agosto 02, 2008

Falsa crítica: redução de leitos causa aumento de mortes de portadores de transtornos mentais?

Fortaleza - Ceará

Nota do blog: Virou moda dizer que redução de leitos causa aumento de mortes de portadores de transtornos mentais. Em Fortaleza, um dono de hospital assim o disse com todas as letras. Leia a matéria em: http://www.opovo.com.br/opovo/fortaleza/798502.html). A Rede Globo desenvolve a mesma linha. Taí uma falsa crítica a que estão expostos os leitores da grande mídia. Se liga aí, maninho: é hora de ler mais os blogs, lugar onde a informação é mais fidedigna.

Os mlitantes antimanicomiais devem estar preparados para separar o joio do trigo e responder a esses tipos de falsa crítica, preferencialmente com embasamento científico.

Foi isso o que fez Luís Fernando Tófoli numa carta endereçada para a Revista Brasileira de Psiquiatria.

Anote a referência: TÓFOLI, Luís Fernando. Com menos hospitais psiquiátricos, morrem mais portadores de transtornos mentais no Brasil? Revista Brasileira de
Psiquiatria, v. 30, n. 2, p. 170-171, 2008.

Advertência: Certamente, a redução de leitos não aumenta o número de óbito de pessoas em sofrimento mental. O efeito principal, na medida em que não são implantados os serviços que substituem o manicômio, é a desassistência. Em verdade, essa falsa questão obscurece uma outra: o fracasso da implantação dos Serviços Residenciais Terapêuticos, que estimula a permanência nos hospitais psiquiátricos de mais de 10 mil pessoas em todo o país, reduzindo as chances de inclusão social dos usuários de longa permanência institucional.

Com menos hospitais psiquiátricos, morrem mais portadores de transtornos mentais no Brasil?
Are more persons with mental disorders dying due to fewer mental hospitals in Brazil?

Sr. Editor,

Na edição de 9 de dezembro de 2007, o jornal O Globo publicou a reportagem "Sem hospícios, morrem mais doentes mentais", que apresentou a informação de que o "número de mortes de doentes mentais e comportamentais" aumentara 41% entre 2001 e 2006 (respectivamente, 6.655 e 9.398 mortes) no Brasil, mencionando que "[n]o mesmo período, um quarto dos leitos psiquiátricos do país foi fechado, sem que fossem criados serviços substitutos suficientes".1 Será que a ilação proposta pela matéria é cientificamente consistente? Proponho aqui analisarmos brevemente se os dados apresentados podem sustentar que o fechamento substancial de leitos psiquiátricos no país estaria associado a um acréscimo nas mortes de portadores de transtornos mentais (TM).

Já de início se percebe um erro grave na interpretação dos dados, que não dizem respeito à mortalidade geral de portadores de TM, mas sim à mortalidade específica por TM – comparável a se confundir a morte de anêmicos com a morte por anemia. Verificando na Tabela 1 os registros de mortalidade específica do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), disponíveis – infelizmente, só até o ano de 2005 – no portal do Datasus, 2 podemos constatar que 2001 apresentou as 6.655 mortes citadas pela reportagem.

Ainda assim, teria a diminuição de leitos causado um aumento na mortandade por TM? Aqui, embora de maneira mais sutil, também há dificuldades na sustentabilidade da suposição. A confiabilidade dos dados de mortalidade é particularmente escorregadia em países em desenvolvimento e a sua comparação em períodos distintos deve ser feita de maneira cautelosa, devido a possíveis alterações na captação das informações. 3 Examinando novamente a Tabela 1, observa-se que houve uma sistemática queda nos registros de causas mal-definidas, de 14,1%, em 2001, para 10,4%, em 2005, ou mais de 31 mil declarações de óbito que deixaram de ser obscuras no período. Neste contexto, dois estudos nacionais, realizados entre 1999 e 2000, que aplicaram métodos de correção de causas mal-definidas, apresentaram incrementos na mortalidade por TM de 112%3 e 68%. 4 Além disso, como mostra a Tabela 1, entre 2001 e 2005 houve também aumentos substanciais nos registros de mortalidade por doenças neurológicas e geniturinárias, sem qualquer queixa de redução no número de leitos para estas afecções.

Diante dos dados expostos, é lícito concluir que não há como sustentar, com as evidências disponíveis na reportagem, a conclusão de que a redução do número de leitos psiquiátricos levou ao aumento da mortalidade por TM, muito menos nas mortes de portadores de TM.
Isso, no entanto, não reduz a importância do estudo científico das perguntas lançadas sobre este tema. Portadores de TM têm maior mortalidade do que a população sã, mas a associação entre redução nos leitos psiquiátricos e mortalidade é mais elusiva: embora haja algumas evidências neste sentido, elas não são uníssonas na literatura. 5 A chave para sua compreensão pode estar no escrutínio de uma quantificação usada na reportagem de forma falsamente certa, mas que ainda é um mistério a ser respondido na pesquisa avaliativa em saúde mental: "serviços substitutivos suficientes".

Luís Fernando Tófoli
Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará (UFC), Sobral (CE), Brasil

Financiamento: Inexistente
Conflito de interesses: Inexistente

Referências

1. Aggege S. Sem hospícios, morrem mais doentes mentais. O Globo, Rio de Janeiro. 2007 09 dez/set; Seção O País: 14.
2. Datasus. Informações de Saúde: Estatísticas vitais - mortalidade e nascidos vivos. citado 10 dez 2007. Disponível em: http://www.datasus.gov.br/.
3. Laurenti R, Mello Jorge MHP, Gotlieb SLD. A confiabilidade dos dados de mortalidade e morbidade por doenças crônicas não-transmissíveis. Cienc Saude Coletiva. 2004;9(4):909-20.
4. Mello Jorge MHP, Gotlieb SLD, Laurenti R. O sistema de informações sobre mortalidade: problemas e propostas para o seu enfrentamento I — Mortes por causas naturais. Rev Bras Epidemiol. 2002;5(2):197-211.
5. Sampaio ALP, Caetano D. Mortalidade em pacientes psiquiátricos: revisão bibliográfica. J Bras Psiquiatr. 2006;55(3):226-31.

Nota: Leia o texto na íntegra, com a tabela para facilitar a reflexão sobre a construção do raciocínio do autor: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462008000200018&lng=pt&nrm=iso

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