Mulheres de Olho
Aids e mulheres: cidadãs soropositivas com a palavra
02 Aug 2008
Entre 24 e 27 de julho Aracaju sediou o III Encontro Nacional das Cidadãs PositHIVas, evento que vem reunindo mulheres portadoras de doenças sexualmente transmissíveis e Aids para discutir políticas púbicas e fortalecer o papel das mulheres como agentes. A imprensa local noticiou o evento, que este ano foi internacional: entre as 24 delegadas havia representantes de quase todos os estados brasileiros, de países de língua portuguesa como Angola e Guiné-Bissau, e da América Latina. Os encontros anteriores foram realizados em Belo Horizonte e Salvador.
O III Encontro aconteceu às vésperas da XVII Conferência Internacional sobre Aids, cuja abertura acontece neste domingo, 03 de julho, na Cidade do México, e poucos dias antes da repercussão do relatório da Unaids na mídia. Lançado na terça-feira, 29, o relatório revela que, embora desde 2001 o número de novos casos por ano caiu cerca de 10% -em grande parte pelo aumento do uso da camisinha em todo o mundo- os números ainda são preocupantes quando se trata de mulheres e jovens, sobretudo nos segmentos mais pobres.
No mundo, o porcentual de mulheres com HIV permanece estabilizado em 50%, mas esta proporção continua aumentando em alguns países entre estes o Brasil, onde a epidemia está estabilizada em cerca de 30 mil novos casos por ano desde 2000. A estimativa é que, ao todo, nosso país tenha hoje 600 mil pessoas infectadas.
Uma publicação recentemente lançada em Pernambuco pela ONG Gestos, traz um balanço da feminização da aids naquele estado:
* na década de 1980 existiam 21 homens infectados pelo HIV para cada mulher com o vírus - hoje essa relação é de 1,5 homem para cada mulher;
* na faixa entre 14 e 29 anos são duas mulheres para cada homem.
A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres informa que na faixa dos 13 aos 19 anos, a relação é de 10 garotas para cada seis rapazes.
A ONG Gestos, responsável pela publicação, acrescenta:
“90% das mulheres que passaram pela clínica da instituição foram infectadas por seus parceiros, que muitas vezes questionaram o uso do preservativo ou forçaram relações sexuais, mesmo sabendo que eram soropositivos”. (Diário de Pernambuco/ Vida Urbana/ 26/06/2008 - Leia matéria no Portal Violência contra a Mulher)
Sobre esses temas conversamos com Jenice Pizão, integrante do Movimento Nacional de Cidadãs PositHIVas (MNCP).
Mulheres de Olho - O Movimento Nacional de Cidadãs PositHIVas tem conseguido vitórias. Há quanto tempo ele existe?
Jenice Pizão - Enquanto movimento organizado, desde 2004. Mas enquanto idéia e projeto que capacitou mais de 100 mulheres, desde 2001. O MNCP fez História. Mudou muito a História. Isso é que é legal!
Mulheres de Olho – Há alguns anos o Ministério da Saúde verifica a feminização da Aids no Brasil, e os dados mostram que esta tendência é maior entre mulheres casadas e menos favorecidas. Por que o país, que está tão avançado nas políticas de controle e tratamento, demorou a prestar atenção neste problema?
Jenice Pizão - Isso a gente se pergunta sempre. A feminização da epidemia da aids não é de hoje, e ela se acentua a partir de meados de 1990. Somente há um ano e meio, ou dois, existe um Plano específico, com intersetorialidade, o que é muito bom. Mas dói o coração a demora na implementação. Quantas mulheres se infectaram por falta de uma política específica! Porque as campanhas não chegam às mulheres? As campanhas são muito pontuais. Existem em determinadas datas como o primeiro de dezembro [Dia de Luta contra a Aids], Carnaval, Dia dos Namorados, no máximo. Parece que no resto do ano ninguém transa ou vive situações de vulnerabilidade. A linguagem das campanhas também precisa atingir as várias nuances dessa mulher. Você tem a mulher letrada, que freqüenta uma universidade mas que absorve uma cultura tradicional. E você tem também uma porcentagem muito grande que é analfabeta. Grande parte das mulheres não tem força para negociar a camisinha. Temos vários brasis e várias mulheres. As campanhas precisam pegar essas especificidades.
Por outro lado é preciso haver parceira com diferentes setores. O enfrentamento da epidemia de aids não está restrito à Saúde. Envolve o Ministério da Educação, o Ministério da Previdência Social e o Ministério Público também, porque o estigma e a descriminação são fortes. Sem combater esses estigmas as pessoas vão ter medo de enfrentar. É preciso envolver a comunidade empresarial, e diversos outros setores, para enfrentar de forma coerente e assertiva o aumento da epidemia. E se isto for feito sem convocar as protagonistas, para enfrentar junto a epidemia, fica faltando uma perna. As mulheres soropositivas vão saber o tom das mensagens a serem levadas. E por último, minha amada, a profunda violência de gênero que a mulher brasileira vivencia. Enquanto não minimizarmos essa violência a mulher não será dona do seu próprio destino. Ela pode trabalhar fora, ser chefe de família, mas ela não tem poder de negociação. Seu marido, seu companheiro, continuam tendo o poder de negociação. Um exemplo é o crescimento da epidemia na faixa etária da adolescência, onde a maioria dos parceiros é mais velho e o poder de negociação dessa jovem mulher é frágil.
Mulheres de Olho – Você mencionou o Plano Integrado de Enfrentamento à Feminização do HIV/AIDS e outras DST´s, que foi uma vitória das mulheres soropositivas organizadas. Este Plano foi lançado no dia 8 de Março de 2007 (Dia Internacional da Mulher). O que ele trouxe de positivo?
Jenice Pizão - A mudança foi colocar os vários parceiros para pensar em conjunto. Isto já é uma mudança. Mas na ponta ainda não tem mudanças. O Brasil é enorme e o serviço de saúde tem muitas falhas. Mesmo com um Programa Nacional de DST/ Aids como o nosso, que é referência internacional, há problemas na ponta. Não é de uma hora para outra que vamos minimizar os efeitos da epidemia nas mulheres. Não é com um lançamento bonito, com ministros, ministras e autoridades que o Plano vai funcionar a toque de caixa. É um processo.
Mulheres de Olho - Um dos temas debatidos no encontro de Aracaju foi o direito à maternidade para as mulheres soropositivas, com apoio de políticas públicas de saúde. Entretanto, existe preconceito em torno desse direito. Tanto que o âncora do jornal matinal transmitido pela emissora de maior audiência no país foi criticado pela equipe da ONG Abia, pelos fóruns de ONGs Aids e pelo próprio Programa Nacional de DST/ Aids, por seu comentário enviesado. O âncora disse: “quem antes de uma gravidez se identificar como portadora do HIV, melhor que não engravide”. Como você analisa este episódio e como explicaria, para o público desinformado, as razões que sustentam a defesa do direito das mulheres soropositivas procriarem?
Jenice Pizão - Os direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos de todas as mulheres, independentemente de serem soropositivas ou não. Há um nó pelo fato de ser mulher. Esperávamos que a mídia fosse melhor informada. A Rede Globo revelou falta de informação e levou à população uma leitura deslocada da realidade.
Se o pré-natal for de qualidade, e isso se consegue em qualquer serviço de saúde, e se for respeitado o direito de engravidar e ter o filho, com um mínimo de comportamento de segurança oferecido pelo serviço de saúde, a criança nasce com menos de 2% de possibilidade de ter o HIV. Me refiro às condições de acesso a medicamento a partir de determinada época da gravidez e no parto, assim como cuidados durante a amamentação. Este tipo de atendimento acontece desde 1994, nos serviços que têm um mínimo de qualidade. A mulher soropositiva que tem um filho sem medicamento tem 30% de possibilidade de transmitir. Mas com o acompanhamento é importante saber que esta probabilidade cai para 2%! O serviço, o profissional e a mídia têm que estar atentos, para não prestar desserviço. O Programa Nacional bate nessa tecla, nós batemos, e a Rede Globo vem com essa! Temos certeza de que a Globo não é nossa inimiga, mas foi mal brifada.
Mulheres de Olho - Quais as prioridades de luta do Movimento Nacional de Cidadãs Positivas (MNCP) para os próximos anos?
Jenice Pizão - Uma delas é exatamente formalizar ações para que o preconceito seja minimizado. Mais informações, não só de prevenção de novos casos, mas para conscientizar a população de que todo mundo está mais ou menos vulnerável a viver com HIV. É preciso ter consciência das vulnerablidades para evitar. No Brasil são mais de 140 mil mulheres soropositivas desde 1982. Temos que ter trabalhos específicos para essa mulher, pois ela é a protagonista dessa história. Ela pode trabalhar para a prevenção, trabalhar para evitar e reinfecção, trabalhar pela implementação do Plano. A mulher que vive com a HIV é parceira de excelência nessa luta.
Mulheres de Olho - O Movimento Nacional de Mulheres SoropositHIVas estará presente na XVII Conferência Internacional sobre Aids, na Cidade do México?
Jenice Pizão – Conseguimos garantir a ida de três companheiras, com apoio de organismos internacionais e também, de certa forma, do Programa Nacional (de DST/ Aids): Maria Aparecida Lemos, do segmento aids e deficiência; Sirlene Cândido, ligada ao núcleo de mulheres lésbicas que vivem com HIV -pode parecer surpreendente mas este grupo existe e aí está um outro nó. E também a Beatriz Pacheco, que é fundadora do Movimento e tem mais de 60 anos!
Angela Freitas/ Instituto Patrícia Galvão
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