agosto 03, 2009

Houve uma vez um verão: 40 anos de Woodstock

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[ Amálgama ]

Houve uma vez um verão: 40 anos de Woodstock
Posted: 02 Aug 2009 08:03 PM PDT

por Marco Lacerda * – Em 1968 o Brasil entrava no período mais duro do regime militar. Foi imposta a censura à imprensa e as liberdades individuais foram suspensas. A mim não afetou muito, pois a liberdade que eu buscava – como um garoto recém saído da adolescência – nada tinha a ver com política. Era uma liberdade que eu mesmo não entendia, embora soubesse que regime político nenhum poderia tirar, muito menos conceder.

Nessa época uma contracultura genuína, cujos militantes ficaram conhecidos como hippies, surgiu nas ruas de São Francisco, na Califórnia, e causava impacto em todo o mundo. Um vasto segmento da juventude americana levantara-se contra os ideais do chamado american dream. Estimulada pelo rock ‘n’ roll e por uma experiência renovada da Natureza, sentida com os olhos e a sola dos pés, uma nova tribo pariu-se a si mesma e ocupou as ruas. Tinha sido deflagrada uma rebelião pacífica com forte toque espiritual, uma cruzada por uma nova consciência na qual não cabia mais a brutalidade de uma guerra como a do Vietnã, que acontecia naqueles anos e chocava a opinião pública mundial. Nunca a barbárie de uma guerra fora exposta de maneira tão explícita pela televisão.

Uma borboleta psicodélica, recém-saída do casulo, decolou então de São Francisco em missão de paz. Voou pelo mundo, atravessou oceanos e chegou a outros continentes, levando com ela o cheiro de incenso patchouli e os acordes do novo rock que reverberava nas ruas de São Francisco. Com a borboleta psicodélica veio também uma nova droga, o LSD, que arrancou do mundo a noção de tempo e situou a vida num eterno aqui e agora. Onde quer que a tal borboleta tocasse, seu espírito arrebatava a fantasia de massas de jovens. Muitos diziam que aquilo não ia durar muito, mas como a noção de tempo tinha sido suspensa, não era importante se durasse ou não. Era tão grande o poder do toque da borboleta, que acabou por dar à luz um novo estilo de vida.

Esse conjunto de eventos em São Francisco foi estranhamente batizado de o Verão do Amor, já que tudo acontecia numa cidade onde o verão é um acontecimento esporádico. Numa de suas visitas a São Francisco, perguntaram, por telefone, ao escritor Mark Twain:

- Como foi o verão por aí este ano?

O escritor foi sucinto:

- Uma maravilha! Caiu numa terça-feira.

No Brasil, os olhos da repressão estavam atentos apenas às manifestações políticas. O clima era favorável à adaptação daquela contracultura aparentemente inofensiva. Em Belo Horizonte – cidade sempre retardatária por força de tradições e costumes – os eventos repercutiam numa velocidade de fazer supor que tudo acontecia na vizinhança. Um dos pontos de encontro da tribo hippie era o Stage Door, bar no mezanino do Teatro Marília que se tornou cenário de estranhas aparições: garotos e garotas enrolados em cobertores, vestindo batas indianas e calças estampadas com cores berrantes, longas cabeleiras amarradas por bandanas, barbas recém-saídas da adolescência, polegares em riste nas estradas pedindo carona para onde houvesse paz e amor. O pau comia nos porões da ditadura, onde se manejavam os fios invisíveis da repressão, mas no Stage Door havia esperança.

Uma noite, depois de deixar a redação do Diário de Minas, onde dava meus primeiros passos como jornalista, passei em frente ao teatro Marília, onde uma multidão de jovens acotovelava-se tentando subir ao Stage Door. Da rua dava para ouvir a avalanche de som que sacudia o lugar. Um pôster pregado na porta anunciava com letras coloridas: “A longa noite do medo chegou ao fim. Venha celebrar uma nova era de liberação, paz, amor e unidade de todos os seres”.

Dentro do Stage Door, recostei-me numa pilastra na penumbra, acovardado pela caretice do meu jeito de vestir, e contemplei o circo psicodélico ao meu redor. As partes do corpo antes escondidas pela estrita moral mineira, agora estavam à mostra. Garotos e garotas abraçavam-se e beijavam-se com descontração nunca vista. Fazia-se amor e fumava-se maconha pelos cantos. Adolescentes do mesmo sexo – embora não se pudesse dizer de qual – amavam-se nos banheiros. Garotas liam mãos, olhos, pensamentos.

Tomava-se LSD – de preferência o orange sunshine, o favorito de nove entre cada dez maluquetes –, falava-se de expansão da consciência e do desenvolvimento do terceiro olho, aquele que abre as portas para a visão cósmica. Lia-se o tarô, traçavam-se mapas astrais, interpretavam-se diagramas mágicos vindos do Oriente. Época de grandes dúvidas em que as perguntas eram respondidas com longos silêncios que queriam dizer talvez.

No meio da multidão que lotava o Stage Door, um mestre-de-cerimônias chamado Chocolate Jorge, percorria o bar de mesa em mesa, fazendo inflamados discursos a favor da morte do dinheiro. Sob aplausos, Chocolate anunciava sua candidatura a prefeito de Belo Horizonte e prometia, caso fosse eleito, legalizar o comércio de drogas puras, estimular o uso adequado do LSD e passar sua primeira semana de mandato na Prefeitura completamente nu. Chocolate Jorge era um andarilho conhecido pela precisão com que lia o passado, antecipava o futuro e decifrava sonhos intrincados. Vivia metido num casaco militar tingido de lilás, com um button na lapela avisando: “TIVE PROBLEMAS EM VIDAS PASSADAS”. Chocolate Jorge adorava jogar relógios pelas janelas só pra ver o tempo voar.
Um admirável mundo novo abriu-se para mim naquela noite. Até então, vivêramos num planeta imenso e longínquo, sacudido por acontecimentos que não nos atingiam, mal nos interessavam e chegavam até nós atenuados. Naquela noite a vida virou de pernas para o ar. Tudo era possível, o mundo implorava para ser recriado. Uma revolução de costumes passou de trator e reduziu a frangalhos a família como era constituída até então, uma instituição onde existiam não pais amorosos, mas paroquianos exaltados e conservadores que só permitiam que as filhas subissem ao altar se acompanhadas dos sagrados símbolos da castidade: um vestido branco, a igreja coberta de flores e um coral de vozes afinadas o suficiente para anunciar ao mundo que a jovem esposa estava devidamente autorizada por Deus a perder a virgindade. A noção de família deixou o sufoco das salas de jantar e estendeu-se aos amigos que fazíamos nas ruas.

Embora os acontecimentos tivessem seu foco e apoteose em São Francisco, não demorou muito até que as trombetas psicodélicas ecoassem no outro extremo do país, convocando a garotada para três dias de paz e amor numa fazenda perto de Nova York cujo nome, Woodstock, entrou para a história como a melhor tradução dessa época que mudou para sempre o Ocidente. Os organizadores do Festival de Woodstock esperavam meia dúzia de gatos pingados para a celebração, mas o que viram foi um choque. No fim de semana de 15 a 17 de agosto de 1969, meio milhão de jovens se reuniram ao ar livre para o maior festival de música de todos os tempos, embalado ao som da música daqueles que se tornariam as maiores lendas do rock: Jimi Hendrix, Janis Joplin, Greatful Dead, Jefferson Airplane, Santana, para citar apenas algumas das 32 estrelas convidadas para animar o baile. Começava o segundo capítulo de um verão cujo impacto duraria anos.

Enquanto isso, em Belo Horizonte, a contracultura hippie espalhava sua plumagem colorida e ocupava cada vez mais espaço nas ruas. Jovens casais de namorados se apropriaram da cidade e se beijavam por toda parte. Com beijos intermináveis nos bares, nos restaurantes ou em plena rua, paravam o trânsito para continuar se beijando, como se uma vida apenas não fosse suficiente para dar conta de tanto amor. Afinal, as palavras de ordem da época eram “faça amor, não faça guerra”.

Nessa época, começo dos anos setenta, os jornais anunciaram a primeira vinda de Caetano Veloso a Belo Horizonte. Caetano acabava de retornar ao Brasil depois de três anos de exílio em Londres. Fora um exílio diferente dos demais por não ter sido causado pelos motivos, em geral políticos, que forçaram intelectuais e estudantes a deixar o país. Havia alguma coisa na obra musical do baiano – embora àquela altura não se soubesse ao certo do que se tratava – que escandalizava igualmente a direita e a esquerda.

Em cena, ao contrário dos que vieram antes dele, Caetano não usava a metade de baixo do corpo apenas para sustentar a metade de cima. Seu jogo de cintura arrepiava as garotas na platéia e lembrava aos garotos que também eles tinham um corpo mofando dentro das roupas. A garotada adotou sem hesitar os acessórios tropicalistas – tamancos, batas, colares – que Caetano introduziu na moda. Uma mãozinha de batom nos lábios dos meninos não fazia mal nenhum. Uma pitada de cajal realçava o olhar e até melhorava a visão masculina distorcida por séculos de machismo. Caetano foi um sopro de luz, não apenas na música, mas nos costumes, que deixou a ver navios tudo o que acontecera antes dele. Finalmente estava claro o motivo da sua expulsão do Brasil: Caetano Veloso era uma batata quente que não se conseguia engolir nem cuspir fora.

Quando dei por mim meus cabelos estavam no meio das costas, a cabeça cheia de perguntas e o peito apertado por todo tipo de dúvidas – resultado de anos de disciplina católica. São Francisco tornou-se o lugar para onde se ia quando as mentiras que contamos para nós já não colam mais. Vendi o pouco que tinha acumulado com meu modesto salário de repórter-auxiliar do Diário de Minas e, em 1969, zarpei num cargueiro rumo a São Francisco numa noite em que a lua era uma foice de prata desenhada no céu da baía de Guanabara.

Depois de um mês de travessia do Atlântico ao Pacífico chegamos ao nosso destino. Teatro vivo. Um circo psicodélico com bandas de rock tocando ao vivo e gente cantando e dançando nas ruas. É o que acontecia todo dia em Haight-Ashbury, a região de São Francisco onde me instalei. Haight-Ashbury era o cruzamento de duas ruas que, a partir dos anos sessenta, tornaram-se sinônimos do movimento hippie. Na época sabia-se mais a respeito da tal esquina da cidade que da própria cidade. O lugar ocupava o topo da lista de atrações a serem visitadas pelos turistas. As excursões à hippielândia eram anunciadas nos hotéis como “a única viagem ao estrangeiro dentro das fronteiras dos Estados Unidos”.

Os poucos dólares que eu trouxera do Brasil acabaram nos primeiros dias, mas tudo bem. Era uma época em que o dinheiro carecia de valor. Havia uma economia underground em vigor. O pessoal se virava vendendo LSD e maconha. Não era preciso muito dinheiro para viver. O aluguel de um quarto custava 25 dólares por mês. Comprava-se um pouco de maconha, vendia-se um pouco, fumava-se um pouco e ainda sobrava o suficiente para o aluguel.

Calcula-se que quarenta mil jovens de todo o mundo desembarcaram em São Francisco naquele tempo, todos a caminho do Oeste, o mesmo Velho Oeste do cinema para onde iam os que queriam escapar do passado e recomeçar a vida. A cidade que no passado fora invadida por aventureiros em busca de ouro tornou-se meca de peregrinos em busca de paz, amor e de uma nova ordem para o mundo.
Visto à distância, tudo aquilo parece uma alucinação que envolveu o planeta num transe. Mas quando o saldo das atrocidades no Vietnã começou a aparecer – 80 mil mortos –, foram os contingentes hippies os primeiros a se levantar contra os horrores da guerra.
Acordaram os estudantes nas universidades, políticos, famílias, homens e mulheres de boa vontade. Marcharam pelas ruas arrastando com eles multidões ao redor do planeta. Entupindo com flores o cano das metralhadoras da polícia, disseram não à guerra. E a guerra acabou. Mas a revolução seguiu pelos anos 70, iluminando o mundo com sorrisos estampados nas caras, cada vez mais mãos se entrelaçando, os corpos para sempre descobertos.

Terminada a farra hippie, voltei a Belo Horizonte e retomei meu trabalho como repórter-auxiliar do Diário de Minas. A repressão ainda rolava solta nos porões da ditadura e a Igreja nos atormentava com seu legalismo tão desumano quanto a guerra. Mas agora havia aquela borboleta psicodélica solta no tempo, saltitando de flor em flor, tocando uns e outros, como naquele verão que muitos viveram sem jamais tê-lo entendido. Seja o que for, nada tinha acontecido antes que se parecesse com aquilo. E nada aconteceu depois.

* Marco Lacerda é jornalista e escritor. Trabalhou em veículos como Diário de Minas, Estado de S. Paulo e Vogue, e atualmente apresenta o programa de entrevistas Frente Verso na Rádio Inconfidência (MG). Entre outros livros, publicou Clube dos homens bonitos (Objetiva, 1996) e As flores do jardim da nossa casa (Terceiro Nome, 2007), finalista do prêmio Jabuti 2008 e de onde saiu parte deste post.

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