CONTARDO CALLIGARIS
Djair mora aqui
Há quase duas décadas, Djair Carlos, 52, faz xixi no mesmo poste. É seu jeito de dizer que ele não sai de uma quadra específica do Itaim. Nos últimos anos, escolheu uma esquina: Joaquim Floriano com Clodomiro Amazonas.
Na calçada da Carglass, uma moderna loja de vidros para carros, está sua casa. Até pouco tempo atrás, era um carrinho de dois andares, sem rodas, para que não fosse roubado durante as breves ausências do dono. Mas o carrinho foi retirado como lixo. Hoje, a moradia de Djair é mais modesta: uma caixa e um sofá velho, aquisição recente, que, segundo ele, não durará.
Djair vive com dois cachorros. A cadela (linda mistura de labrador com vira-lata) dá cria com regularidade. Da última vez, nasceram 12 cachorrinhos, que foram distribuídos e adotados graças ao trabalho de Suely Maciel, psicóloga do Centro de Controle de Zoonoses da prefeitura (o centro tem a tarefa de tornar possível e salubre a convivência urbana com os animais).
Conversei com alguns vizinhos de Djair, que na esquina é conhecido como o Barba. Vanessa e a dona Bete, do bar Estação, e Célia, da lanchonete Samaro, me contaram que o Barba cuida dos cachorros como se fossem gente. Se ele recebe uma comida (da igreja, do pessoal da loja São Benedito ou de outros), é primeiro para seus protegidos. O sofá, atualmente, é para eles, enquanto ele dorme sentado. O próprio Djair disse que os cachorros são sua vida.
De onde vem o Barba, ninguém sabe direito. Dizem que tinha filhos e tal, mas, um dia, aconteceu algo terrível, que (comentou dona Bete) "deve ter dividido sua cabeça". Mas não se sabe o quê. Parece que ele passou um tempo preso. Quatro anos atrás, apareceu um irmão do Barba que tentou convencê-lo a visitar a mãe doente. Djair respondeu que nunca voltaria a se relacionar com a família.
Todos os vizinhos concordam: o Barba não bebe e não é violento nem ameaçador. Alguns se incomodam com o cheiro e com a presença de Djair, das suas tralhas e dos seus cachorros. Outros encaram o Barba com simpatia. Lembram que as coisas estavam melhor quando, no lugar da Carglass, havia uma agência do HSBC: o Barba podia usar a água do estacionamento para se lavar e passar a mangueira ao redor do carrinho.
Duas vezes por semana, Djair recebe a visita de Suely e de uma psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial do Itaim. Os Caps cuidam da saúde mental dos cidadãos onde quer que estejam; se possível, evitam a segregação, que muitas vezes tem mais a ver com a manutenção da ordem do que com o projeto de curar loucos e estranhos.
Aliás, eis um exemplo: algumas semanas atrás, a Subprefeitura de Pinheiros pediu que o Caps do Itaim fizesse o necessário para que Djair fosse tirado da rua. A razão era um boato de que alguns infelizes estariam planejando colocar fogo no carrinho do Barba e, quem sabe, nele mesmo. Como não seria possível protegê-lo, melhor interná-lo. Pois é, proponho que os paulistas suscetíveis de serem vítimas de seqüestro relâmpago sejam todos internados imediatamente.
Um psiquiatra do Caps do Itaim, Carlos Assédio, foi entrevistar o Barba. Tudo parecia pronto para a internação; só faltava sua canetada. Carlos achou que Djair era, sim, psicótico, mas nem por isso precisava ser internado. Ou seja, preferiu praticar a medicina e deixar a manutenção da ordem para a polícia.
No sábado passado, conversei bastante com Djair. Escutei uma extraordinária aceleração de histórias que envolviam personagens (imagino) do passado do Barba ou do bairro: histórias pornográficas, às vezes violentas e sempre desconexas. Djair fala na língua distorcida de um Guimarães Rosa dos pobres e derrelitos e com dez vezes a virulência erótica do João Ubaldo Ribeiro da "Casa dos Budas Ditosos".
Ao lado de famílias lambendo sorvetes, de casais passeando de mãos dadas e de grupos de amigos saboreando uma cerveja, naquela tarde de sol, Djair parecia articular a trama turva e incompreensível de sangue, sexo e grana que talvez esteja sempre reprimida atrás de nossas sorridentes convivências cotidianas. Era como se sua vida na calçada fosse a condição e o preço pago para saber o que escoa nas sarjetas.
Mas não é o caso de se apavorar. É só pedir, e o Barba pára seu monólogo.
Remédios apropriados conteriam um pouco a confusão do pensamento de Djair. Mas como garantir uma medicação correta nessas condições?
Se fosse internado, Djair, separado de sua esquina e de seus companheiros (os cachorros), seria provavelmente um espectro errando pelo pátio de um hospício.
Seria bom se, pelas esquinas de nossas cidades, todos os Barbas pudessem viver tranqüilos conosco e com as tragédias que agitam suas mentes (e que são muito parecidas com as nossas). Mas entendo os argumentos de quem não agüenta a parada.
Freqüentemente me perguntam o que penso da reforma psiquiátrica. Pois bem, a história de Djair é minha melhor (e perplexa) resposta.
Folha de São Paulo, quinta-feira, 08 de julho de 2004.
Caderno Ilustrada
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