*Pesquisador da SBPC defende reconhecimento da astronomia indígena*
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*Muito antes da teoria de Galileu, que desconsiderou a influência da lua nas marés, os indígenas do Brasil já sabiam que o astro é o seu principal causador **(linha de apoio)*
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*Raquel Wandelli*
*Doutoranda UFSC*
*Professora de Jornalismo Unisul/SC*
*Contam os índios tembé da Amazônia, que a indiazinha mais linda, filha do cacique Pirajuara, conheceu o boto cor-de-rosa em uma noite de lua cheia quando adormeceu observando o pôr-do-sol à margem do rio. Ela teve medo ao ver o rapaz saindo das águas com seu chapéu de palha, mas logo se enamorou dele. Os dois começaram a se encontrar sempre em noites de lua cheia, atéque em uma madrugada, depois de engravidá-la, o rapaz sumiu para sempre na ságuas do rio, voltando a ser boto. Nove luas depois, para a surpresa de todos, Flor da Noite, em vez de um filho, deu a luz a três botos*.
Difícil quem não tenha ouvido falar da lenda do boto rosa, largamente difundida pela antropologia e representada pela literatura, cinema e outras artes. O que a grande maioria desconhece é que os mitos indígenas, como os documentos e achados arqueológicos, revelam saberes valiosos de astronomia e cosmologia. O pesquisador do CNPq pela UFPR, Germano Bruno Afonso, conferencista do encerramento do LXI Congresso da Sociedade Brasileira parao Progresso da Ciência (17/06), advoga o reconhecimento científico da Astronomia Indígena, que na sua visão ajudaria a compreender a história da ciência e muitos fenômenos ainda não explicados. Trata-se de um saber empírico que ancestralmente já revelava, por exemplo, a influência das luas sobre o movimento das marés, ignorada por Galileu Galilei no século XVI e só reconhecida no século XVII por Isaac Newton, apesar de todas as evidências de observação.
Muito assustada e triste, Flor da Noite, a índia seduzida pelo boto rosa, solta no rio os três filhos-botos para que sobrevivam. Com saudades da mãe, eles se unem à sua procura e partem saltando sobre as águas na lua nova e nalua cheia. Fazem uma grande onda que se estende até as margens do rio, derruba árvores e vira embarcações. Surge, assim, a pororoca, que é o estrondo do encontro do rio com as grandes ondas do mar. Para Afonso, membro e estudioso da cultura Guarani e integrante de aldeia do Paraná, mais do que uma representação estética e um modo particular de narrar o mundo, o mito mostra como os índios compreendem tudo que ocorre na terra em relação com o céu. Assim, a lenda da pororoca, entre muitas outras, assinala que em 1632, quando Galileu publicou suas teorias sobre o heliocentrismo e sobre as marés, seus dois maiores erros já poderiam ter sido dirimidos se houvesse um contato e uma troca entre a cultura ocidental e a cosmologia indígena.
Mas ainda hoje, mesmo depois da publicação da teoria de Isaac Newton, em1687, demonstrando que a causa das marés é a atração gravitacional do sol e, principalmente, da lua sobre a superfície da terra, os conhecimentos dos índios do Brasil sobre os céus e sua relação com as pessoas e práticas antrópicas e fenômenos naturais da terra são desprezados pela ciência e pelas escolas. Inexiste no país estudo sobre cultura astronômica indígena. "Não afirmo que a astronomia indígena seja melhor ou pior do que ao cidental, mas acredito que os índios poderiam contribuir com seu conhecimento empírico sobre a influência da lua em todas as atividades humanas, no comportamento dos animais e até das pessoas", reivindica o professor, que é graduado na área de engenharia.
Em virtude da longa prática de observação da lua, os índios brasileiros conheciam e utilizavam suas fases nos rituais, na caça, na pesca, no plantio e no corte de madeira. Eles consideravam que a melhor época para essas atividades era a da lua nova, pois na fase de lua cheia os animais se tornam mais agitados devido ao aumento de luminosidade. Nas peregrinações pelas aldeias, Afonso descobriu porque os índios esperam a mudança de lua para construir uma casa: "Segundo me explicou o cacique, os fungos da madeira ficam mais agitados em época de lua cheia e a estrutura apodrece mais rápido". Os índios sabem que a incidência de percevejo do arroz e da soja é mais abundante na lua cheia e em algumas noites que a precedem e quase nula na lua nova. Da mesma forma, a captura do mosquito transmissor da dengue (Aedes aegypti) é cinco vezes maior em noites de lua cheia do que em noites de lua nova. "Essas informações ajudariam a ciência a eliminar os focos", sugere.
Setenta e três anos antes de Isaac Newton, o missionário capuchinho francês D´Abbeville publicou que os tupinambá atribuem à lua o fluxo e o refluxo do mar e distinguem muito bem as duas marés cheias que se verificam na lua cheia e na lua nova ou poucos dias depois. "Também observam o movimento do nascer e do pôr-do-sol e o seu deslocamento na linha do horizonte, que efetua entre os dois trópicos, limites que jamais ultrapassam. Eles sabiam que quando o sol vinha do lado norte trazia-lhes ventos brisas e que, ao contrário, quando vinha do lado sul, trazia-lhes chuvas. Eles contavam perfeitamente os anos em doze meses e isso pelo conhecimento do deslocamento do sol de um trópico a outro e vice-versa. Conheciam igualmente os meses pela época das chuvas e pela época dos ventos ou ainda pelo tempo doscajus".
As conclusões do professor indígena se baseiam em 20 anos de pesquisa de campo em aldeias das etnias tupi-guarani e caingangue, sobretudo no sul do país, mas também no Maranhão. Documentos históricos sobre a importância da astronomia no cotidiano das famílias indígenas, achados arqueológicos, tais como arte rupestre e monumentos rochosos, observações do céu com pajés e professores de educação indígena de todas as regiões brasileiras fazem parte da sua metodologia. Em sua cruzada científica, promoveu a construção do primeiro observatório indígena solar em aldeia no Mato Grosso do Sul, com recursos do Ministério da Ciência e Tecnologia. Busca recuperar tecnologias e instrumentos astronômicos indígenas diversos, como o calendário lunissolare o* *Gnômon (sombra de sol) uma haste vertical que aponta para os quatropontos cardeais, encontrada primeiramente* *às margens do Iguaçu, no Paraná, onde foi construída a usina hidrelétrica.* *
Sua pesquisa, agora subsidiada por edital do CNPq, empenha-o na permanênciade oito horas diárias nas aldeias com o objetivo de fornecer subsídios para a sistematização de uma teoria em torno do saber empírico dos indígenas sobre o movimento do sol, da lua, da Via Láctea e constelações e suas associações à biodiversidade local. "Essas associações, principalmente, é que são diferenciadoras e desconhecidas dos cientistas", acrescenta. As periodicidades relacionadas ao sol (dia e ano), assim como as associações entre dia e ano com os ciclos da vida na terra são bem conhecidas, mas a relação dos ciclos da lua (fases) com os ciclos biológicos foram pouco estudadas. No paradigma desses povos, tudo o que está na terra reflete o céu. Assim, o Caminho de Compostela é a Via Láctea, o campo de estrelas. "Quem caminha por Compostela ignorando isso perde o seu significado mais místico", ironiza o pesquisador índio, para quem caminhar pela terra é espiar os céus.
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Nota do blog: Entre os da minha geração, o boto hoje nomeado rosa era boto vermelho. Graças a um pesquisador francês os meios de comunicação prestaram um desserviço à cultura amazônica. O boto vermelho deverá desaparecer na fala das pessoas. Que esse dano sócio-linguístico não se estenda à população dos botos vermelhos dos nossos rios!
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