julho 06, 2009

Paris não tem mais segredos

Foto publicada em Amálgama
[ Amálgama ]

Paris não tem mais segredos

Posted: 05 Jul 2009 08:03 PM PDT

por Diego Viana – … E logo, logo, nenhuma cidade terá. Veja bem. Nessa fotografia, temos as duas janelas de minha casa. A da esquerda é o quarto de dormir, com as cortinas vermelhas, improvisadas, que instalei com as próprias mãos para substituir as originais, também encarnadas, mas bem mais grossas e eficientes, que caíram com um estrondo patético na primeira noite em que tentei fechá-las. À direita, a sala, com a cortina original, cor de creme, e dois vasos, um com flores, o outro com uma pimenteira. Os vasos já existem desde o ano passado. Estiveram vazios durante todo o último inverno, a maior parte da primavera, também. As flores, comprei para substituir as antigas, já mortas. Foi no início de agosto, salvo engano. Na fotografia ampliada, pode-se ver a flor mais alta, violeta, ainda fechada; ela só foi se abrir no final do mês. A fotografia, portanto, só pode ter sido tirada na última semana de agosto ou nas primeiras de setembro.

Quem gerou essa imagem não foi minha máquina fotográfica. Encontrei-a depois de baixar o Google Earth, pensando que seria a ferramenta ideal para me ajudar a preparar as viagens que, queira Deus, ainda farei. E será, sem sombra de dúvida. Navegando por suas telas, passeei virtualmente pela Unter den Linden de Berlim e pela Gamla Stan de Estocolmo. Vi de perto a distância entre o museu Ermitage e a avenida Nievski, tantas vezes evocada no desespero transcrito de Dostoievski. Fui a Roma, que tenho boca, baixei a aplicação que reproduz a capital do império no tempo de Constantino e me esbaldei de passear por suas construções, monumentos e edifícios, descobrindo a aparência intocada das ruínas que conheci há mais de um ano. O Google, novo Constantino ou novo César, como queira, concedeu-me a graça que os administradores do turismo italiano me negaram.

Em Roma, encontrei um instrumento magnífico. A princípio, pelo menos. Pequenos ícones que retratam câmeras fotográficas. Clica-se sobre eles e se é atirado dentro da cidade, numa fotografia tridimensional tirada sabe-se lá por quem, sabe-se lá quando. (Fui descobrir bem mais tarde que eram os tais carros do Street View.) Da primeira vez, acreditei que seriam só os grandes entroncamentos, os pontos turísticos, os centros importantes da cidade eterna. Qual o quê. A cada número da rua, vê-se um outro ícone, depois outro e outro mais. É possível inventar caminhos por todos os cantos de Roma, como quem anda a pé, mas sem se cansar, sem sentir o calor, sem ser ofendido por algum italiano grosseiro, só de clicar sucessivamente nas máquinas intermináveis que vão se apresentando à sua frente. Ver, em vez de experimentar, como tem sido o mote deste início de século.

Rostos e placas de carro, enfim, tudo que possa identificar alguém está desfocado. Anda-se por avenidas e vielas onde ninguém tem face, figuras congeladas em seus trajes, poses e caminhos, mas desprovidas de olhos, lábios, expressões. É um passeio em que o vento é morto de uma morte estranha, ainda capaz de inclinar as árvores, mas não balançá-las. Onde os sinais vermelhos se recusam a passar ao verde, mas os motoristas não se impacientam mais do que a expressão congelada que não vemos em suas caras. Onde o pequeno trânsito irritante, causado por algum caminhão parado em fila dupla, é eterno enquanto assim o mantiver o gestor desse programa do Google. É a presença física numa cidade estrangeira, tão física quanto pode ser uma presença virtual.

Cansado da vista de Roma, deixei-me invadir pela curiosidade. Quão bem fotografada seria Paris? Considerando, claro, que, para além do universo Google, é a cidade mais retratada do mundo, logo à frente do nosso malemolente Rio de Janeiro. Os bairros mais afastados teriam o mesmo privilégio do centro? Os mais feios? Os mais sujos? Os mais castigados pela criminalidade? No espaço de um segundo, com o esforço concentrado de digitar as cinco letras do nome da cidade e um Enter decidido, vi-me a sobrevoar esta outra capital, mais nova, mas nem por isso menos célebre que o lar dos papas e imperadores.

Posicionei o cursor sobre meu bairro. Aproximei a imagem e esperei enquanto ela se tornava mais nítida. Aos poucos, pude identificar a praça, a rua de trás, o carrossel das crianças, a fileira de árvores no larguinho. Apareceram, um atrás do outro, os ícones de máquina fotográfica. Cliquei no que parecia mais próximo do meu prédio. Não era, havia outros, mas pude ler as insígnias das lojas, dos correios, do restaurante chinês, onde almoço quando a pressa fala mais alto que a saúde. De câmera em câmera, fui me achegando de minha pequena rua. Entrei à direita. Bem à frente, li o nome do estacionamento enorme que é responsável por mais de metade do barulho que às vezes me impede de dormir.

Fui avançando até chegar na imagem que registrei acima. Minhas janelas, visíveis para qualquer um, em qualquer parte do mundo. No meu caso, era quase um espelho. O verdadeiro observador, do lado de cá, no outono, quase inverno, aquecido pelo gás, em plena escuridão. Do lado de lá, minha presença virtual, flutuando pela rua nas últimas semanas do verão, com flores radiantes, essas que, para o verdadeiro eu, de carne, que escreve e não flutua, já estão amarelecidas e sem pétalas.

Estranha sensação. Um sem-número de fotografias tiradas, rostos apagados com esmero, imagens consolidadas e inseridas no enorme sistema de mapas da NASA que o Google transformou em fantástico brinquedinho. Em breve, será assim no mundo todo. Qualquer pessoa que já me enviou uma correspondência, ou qualquer um a quem já enviei meu currículo, poderá ficar curioso de saber onde e, mais ou menos, como moro. Bastará entrar no programa para descobrir. Não imagino que tipo de resultado isso possa ter. Conjecturo, mesmo, que talvez não possa causar nada, seja perfeitamente neutro, não mude coisa alguma no mundo ou só o mude para melhor…

Enfim, não há nada de racional nisso, mas a verdade é que fiquei incomodado, diria mesmo intimidado. Metralhei-me com perguntas: como se produziu a imagem das minhas janelas, pelos céus!? Alguém foi contratado para passear pela cidade inteira, em vários lugares do mundo, visitando ruela por ruela, bairro por bairro, a tirar fotografias tridimensionais a cada três ou quatro passos? Ou teria o Google comprado os registros das câmeras de segurança da prefeitura, que, por sinal, nem são tantas assim… Menos mal que seja um exército de automóveis armados de câmeras que, escolha o que achar mais perturbador, lembram um símbolo fálico ou a coleção de olhos de uma mosca.

Essas fotos em que minhas cortinas aparecem fechadas poderiam ter sido tiradas poucas horas antes, ou depois, e as cortinas estariam abertas, meus móveis à vista, as fotografias da parede, essas bem pessoais, expostas. Nesse caso, estou certo, o Google, novo Nero, novo Caracala, teria borrado a visão de minha vida pessoal, ou melhor, da parte mais pessoal da minha vida, antes de lançá-la a público em seu programa. Mesmo assim, segue que o fotógrafo terá visto. O programador, idem. A imagem original talvez ficasse guardada no HD da empresa, como numa gaveta de jornal, esperando para ser descartada ou redescoberta, indefinidamente. Indefinidamente…

Eu disse em algum lugar, talvez até no título deste texto, que Paris não tem mais segredos. Mas se fosse só isso, ora, que é que tem! A tendência é, cada vez mais, que tudo se saiba, tudo se veja, tudo se conheça e esqueça tão rápido quanto acontece. Certo? Boa pergunta, não sei dizer. Mas eu, cá no meu canto devassado pelo Google, bem que gostaria de ter um ou outro segredinho todo meu. E antes que me acusem de ser dissimulado, antiquado, inadaptado, já digo que não é nada disso. Nem se trata de fazer charme. Timidez, talvez. Mas pode ser uma mania idiota, coisa de quem não consegue apenas viver no próprio mundo. Talvez seja pedir demais, mas eu gostaria muito se, para ter uma visão das minhas janelas, alguém tivesse de vir até aqui.

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