julho 23, 2009

A escrita e suas fórmulas


[ Amálgama ]

A escrita e suas fórmulas
Posted: 22 Jul 2009 08:10 PM PDT

por Diego Viana – Boa notícia! Todo mundo quer escrever bem. Nunca vi tanto anúncio de oficinas literárias, manuais de estilo, dicas de redação. Melhor dizendo: todo mundo quer ser bom escritor. Fica difícil acreditar que vivemos numa era de escassos leitores. Ou será que, sendo tão poucos os leitores, querem todos, também, escrever?

Se for assim, não é à toa que a multidão de autores não consiga ser lido. (E eis que retornamos ao ciclo do público parco…) A não ser, claro, quando se entregam a medidas extremas de autopromoção, que vão desde a atitude calculadamente rebelde até o puro desespero. Às vezes, até, numa mesma pessoa.

Não é difícil encontrar exemplos do primeiro lado; basta ler as entrevistas e os posts da gente de letras e dos aspirantes a autor.

Fechando os olhos, consigo até enxergar a pose desses bravos literatos, cigarro entre os dedos e copo de cerveja/uísque sobre a mesa de bar/centro. É o próprio retrato, inconfundível, da inteligência independente e espirituosa (witty, diriam os vitorianos). As declarações, no mais das vezes, resumem-se a tiradas que competem entre si em acidez, ataques frontais a algum autor, qualquer um, de renome maior, e a enorme coragem de não gostar de nada, absolutamente nada que qualquer outra pessoa tenha feito, por um motivo ou por outro. É dura, a lei da selva. Quem não consegue criar para si uma reputação de polemista não pode sonhar em virar best-seller.

O extremo oposto, e repito que a mesma pessoa pode oscilar entre ambos, quem navega pela internet ou lê jornais já conhece muito bem: entre poemas enviados diariamente, vendas casadas, publicações de trechos, enfim, uma miríade de iniciativas, a concretização do “leia-me pelo amor de Deus”, que dá um trabalho enorme, se reinventa a cada dia. É natural. O autor sem editora ou agente (ou seja, no Brasil, todo mundo que não é Paulo Coelho) precisa ser seu próprio departamento de marketing.

O resultado é digno de Fellini e de Rabelais ao mesmo tempo: um estranho universo em que todos os leitores, ou quase todos, são escritores; todos imploram a todos por uma mísera leitura; ninguém lê o que os demais escrevem, porque estão ocupados escrevendo, implorando para ser lidos ou espinafrando os escritos alheios, que não leram; e, finalmente, em que pese a ausência da leitura, todos falam mal e ridicularizam o que os colegas escreveram. Cá entre nós, é um mundo divertidíssimo para se olhar de fora, talvez até com um balde de pipoca no colo. Mas deve ser terrível, terrível, tomar parte nesse circo.

Não só por isso, é claro. Imagino que seja péssimo para a saúde mental de alguém o paradoxo, aliás inescapável, do escritor deste início de século. O impasse pode se exprimir em dois mandamentos básicos. Primeiro: “Sê anti-convencional, ou não serás ninguém!” Segundo: “Sê convencional, ou não serás ninguém!” É dura, a vida do artista. E do escritor, em particular. Bem se vê que o cigarro e o uísque/cerveja são plenamente justificáveis. O prozac e a heroína, mais ainda.

Aprofundemos. O primeiro mandamento, em linhas gerais, diz o seguinte. Um livro, seja um romance, uma coletânea de contos ou de novelas, ou seja o que for, se não puser em cena o submundo, os vícios sexuais, as drogas pesadas, o crime, a miséria, o dito underground (não estou falando do metrô de Londres), não interessa. É burguês e quadrado, ainda que o autor seja um burguês de quatro costados, e embora só mesmo a burguesia quadrada ainda cultive a curiosidade mórbida pela “infelicidade dos infelizes”. Desenvolvendo ainda mais, podemos derivar o seguinte corolário: “Somente os epígonos de Plínio Marcos terão seu lugar ao sol”. Ainda que não passem de epígonos.


Quanto ao segundo mandamento, eis a sua tradução. Como eu disse no primeiro parágrafo, o que não falta, hoje, é gente tentando ensinar aos outros como se deve escrever. O experimentalismo pós-moderno do século XX já ficou definitivamente para trás, e alguém que quisesse publicar em nossos dias um PanAmérica (José Agripino de Paula, 1967), por exemplo, ficaria o resto da vida com a gaveta ocupada. Mas nem por isso podemos dizer que o pós-modernismo sumiu sem deixar traço. Ai de quem, trovejam os manuais e professores, não encontrar seu pequeno nicho de originalidade, não contribuir da maneira que puder para a evolução da arte narrativa, não investigar a fundo os problemas do espaço e do tempo, como um Henri Bergson sem doutorado.

Não serás um escritor sem esses atributos, meu filho! Se Virginia Woolf colocou um cachorro na posição de narrador de um romance, você não pode fazer por menos. Sê criativo, de certa forma: uma casa tem ácaros, tubulações, eletrodomésticos. Usa tua imaginação, autor do futuro! E mais: toda e qualquer forma de representação do tempo, cronológico ou psicológico, real ou imaginário, já foi explorada à exaustão. Pior para ti. Se quiseres escapar à obscuridade, só o que te resta é estabelecer o não-tempo, o anti-tempo, o semi-tempo ou coisa que o valha. Boa sorte. A propósito, obras de fumos filosóficos, nem pensar. Não precisamos de um novo Proust ou Sartre!

É, eu não gostaria de estar na pele de quem se lança a um desafio dessa monta. Talvez tudo fosse mais fácil quando cada um fazia suas experimentações como lhe aprouvesse, tendo que enfrentar apenas os críticos, não a tutela dos mestres da originalidade, como nos tempos de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Nada mais triste, por exemplo, do que a cena de que participei há algum tempo. Um amigo veio ter comigo, os olhos brilhando, e declamou dois preceitos quase cabalísticos: “Entre tarde nas cenas, e saia cedo!”; e “Seu leitor não tem tempo a perder!”.

Na primeira frase, reconheci imediatamente a voz anasalada do americano Syd Field, o pasteurizador de roteiros, um dos responsáveis pela monotonia do cinema americano atual. Na segunda, não reconheci nada, mas foi impossível ficar surpreso com a revelação de que vinha de um manual de redação traduzido do inglês (dos EUA, bem entendido). Pela lógica do autor, o sujeito que compra livros de ficção e interrompe sua vida quotidiana para lê-los não tem tempo a perder. Ele precisa largar logo o livro para poder voltar a investir na Bolsa, que é o que preferia estar fazendo em primeiro lugar, se uma força oculta inexplicável não tivesse colocado diante de seus olhos as frases nada sucintas de uma Montanha mágica, que nosso leitor-investidor não tem tempo de ler, mas não consegue largar.

São os mistérios da literatura. Mas não consigo deixar de crer que criatividade não se ensina; estilo, muito menos. Ainda sou da opinião de que há outras possibilidades de personagens interessantes além do sujeito drogado que quer se matar e da prostituta que se envolve em assassinatos. Estou certo de que a opinião de Fulano de Tal, futuro gênio de nossas Letras, sobre Sicrano Daquilo Outro, que acaba de publicar seus contos, é problema dele, não meu. E, sobretudo, admito que tenho muito tempo a perder. Se não tivesse, estaria batendo ponto todo dia no escritório, em vez de ficar lendo histórias bem escritas e atualizando blogs. Ô, coisa mais besta.

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