modelo regulatório adotado no período do SUS. Além de implantada tardiamente (a partir de 1998/1999), a regulação estatal operada por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar tem servido mais à organização dos mercados e à (limitada) regulamentação de relações contratuais entre empresas e clientes, o que constitui atividade típica de qualquer Estado capitalista, sem que signifique a existência de um Estado Social. 

 A privatização ocorre com o avanço da participação privada na oferta e gerenciamento de serviços de saúde (hospitais, ambulatórios, laboratórios) componentes da base do SUS (via contratos, convênios com instituições filantrópicas, lucrativas, Organizações Sociais, entre outras), e pelo peso do setor privado operado via empresas de planos e seguros (com quase 50 milhões de usuários e faturamento da ordem de R$ 80 bilhões), ambos contando com financiamento público (na forma de impostos, isenções e desonerações fiscais e subsídios diversos, inclusive ao crédito).

Na verdade ocorre um processo combinado de desmercantilização do acesso (via SUS pela gratuidade ou via planos pela isenção fiscal ilimitada), acelerada mercantilização da oferta (via expansão dos serviços privados, principalmente na área de maior densidade tecnológica) e, finalmente, estímulo crescente à capitalização e formação de grandes conglomerados oligopolistas que englobam serviços, finanças e indústria.  Esse é, aliás, o padrão observado em outras áreas – alimentos, energia, armamentos – como forma de controlar os riscos inerentes ao processo de crescimento exponencial dos ativos financeiros (que atingiram, em 2007, a soma de quase US$ 200 trilhões, frente a uma riqueza real de quase US$ 60 trilhões, segundo estimativas do Mcklinsey Global Institute).

Dessa forma, o sistema público e o segmento privado concorrem pelo financiamento público, dependem da compra de serviços privados para dar cobertura aos seus segurados, são reféns da indústria internacionalizada do complexo produtivo e, portanto, possuem pouca margem de manobra para controlar custos e regular os provedores.

Essa coexistência têm efeitos deletérios do ponto de vista da eficiência geral do sistema de saúde (tendência à incorporação tecnológica e custos crescentes, sob-restrito controle; busca de lucros pelas empresas); e da equidade, visto que perpetua as desigualdades no acesso, utilização e qualidade dos serviços entre as pessoas, segundo sua capacidade de pagamento e de usufruto da atenção disponível nos distintos segmentos. Tende ainda a colocar os serviços públicos em situação de complementariedade aos privados, nos casos de “clientes” que não interessam aos mercados (idosos e doentes crônicos, que requerem tratamentos de alto custo).

O padrão de desenvolvimento fortemente assentado no consumo e nas exportações, que é a marca desse novo período, favorece e necessita de políticas voltadas para inserção de grandes massas no mercado de consumo e o estímulo à conformação de conglomerados para fazer face à concorrência internacional dessa fase da globalização.

As medidas recentes de fortalecimento do consumo das famílias, o intenso processo de desoneração fiscal de alguns produtos de consumo de massa, o estímulo ao crédito via redução dos juros, podem explicar o crescimento do consumo das famílias em quase cinco pontos percentuais entre 2004-2008 e 2011-2012, conforme artigo de Bráulio Borges (Folha de São Paulo, de 17/03/2013).

Nesse novo padrão de desenvolvimento, a política social foi direcionada não para fincar as bases do Estado Social com a finalidade da criação de uma sociedade de iguais protegida das forças do mercado, mas para operar politicas focalizadas de combate à desigualdade, da forma mais rápida e impactante no consumo das famílias.

Isso é o que chamamos de doença holandesa (sobrevalorizar uma atividade de forma a aniquilar outras) da política social, isto é, a acentuada ênfase estatal nas ações e estratégias de forte impacto no aumento do consumo das famílias, de maneira a subtrair recursos, vontade e apoio para a criação das bases de uma Seguridade Social universalista e solidária.

 Nesse modelo, o Estado Social carece de recursos, desmorona ou é ativamente desmantelado porque as fontes de lucro capitalista foram levadas da exploração da mão de obra fabril para a exploração dos consumidores. Os pobres precisam de dinheiro e de linhas de crédito para consumir e ter alguma utilidade na economia; e esses não são os tipos de serviços fornecidos pelo Estado Social, como afirma acertadamente Zigmund Bauman em obra recente, intitulada “Danos Colaterais”.

Não se trata aqui de ignorar a relevância do aumento do poder de consumo das famílias como expressão da redução das desigualdades de renda e da possibilidade de acesso de grupos sociais menos favorecidos a bens até então disponíveis para poucos. Trata-se, no entanto, de reconhecer que essa estratégia isoladamente não é suficiente. Na área social, a individualização dos riscos e da responsabilidade sobre a proteção – consequências do esvaziamento do Estado Social e da rarefação das políticas universais-, em médio e longo prazo, reitera padrões de estratificação e erode as possibilidades de construção de sociedades mais solidárias.

O debate sobre o novo-desenvolvimentismo está em construção, no plano teórico-acadêmico e político-governamental. A forma como a política social se articula às políticas econômicas representa uma questão crucial para a natureza de novos Estados desenvolvimentistas. O novo-desenvolvimentismo não pode se resumir apenas a uma visão “neoestruturalista” – no sentido do fortalecimento de segmentos da indústria, de grupos capitalistas nacionais, de promoção do dinamismo econômico –, atrelados a políticas de combate à pobreza e criação de novos mercados de consumo.  Essa é uma opção limitada, que tende a reproduzir problemas antigos, não dá conta das transformações no capitalismo e perpetua a fragmentação e as desigualdades na sociedade.

Como adverte Peter Evans em sua produção recente, os novos Estados desenvolvimentistas deveriam conferir centralidade às políticas sociais de caráter universal – como educação e saúde – dada a sua importância não somente na perspectiva dos direitos sociais, mas também na geração de empregos qualificados e na construção de novas capacidades, cruciais na fase atual do capitalismo mundial, baseado nos setores de serviços e no peso das inovações tecnológicas. A construção desse modelo passa pela condução estatal das políticas, pelo limite às forças de mercado e por uma nova forma de “autonomia inserida” do Estado, que não se resume às relações com os grupos capitalistas, mas sim à permeabilidade a diversos grupos sociais, em um contexto democrático.  

Em que pesem as dificuldades relacionadas ao cenário do capitalismo global, na América Latina o Brasil teria uma posição privilegiada para conformar um novo modelo desenvolvimentista, que integrasse políticas econômicas e sociais em outra lógica, conferindo um lugar de destaque para as políticas universais. O país já é uma das maiores economias do mundo; uma democracia recente, porém estável; dispõe de instituições políticas relativamente sólidas; de uma população numerosa, com uma proporção ainda expressiva de jovens; de uma Constituição nacional que assegura direitos sociais amplos; de um desenho de sistema de saúde público e universal, singular entre as nações capitalistas da Região.

Quem dera aproveitássemos o momento para superar as nossas contradições históricas e promover mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento e no caráter da política social brasileira, conformando um novo Estado Social, com vistas à construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Nesse projeto, o sentido do SUS, como expressão de uma política de saúde efetivamente universal, estaria claro para todos.

* Professora do Departamento de Medicina Preventiva/Faculdade de Medicina/ Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade do CNPq e membro da Plataforma Política Social. E-mail: analuizaviana@usp.br.

** Pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde/Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz. Bolsista de Produtividade do CNPq e membro da Plataforma Política Social. E-mail: cristiani@ensp.fiocruz.br.

Fonte: Cebes

"A Bico de Pena*", por Luciana Nepomuceno

PICICA: "Conversando sobre o tema com xs outrxs cuidadorxs do FemMaterna, fiquei com a impressão que devemos dar destaque às pequenas atitudes cotidianas. Entre as coisas bonitas que aprendi, as que recordei e tudo que fui ressignificando sobre o crescimento das crianças e sua relação com o espaço, três coisas me chamaram a atenção e quis destacar pra gente pensar mais sobre isso:..." 


A Bico de Pena*


Texto de Luciana Nepomuceno com contribuição de Deborah Junqueira e Ludmila Pizarro.

Não sei como desenhar o menino.
Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive. Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo.
(Clarice Lispector)

Tenho algumas amigas com filhos bebês e, quase diariamente, vejo fotos de suas estripulias no Facebook: Primeira papinha, engatinhando, montando a cacunda do vô, etc. Minha irmã tem um filho de 5 anos e, volta e meia, tem uma gracinha descrita: a primeira palavra lida, as tiradas espontâneas e engraçadas, as aventuras físicas de escalar, pular, correr, etc. Essa semana uma amiga querida que conheci recentemente de forma virtual, a propósito do aniversário de 16 anos do meu filho, disse que me achava uma mãe bem discreta. Como discrição não é um termo que costuma aparecer relacionado a mim (geralmente é estabanada, zoadenta, desastrada) perguntei por que ela pensava aquilo. E ela me disse que eu não costumava falar muito do Samuel, contar suas “estripulias, gracinhas, aventuras” (pra ficar nos termos que usei antes).

Pensei sobre isso e é verdade. Fiquei lembrando que, quando ele era menor, eu falava bem mais sobre ele. Ou, acho, falava bem mais por ele, no lugar dele, em nome dele. Quando ele foi crescendo, essa dinâmica foi mudando. Pra ser ele, ele é cada vez mais um outro, cada vez menos eu, cada vez menos meu. Cada vez menos minhas, as suas estripulias, gracinhas e aventuras. Agora são dele a voz e a seleção e, quando eu conto alguma coisa ainda (quem resiste a?) é de um lugar de participante, de espectadora, não mais de narradora onisciente.

E como uma coisa puxa a outra, dessa apropriação do discurso sobre si mesmo, fiquei pensando na conquista e relação com o espaço, processos que se acompanham, interagem e se definem, acho eu. Tenho cá pra mim que nós nos tornamos quem somos agindo sobre o mundo e, neste processo, significando a ação do mundo sobre nós. Ou seja, as crianças desenvolvem sua individualidade/subjetividade na interação com sua realidade concreta (seja material, seja relacional). Nesse processo, a negociação em relação aos espaços e objetos da casa se coloca na relação com as demais pessoas residentes; em relação aos espaços externos ao doméstico com os demais frequentadores. A criança ocupa espaços proporcionalmente maiores, tornando-se perante o mundo um sujeito progressivamente mais interativo, mais visível, mais independente da mediação dos cuidadores que antes era circunscrita à casa.

Espaços preferidos dos irmãos Lucas (13) e Raquel (7): os quartos! Foto de Humberto Massa.
Espaços preferidos dos irmãos Lucas (13) e Raquel (7): os quartos! Foto de Humberto Massa.

Uma das coisas mais difíceis que aprendi e vejo os cuidadores aprendendo (ou não) é deixar a criança pra lá. Isso mesmo: esquecer-se dela. Deixá-la em paz pra cair, desmontar o brinquedo, tacar a testa na quina da porta, brincar, pensar na vida, ou seja, abrir espaço pro seu mundo interior se expandir. Dizem lá Piaget e Vigotsky que linguagem, pensamento e fabulação têm íntima relação. Então nada melhor que dar um tempinho pra essas coisas, né. Claro que é um difícil exercício de humildade aceitar que não somos imprescindíveis para as crianças (nem pro mundo, #ficadica) e é um processo de desapego entender que as vivências deles não precisam sempre passar pelas nossas ou ser simbolizadas como nós as simbolizamos.

Pode ser difícil essa aprendizagem do “deixa quieto” num contexto em que a polivalência, a onipresença e a onisciência são características não só divinas, mas também cobradas como maternas. A mãe precisa saber de tudo, precisa estar a par de tudo e ter absoluto controle, do contrário não será desculpada e será enquadrada como “faltosa”, pouco zelosa. Não é raro ouvir a expressão: “essa criança não tem mãe não?” quando a mesma está fazendo alguma traquinagem. O pai, em contrapartida, encontra mais conforto e acolhimento quando a ideia é o “deixa pra lá”. Os comportamentos que levariam à censura no caso da mãe aparecem, no exercício da paternidade, como despojamento. O pai é considerado um pai tranquilo, desapegado e relax enquanto a mãe é considerada pouco atenciosa, desatenta. As demandas se transformam conforme o cuidador, como se houvesse sobre a mesma criança responsabilidades individuais e específicas, e não compartilhadas e coletivas.

A verdade é que não há fórmulas. Cada criança tem seu ritmo, sua formas de lidar com o mundo e tudo isso atravessa e é atravessado por vários elementos que não controlamos a priori. Agindo ali, na surdina, estão: a geografia do nosso entorno (crescer no sertão, na serra, em uma metrópole, cada um destes ambientes tem limitações e potenciais), a classe social a que a família pertence (o que pode possibilitar, por exemplo, que a criança tenha um quarto só seu, espaços individuais para ocupar), a quantidade e idade das pessoas residentes na moradia, a tecnologia a que se tem acesso, a proximidade e tipo de interação – ou não – com outras crianças na rua, primos ou na escola, os grupos de adultos com os quais a criança interage e a forma como esse processo acontece (avós, amigos dos pais, vizinhos)…

Conversando sobre o tema com xs outrxs cuidadorxs do FemMaterna, fiquei com a impressão que devemos dar destaque às pequenas atitudes cotidianas. Entre as coisas bonitas que aprendi, as que recordei e tudo que fui ressignificando sobre o crescimento das crianças e sua relação com o espaço, três coisas me chamaram a atenção e quis destacar pra gente pensar mais sobre isso:

1. A primeira foi a importância de construir um espaço que seja da criança e cada vez mais dela. Quando a criança é menor, o seu espaço (seja um quarto individual, seja sua rede, seja seu cantinho da cama) é determinado e construído pelos adultos ou, caso tenha outras crianças morando na casa, pelas pessoas mais velhas, residentes na casa. Nesse momento é relevante fazer esse espaço ser acolhedor e acessível: deixar os objetos do seu interesse (seus brinquedos, por exemplo) a seu alcance, organizar as coisas de forma que ela tenha acesso ao espaço. Quando a criança for crescendo e sua individualidade se consolidando e se manifestando, parece legal negociar as mudanças que ela deseja (dentro do que a família pode arcar) no ambiente. Outra coisa que me parece oportuno é respeitar, de acordo com as fases, a ação da criança sobre seu próprio espaço. Se é indicado que ela arrume as gavetas ou guarde os brinquedos e ela o faz não como o adulto gostaria, mas seguindo a sua lógica particular, considero salutar valorizar o que foi feito e respeitar essa lógica.

A mesa da criança e a prateleira dos filmes infantis na estante da família. Foto de Amanda Vieira.
A mesa da criança e a prateleira dos filmes infantis na estante da família. Foto de Amanda Vieira.

2. O segundo ponto refere-se à ocupação conjunta do que eu chamo áreas comuns ou espaço coletivo da casa: cozinha, sala, área, quintal… eu considero divertido, instrutivo (pra todos os envolvidos) e necessário (pra o aprendizado da convivência social) que as crianças ocupem os espaços comuns desde cedo. Nas interações com xs cuidadorxs na lista, foi recorrente a narrativa do prazer e interesse que as crianças têm nestes e por estes espaços. É na sala que elas arrastam cadeiras, espalham brinquedos, montam quebra-cabeças, veem tv, brincam com os animais, etc. É, também, a maior parte das vezes, na sala que elas interagem com os adultos em atividades que vão da realização de tarefas a brincadeiras físicas ou mentais partilhadas. Assim, potencializar a interação da criança com este espaço pode ser bem enriquecedor da convivência (separar os DVDS dela, deixar um lugar específico na estante pros livros ou objetos dela, negociar o arranjo dos móveis, o tipo de apresentação do espaço – e nessa negociação incluir a arrumação e recolha dos objetos espalhados). A ocupação do espaço coletivo passa também pelo aprendizado necessário de que o espaço é meu e é do outro também e a responsabilidade por ele é compartilhada como o é seu uso. Então faz parte da ocupação de espaço sua organização, devidamente combinada de acordo com as possibilidades (idade, condição física, entre outros fatores) da criança. Ela terá a possibilidade de compreender a construção e manutenção coletivas do espaço como necessárias e fundamentais para seu desfrute coletivo. Este pode ser também um momento interessante para vivenciar não só a divisão de tarefas de acordo com a idade, mas para a desconstrução da ideia de divisão de tarefas por gênero: então todos bagunçam, todos usam o espaço, todos o aproveitam e todos o organizam também. A discriminação e a desigualdade podem ser ensinadas desde cedo, então que se ensine a igualdade desde sempre e se quebre com impressões naturalizadas na cultura como, por exemplo, a ideia de que “as meninas são organizadas” e “os meninos são assim mesmo, bagunceiros”. Esses rótulos, além de encaixotar e rotular as crianças impondo-lhes expectativas, servem para legitimar a manutenção e reprodução de uma das faces mais nítidas da desigualdade de gênero que é a realização das tarefas domésticas designadas, quase exclusivamente, para as mulheres.

3. Por fim, a questão da rua: sair do quarto, sair de casa, sair de um tipo de estrutura que, por mais confortável, dinâmica e amorosa que seja, é, ainda assim, uma estrutura que determina padrões, que se calca em papéis. A rua, então, é um espaço privilegiado de ousar, reinventar, possibilitar à criança outros papéis que não os de filho mais velho, mais novo, único, irmão, etc. Parques, praças, parquinhos de brinquedos, a escola, espaços de socialização, expansão, interação, todos estes me parecem espaços privilegiados para a criança ir desenvolvendo a sua organização interno/externo, a simbolização do mundo objetivo e a construção mais ampla da sua subjetividade, além da cidadania, respeito e cuidado com o que é público. Interagir no espaço público favorece que a criança redimensione sua relação com as demais e com os espaços partilhados. Enquanto em casa as coisas são mais negociadas e os adultos estão mais dispostos a ceder espaço, na rua há limites mais rígidos, com menos disposição para flexibilidade e mais necessidade de reconhecimento do outro. No espaço externo à casa a criança vivencia, em proporção e complexidade aumentadas, o que começou a aprender no âmbito doméstico. Então se o espaço de casa é igualmente ocupado e desfrutado, que o seja o externo também, e também seria interessante que valesse para o “fora” o que vale no “dentro”, a igualdade intra-e extra-muros no que diz respeito ao gênero da criança. Meninos e meninas devem ser chamados a ocupar e utilizar igualmente o espaço da rua, e a cobrar seu lugar ali da mesma maneira, em condições de igualdade, passando pelo uso da quadra (quantas vezes vemos as quadras ocupadas por meninos enquanto as meninas ficam “naturalmente” quietinhas ali perto?) e pela extinção da frase abominável: “isso não é brincadeira de menina”, geralmente relacionada a algo que envolve intensa atividade física. A necessidade de se investir em uma convivência respeitosa se acentua quando lembramos que o preconceito e a crueldade se intensificam em relação a quem não se enquadra facilmente ao padrão (aqui um tocante depoimento sobre racismo e infância, aqui uma reflexão sobre o sistema binário, sua imposição violenta sobre os corpos e o sofrimento das pessoas trans e aqui um vídeo instrutivo de um adolescente de 12 anos resistindo ao bullying que sofre em espaço público, tanto concreto quanto virtual). O exercício da igualdade na ocupação dos espaços públicos é um passo pequeno, mas necessário, para que a rua deixe de ser um espaço hostil para as mulheres (aqui um bom texto sobre as diversas manifestações de desrespeito, pra dizer o mínimo, cujo alvo são as mulheres – de forma geral e em sua especificidade. São situações cotidianas, nos transportes públicos, calçadas, praças e tão imbricadas na cultura que se considera “normal” que as mulheres de todas as idades tenham que lidar com isso).

Hoje, meu filho é adolescente e vou contar pra vocês que este processo que vai da construção de um espaço individual até a ocupação responsável do espaço público não aconteceu assim (e nem é usual que aconteça), tão linearmente. Eu e o pai dele nos separamos quando ele tinha 02 anos. De lá pra cá nós dois moramos num apartamento, depois fomos morar com meus pais, o pai dele morou só, depois casou, depois eu voltei pro apartamento com o Samuel, depois foi morar conosco meu companheiro, depois me mudei pra trabalhar e o Samuel ficou morando com meus pais, depois foi morar comigo em uma cidade do interior do RN, depois votou pra o Ceará e agora mora com o pai. Uffa! Cansa só de ler, né?

De todo esse vai e vem, o que sei é que os espaços não foram sempre os mesmos e nem mesmo foram sempre os melhores espaços. Mas foram os espaços que construímos, no nosso potencial, com nossos interesses e respeito ao limite dos outros, dentro da nossa dinâmica familiar. Hoje, meu menino (cada vez mais ele, cada vez menos meu, cada vez menos eu) ainda deita no sofá e põe a cabeça no meu colo pra gente ver filme junto (ou, a bem da verdade, eu é que deito no colo dele) e deita na rede na casa da avó pra ler A Guerra dos Tronos, ainda são os espaços comuns o lugar de interação. E lá, no quarto que é ele, ops, que é dele, que ele joga, estuda e se prepara pra ir pra rua. Ser outro. Ser ele. Ocupar.

Teresa na sala de casa. Foto de Ludmila Pizarro e Leonardo Kenji Shikida.
Teresa na sala de casa. Foto de Ludmila Pizarro e Leonardo Kenji Shikida.

“Acho que o espaço da Teresa em casa é definitivamente a sala. Ela sempre morou no mesmo apartamento, então o desenvolvimento dela passou todo pela sala. É na sala que ela interage com os brinquedos e com a nossa gata Zul. A partir do momento que ela começou a engatinhar, com seis meses mais ou menos a gente cobriu o chão com placas de EVA que ficaram lá até depois dos 2 anos. Até hoje ainda tem muito brinquedo dela na sala, talvez por ser o cômodo mais espaçoso também. E hoje ela tem a mesinha que ela desenha, brinca de massinha, pinta e tal. Então, eu acho que de certa forma a sala representa bem o funcionamento da casa e da família, sabe.

Teresa na sala de casa. Foto de Ludmila Pizarro e Leonardo Kenji Shikida.
Teresa na sala de casa. Foto de Ludmila Pizarro e Leonardo Kenji Shikida.

Quando a Teresa era mais nova e tomava a sala inteira, era a necessidade de espaço que um bebê tem que falava mais alto. Ela ocupava a nossa rotina tanto quanto a sala, entende? Depois que ela foi crescendo, os espaços ficaram mais democráticos. Hoje a sala já não é mais só dela, mesmo sendo, ainda, um espaço que ela utiliza bem. E eu nem acho isso ruim. Acho que foi um processo natural, onde as necessidades dela foram trabalhadas sem stress e com muito afeto mesmo. Ela adora, por exemplo, assistir TV ou filminho deitada no meu colo. Hoje a gente brinca muito no sofá, só que são brincadeiras diferentes né? Hoje é uma coisa bem mais mental, de faz de conta, ou jogos, é uma relação diferente com o espaço, que pode ser compartilhado com outras atividades. Ela curte muito o quarto dela para dormir (o que eu acho muito saudável e ela realmente dorme muito bem), mas ela vai lá, pega o brinquedo e brinca na sala. E o resto da curtição realmente fica para os espaços externos. Ela adora ir em parques, clube, a escola dela é uma maravilha nesse aspecto, adora mata. Ontem mesmo a gente saiu para ir à padaria e ela me falando de uma “floresta que ela tinha ido que tinha muita palha’ E eu pensando: imaginação né? Aí ela falou, você também foi, mãe, quando o papai tocou gaita’. Aí eu me toquei que era um bar que a gente foi em Macacos, um vilarejo super perto daqui de BH, que um amigo nosso estava tocando e o Kenji deu uma canja. E achei fantástico como ela transformou o espaço verde em ‘floresta’ né? Acho que nessa idade tudo é bem mais interessante, mais colorido, mais mágico mesmo. E tem a escola, a Teresa tem o privilégio de estudar numa escola que tem uma mata enorme, casa da árvore, viveiro, uma estrutura bem legal.”

PS. Este post foi motivado, em grande parte, pelo ensaio do fotógrafo James Mollison que em uma viagem ao redor do mundo criou uma série de fotografias mostrando os quartos infantis. Se você quiser conhecer o resultado final do trabalho, é só espiar o livro dele aqui. Caso você, como eu, não leia inglês, pode ter uma idéia do trabalho nesse link e nesse vídeo.

* Título do Post em referência ao conto “Menino a Bico de Pena” de Clarice Lispector, no livro Felicidade Clandestina
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Luciana Nepomuceno é mãe do Samuel e escreve no blog Borboletas nos olhos.

O FemMaterna é um grupo de discussão sobre maternidade com uma proposta feminista. Se quiser participar, basta pedir solicitação na página do grupo. Participe também no facebook

FemMaterna

Somos mães e feministas, buscando educar noss@s filh@s de maneira libertária. Buscamos construir com eles um mundo que acolha a diversidade e que questione desigualdades, preconceitos e estereótipos.

Fonte: Blogueiras Feministas

"A pobreza leva à loucura", por Gabriel Bonis



PICICA: "A ideia de traçar a relação entre pobreza e problemas mentais no Brasil, diz Melo, surgiu após a divulgação de um estudo de 2005 de Christopher G. Hudson, Ph.D em politicas de saúde mental. O trabalho analisou dados de 34 mil pacientes com duas ou mais hospitalizações psiquiátricas em Massachusetts, nos Estados Unidos, entre 1994 e 2000. E concluiu que condições econômicas estressantes, como desemprego e impossibilidade pagar o aluguel, levam a doenças mentais. E mais: a prevalência destas enfermidades nas comunidades ricas analisadas foi de 4%, contra 12% nas mais pobres."
EM TEMPO: Em Manaus, o Centro de Educação Tecnológica do Amazonas, a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas, a Secretaria de Estado de Assistência Social, a CUT-AM, o Instituto HSBC Solidariedade e a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) são parceiros do Projeto Nós & Voz, de inclusão social de pessoas com grave sofrimento psíquico, mediante a oferta de cursos profissionalizantes de serigrafia, cozinha e costura, tendo por objetivo a geração de renda mediante a prática da Economia Solidária. O Projeto nasceu de uma parceria entre a Associação Chico Inácio - filiada à Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial - com a Pro-Reitoria de Extensão da UEA.

Saúde

A pobreza leva à loucura

Estudos estabelecem relação direta entre a desigualdade social e a incidência de doenças mentais nos desassistidos 
 
por Gabriel Bonis publicado 25/05/2013 
 

Estudos estabelecem relação direta entre a desigualdade social e a incidência de doenças mentais nos desassistidos

Na Londres do século XIX, Charlie Chaplin viveu uma infância atormentada pela pobreza e a instabilidade familiar. O ícone do cinema mudo perdeu o pai para o alcoolismo e acompanhou o declínio mental da mãe em meio à miséria. Embora evidências recentes sugiram que a “loucura” de Hannah Chaplin tenha sido causada pela sífilis, o comediante registrou em sua autobiografia que os problemas mentais da matriarca, surgiram porque ela passava fome para que os filhos pudessem comer.

Ainda que cientificamente incerto, o caso é um exemplo longínquo da relação entre pobreza e transtornos mentais, estudada ao menos a partir dos anos 1930. Desde então, surgiram pesquisas mais contemporâneas, entre elas uma análise que transplanta essa correlação ao Brasil. Feita em 2013 com dados do Censo do IBGE de 2010, um levantamento da ONG Meu Sonho Não Tem Fim indica que das mais de 2,4 milhões de pessoas com problemas mentais permanentes acima de 10 anos no Brasil, 82,32% são pobres.

Dentro desta proporção, 36,11% não possuíam rendimentos mensais e 46,21% viviam com até um salário mínimo. Outras 15,49% estavam na faixa entre um e cinco salários e apenas 2,19% recebiam acima desse patamar. “É preciso considerar que esses problemas também são causados por aspectos como a genética, mas a falta de uma alimentação mínima pode contribuir para o aparecimento de doenças que afetam o desempenho mental”, afirma Alex Cardoso de Melo, responsável pela pesquisa e idealizador da ONG, focada em trabalhos educativos com populações carentes.

A ideia de traçar a relação entre pobreza e problemas mentais no Brasil, diz Melo, surgiu após a divulgação de um estudo de 2005 de Christopher G. Hudson, Ph.D em politicas de saúde mental. O trabalho analisou dados de 34 mil pacientes com duas ou mais hospitalizações psiquiátricas em Massachusetts, nos Estados Unidos, entre 1994 e 2000. E concluiu que condições econômicas estressantes, como desemprego e impossibilidade pagar o aluguel, levam a doenças mentais. E mais: a prevalência destas enfermidades nas comunidades ricas analisadas foi de 4%, contra 12% nas mais pobres.

Os estudos sobre o tema percorrem as décadas e suas conclusões são similares nestes períodos, descobriu o doutor em Psicologia Fernando Pérez del Río, do projeto Homem de Burgos, na Espanha. No estudo Margens da Psiquiatria: Desigualdade Econômica e Doenças Mentais, ele analisou mais de 20 levantamentos sobre o tema e reuniu as principais conclusões.

Entre elas, está a de que em países desenvolvidos como EUA e Reino Unido existem mais doentes mentais, proporcionalmente, que na Nigéria, Dinamarca, Noruega e Suécia. E que estudos estabelecem uma relação entre o grau interno desigualdade econômica de um país como condicionante direta da saúde mental de seus cidadãos.

Exemplo disso é o estudo The Distribution of the Common Mental Disorders: Social Inequalities in Europe, de 2004. O documento, citado por Del Río, indica que dos 20% da população europeia de baixa renda, 51% possuem algum transtorno menta­l grave. São pessoas que, devido a suas dificuldades de adap­tação social, acabam condenadas a trabalhar em condições precárias e com salários insuficientes, levando a má nutrição e à manutenção do circulo de pobreza e exclusão.

A integração social, por outro lado, é determinante para o acesso dos cidadãos aos seus direitos e a suas expectativas de futuro. “Ser pobre em uma sociedade rica pode ser ainda mais danoso à saúde que o ser em uma área de extrema miséria”, conta Del Rio, a CartaCapital. “É obviamente muito difícil trabalhar a frustração em uma sociedade rica, onde as expectativas são mais altas e se deprecia o fracasso.” Algo que pode ser retratado por um estudo da Organização Mundial da Saúde de 2004, no qual foi identificada a prevalência de 4,3% de transtornos mentais na conturbada Xangai, na China, contra 26,4% nos EUA.

Del Río destaca, em seu estudo, que os problemas de saúde de uma população também estão ligados a forma como a desigualdade de poder econômico e social condiciona as políticas públicas. “As doenças mentais são uma construção social. A desigualdade torna as sociedades mais classistas, o que significa que as origens familiares interferem mais nas posições sociais, o que implica na transmissão intergeracional da pobreza”, diz a CartaCapital.

Sob esse ângulo, revelam os estudos, países com menos diferenças econômicas entre seus habitantes possuem os cidadãos mais sãos. Enquanto nações com políticas neoliberais mais agressivas e individualistas estariam mais sujeitas a problemas mentais por retratar as pessoas necessitadas como “parasitas sociais”. Um cenário que reforçaria ansiedades e os níveis de estresse, favorecendo o aumento destas doenças.

No artigo The Culture of Capitalism, Jonathan Rutherford, docente de Estudos Culturais da Universidade de Middlesex, na Inglaterra, acrescenta que uma sociedade desigual é mais violenta, pois não dá o apoio correto aos seus cidadãos. O que evidencia uma vulnerabilidade capaz de gerar ansiedades. E isso pode piorar com a crise mundial e os cortes de benefícios sociais na Europa, defende Del Río. “Hoje a situação é pior, pois está se produzindo um corte das ajudas, que levam as pessoas a situações limites.”

Fonte: Carta Capital

maio 30, 2013

"Os Povos Indígenas e as terras que tradicionalmente habitam", por Iara Tatiana Bonin

Fonte: Funai


Os Povos Indígenas e as terras que tradicionalmente habitam
por Iara Tatiana Bonin/Doutora em educação pela UFRGS
Porto Alegre, RS, 28 de maio de 2013.

Os processos de demarcação das terras indígenas têm reacendido a polêmica sobre o que sejam “terras tradicionalmente ocupadas” pelos mais diversos povos indígenas brasileiros. No Rio Grande do Sul essa polêmica vem sendo mobilizada, de um lado, a partir de uma interpretação do Artigo 231 da Constituição Federal, qual seja, a de que as terras resguardadas pela Constituição seriam aquelas que os indígenas estariam ocupando na data de promulgação da Lei. Tal entendimento se vale da conjugação do verbo “ocupar” no tempo presente (terras que tradicionalmente ocupam) e, assim sendo, a data de 1988 seria o marco que separa o que pode ou não ser demarcado como terra indígena.

No outro lado da polêmica situam-se aqueles que interpretam o Artigo 231 da Constituição valendo-se do qualificativo “tradicional”, ligado ao verbo ocupar. Aliás, o termo “ocupação tradicional” refere-se a formas não ocidentais de entendimento do que seja estar lá, habitar, compartilhar, marcar a presença e o pertencimento a um território e, mais ainda, refere-se ao significado (sempre distinto) da territorialidade indígena.

Observe-se que, na primeira intepretação, vale a presença física dos índios sobre a terra (sua posse, sua ocupação concreta) e, na segunda, vale o sentido atribuído a esta ocupação da terra, bem como as relações com ela estabelecidas, o fato de se pertencer a ela, o sentimento de ser “um fio” na complexa trama de relações que ocorrem numa terra e não o sentimento de possuí-la. É por isso que, para os indígenas, não é qualquer terra que pode e deve ser demarcada, mas aquelas em que existe “tradicionalidade” na ocupação.

Neste sentido, em qualquer procedimento de identificação e delimitação das terras indígenas é imperiosa a presença de antropólogos (aqueles que dominam um campo de saber acadêmico/ científico específico e que estão respaldados por ferramentas teórico-metodológicas capazes de proceder uma leitura não simplista das formas de pensar indígenas). Não se trata, portanto, de mero procedimento burocrático, nem de um espaço de “divagações vazias” e de expressão de interesses de “ongueiros” e sim de um procedimento referendado no saber científico. Assim como em um diagnóstico médico é imprescindível a participação de um especialista (médico), na realização de um diagnóstico étnico requer a participação de um especialista (antropólogo).

A polêmica sobre o conceito de ocupação (e de pertencimento) dos indígenas a um território, e a ideia de que o direito se refere apenas a efetiva presença naquele local no ato da promulgação da Constituição Federal, faz pensar na condição dos exilados políticos de outros tempos. Quando, nos terríveis “anos de ferro” da ditadura militar brasileira, dezenas de pessoas foram condenadas ao exílio (incluindo-se aí ilustres políticos), a expulsão de sua terra ( o Brasil) não significou interrupção da noção de a ela pertencer. De tal sorte que, quando as condições se tornaram oportunas e a presença na terra não mais representava um “decreto de morte”, estes exilados regressaram e foram recebidos como verdadeiros brasileiros, como sobreviventes de um modelo cruel, irracional, autoritário e vergonhoso.

Não é intrigante que a condição de exílio dos indígenas (forçados a deixar suas terras, que foram usurpadas, loteadas, vendidas a agricultores) seja hoje questionada? Não é espantoso que se pense que a expulsão dos povos indígenas (com a força das armas e de um modelo unilateral de desenvolvimento) seja utilizada como argumento para defender a “perda” do direito tradicional sobre suas terras? Mais paradoxal ainda é a polêmica protagonizada hoje, por exemplo, por parlamentares e membros do poder Executivo que, mesmo não estando “aqui” durante um período autoritário e ditatorial, reconquistaram o direito de retomar a tradicional vinculação com sua terra natal e são brasileiros o bastante para ocupar altos postos do governo, para representar os cidadãos e suas demandas.

Assim, aos índios, nos cabe também o reconhecimento de que sua expulsão (ou exílio) das terras que ocupavam não inviabiliza o reconhecimento da tradicionalidade desta ocupação. A demarcação de todas as terras indígenas, além de resguardar um preceito constitucional, será a prova cabal de que nossa noção de democracia inclui o reconhecimento de equívocos de passado e, mais do que isso, que estamos dispostos a repará-los e promover a justiça.

Fonte: Página do Henyo Barreto Trindade Filho

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"Mapuches silenciados na Corte Inteamericana de Direitos Humanos", por Paulo Roberto

PICICA: "Um povo de tradição oral como o Mapuche tem na voz do Lonko a sua espada aguda para levar a mensagem, e ao negar a palavra a Aniceto Norin que é uma autoridade ancestral, a corte está silenciando a voz de um povo que luta para ter o direito de sobreviver com dignidade no seu território wallmapu." 

MAPUCHES SILENCIADOS NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS


por Paulo Roberto*


Hoje dia 29 e amanhã 30 de maio sete Mapuche vítimas do Estado chileno estão sendo ouvidos na CIDH em San José da Costa Rica, alias ouvidos não uma vez que eles foram impedidos de falar, o máximo que eles podem é entregar uma denuncia formalizada em papel.

Um povo de tradição oral como o Mapuche tem na voz do Lonko a sua espada aguda para levar a mensagem, e ao negar a palavra a Aniceto Norin que é uma autoridade ancestral, a corte está silenciando a voz de um povo que luta para ter o direito de sobreviver com dignidade no seu território wallmapu.

Desde o Parlamento de Coz Coz celebrado entre o Estado chileno, a Nação Mapuche e a Igreja, tinha se acordado que o território Mapuche seria respeitado e não mais eles seriam abatidos como se fossem animais. Todos sonhavam em ver a expressão marrichiweu em desuso, não mais um Waichefe abatido, não mais um Lonka torturado por defender seu povo, não mais uma Machi impedida de celebrar o Nguillatún, como é o caso da Millaray Huichalaf presa há quatro meses no cárcere de Valdívia.



O Estado chileno não conseguindo colonizá-los, parte para a estratégia da “pacificação” colocam os Mapuche como selvagens, e empreendem uma estratégia de “amansar” os arredios guerreiros para conquistar aquilo que não foi possível através das armas.

A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos de silenciar a voz de Aniceto Norin e Patrícia Troncoso no tribunal é o mesmo que quebrar o arco de um guerreiro. Na língua Mapuche mapundungun a palavra pulchetun, quer dizer: faça deslizar a flecha mensageira. E essa flecha é a palavra do Lonko, autoridade ancestral que defende com coragem o povo das investidas dos inimigos, hoje as transnacionais que disputam cada palmo de terra do território Mapuche para projetos que visam somente o lucro e a exploração impiedosa da natureza.

Em uma entrevista hoje no Jornal El País Patrícia Troncoso falou que a luta perante a Corte é para acabar com a desmilitarização dos territórios Mapuche, o fim da Lei Antiterrorista e a liberação dos presos políticos Mapuche, humanizar, mas as condições das prisões onde se encontram os detidos e a devolução das terras do povo Mapuche. Enfatizou ainda que o povo Mapuche ao longo das batalhas enfrentadas desde a colonização, foi reduzido a sua população em cerca de 75% e de 10 milhões de hectares hoje conta com apenas 300 mil.

Diante desse quadro não resta outra alternativa para a nova geração de Lonkos, Konas, Machi e Weichafes, junto com o povo Mapuche, a não ser continuar lutando para reconquistar o seu território. Marrichiweu!

* Paulo Roberto é Pastor da Igreja Presbiteriana Independente e membro do Comitê de Apoio ao Povo Mapuche no Brasil