julho 20, 2009

Senhor Juiz, pare agora!

O imortal José Ribamar Bessa Freire
Foto: Rogelio Casado - O pai do Taquiprati no ICHL - UFAM - Manaus-Am, 2007

TAQUI PRA TI

SENHOR JUIZ, PARE AGORA!

José Ribamar Bessa Freire

19/07/2009 - Diário do Amazonas

Ao Meritíssimo Juiz da 4ª Vara Cível de Belém do Pará
Raimundo das Chagas Filho

Começo nossa conversa com uma fórmula epistolar, parafraseando ‘A Carta’ de Waldick Soriano: Saudações, Juiz Raimundo das Chagas Filho! Que a lei esteja convosco! Escrevo essa carta, mas não repare os senões, para lhe dizer o que penso sobre a condenação de Lúcio Flávio Pinto.

No entanto, sei muito bem que juizes nem sempre estão abertos à beleza da música brega, nem simpatizam com o português popular. Por isso, pelo menos essa frase inicial vai traduzida aqui ao latim, língua morta - para ti, filho ingrato! - mas vivíssima nas petições, sentenças e processos. Waldick, em latim, fica podre de chique. E pode ser que assim o meritíssimo juiz me entenda. Lá vai o latinorum:

“Ave, Judex Raimundus Stigmarum Filius! Lex vobiscum! Illam epistulam scribo, sed restrictionem non observat, ad dicere quiscam puto condemnationem Lucius Flavius Pulus Gallinaceus”.

Prossigo em língua de gente, dizendo que Lúcio Flávio Pinto, paraense, 59 anos, pai de dois filhos, sociólogo e jornalista, trabalhou em grandes jornais de São Paulo, Rio e Belém. Publicou diversos livros e centenas de artigos, que nos ajudam a compreender os problemas da Amazônia, sua cultura e sua história. Por isso, recebeu, além do carinho e respeito de seus leitores, quatro prêmios Esso, dois prêmios da Federação Nacional de Jornalistas e um prêmio internacional da Itália.

Na época da ditadura, foi censurado pelos militares e sofreu também censuras internas dos jornais onde trabalhava. Decidiu então, em 1987, criar o ‘Jornal Pessoal', que não aceita publicidade e vive exclusivamente de assinaturas. Durante anos, editou esse valente tablóide quinzenal (depois mensal), com tiragem de dois mil exemplares, abordando assuntos proibidos e censurados nos jornais de Belém.

O rei da quitanda

Qual foi o crime cometido por escritor tão premiado e tão querido de seus leitores?

Senhor Juiz, quem faz essa pergunta é esse humilde escriba do ex-Lugar da Barra, da antiga comarca de São José do Rio Negro, hoje conhecida como Manaus (AM). Quero dizer que nós, aqui no Amazonas, ficamos estarrecidos com a sentença do meritíssimo, na semana passada, condenando o jornalista Lúcio Flávio Pinto a pagar R$ 30 mil aos irmãos Rômulo e Ronaldo Maiorana, donos do maior grupo de comunicação do Norte, da qual fazem parte o jornal O Liberal e a afiliada local da Rede Globo de Televisão.

O crime que ele cometeu foi – segundo ação ajuizada pelos irmãos Maiorana – o de ofender o patriarca da família, já morto, num artigo intitulado “Rei da Quitanda”, publicado em 2005, com críticas ao poder econômico do grupo. O artigo informa que nos anos 1950, Rômulo Maiorana pai criou – digamos assim – uma espécie de zona franca em Belém, para uso particular e exclusivo, isentando-se de impostos.

Os irmãos Maiorana entenderam que Lucio Flávio “quis dizer na realidade que o genitor deles participava de um grupo de pessoas contrabandistas, vindo, portanto, a enriquecer ilicitamente”. Acham que houve o ‘animus nocendi’, isto é, “o intuito malévolo de achincalhar a honra alheia”. Lúcio Flavio contra-argumenta, informando que até 1964, o contrabando era comum no Pará, isolado por terra do resto do país e que o jornal A Província do Pará já havia denunciado a criação da zona franca do Rômulo Maiorana.

De qualquer forma, os irmãos Maiorana, diz-que ofendidos em sua honra, entraram com “uma ação de indenização por danos morais, cumulada com tutela inibitória e antecipatória” – seja lá que diabo isso signifique – “em desfavor de Lúcio Flávio Pinto”. O meritíssimo aceitou a argumentação dos empresários, considerando a “notícia injuriosa, difamatória e mentirosa”. Deu ganho de causa aos Maiorana, condenando Lúcio Flávio a pagar R$ 30 mil por danos morais, com correção monetária pelo INPC e juros de 1% ao mês.

Carimbo do Socó

Trinta mil reais! Ou seja, a honra dos Maiorana, avaliada em R$ 30 mil, equivale a dois meses e meio de salário que nós pagamos para o mordomo da Roseana Sarney. Isso sim é que é uma ofensa. Se achincalhassem a honra de João Barboza Freire, pai do papai aqui que digita essas mal traçadas linhas, eu jamais aceitaria essa merreca como indenização. Nesse sentido, é pouco, é ofensivo. Mas é uma fortuna para quem, como Lúcio Flávio Pinto, vive honradamente de seu trabalho.

Hic culum cotiae sibilare” – como diria Orozimbo Nonato. Ou seja, é aqui que o fiofó da cotia assovia. Na realidade, os irmãos Maiorana estão vagando e andando para a honra. O que eles querem é silenciar uma voz dissonante. “O valor da indenização imposta pelo juiz – escreve Lúcio Flávio – equivale a um ano e meio de receita bruta do Jornal Pessoal. Aplicá-la significaria acabar com a publicação, principal objetivo por trás dessas demandas judiciais a que sou submetido desde 1992”.

Meritíssimo Juiz Raimundo das Chagas Filho, quero lembrar aqui as palavras do advogado de defesa de Sacco e Vanzetti, os dois anarquistas condenados injustamente à cadeira elétrica, nos Estados Unidos, em 1927, cuja inocência foi reconhecida, oficialmente, 50 anos depois. Olhando nos olhos do juiz Thayer, responsável pela sentença de morte, num processo fajuto, ele disse:

“Perdi as últimas ilusões que ainda tinha na Justiça e na Magistratura dos Estados Unidos. Nunca mais colocarei meus pés num tribunal. Nunca mais exercerei uma profissão que me obriga a ter contatos com pessoas como o senhor, pelas quais tenho o mais profundo desprezo”.

Felizmente, meritíssimo, cabe recurso. E nós vamos recorrer. E quando digo nós, é para anunciar que Lúcio Flávio não está sozinho, que de todos os rincões do Brasil tem gente observando o meritíssimo. O recurso, certamente, ecoará a voz da Wanderléia: Por favor, pare agora, senhor juiz!.

Enquanto a decisão final não é dada, como castigo, nós o condenamos, meritíssimo, a cantar o carimbó do socó, do Pinduca: “Coça socó, torne a se coçar, é um só socó pra sete socó coçar, é um socó só, pra coçar sete socó, são sete socó pra um só socó coçar”. Se não conseguir cantar em português, vai a versão na língua da magistratura:

Passer soco rasicat, idem rasicare / ille est unicus passer soco, septimus passerorum soco rasicare / ille est unicus passer soco, rasicare septimus passerorum / septimus passer soco sunt, unicus passer soco rasicare.

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