Analistas apostam na despenalização da posse de entorpecentes na América Latina
Rodrigo Craveiro (para o Correio Braziliense)
Em toda a América Latina (à exceção do México), entre 16 milhões e 21 milhões de pessoas experimentaram cocaína ao menos uma vez em 2007. No mesmo período, o número de usuários de maconha oscilou entre 143 milhões e 190 milhões. Para estudiosos, a punição aos consumidores não é garantia de combate ao tráfico. A Suprema Corte de Justiça da Argentina interpretou o polêmico tema dessa forma e considerou inconstitucional um artigo da lei que penaliza a posse de maconha para uso pessoal. Na semana passada, o México também havia descriminalizado o porte de até 5g de maconha, 500mg de cocaína, 50mg de heroína, 40mg de metanfetamina e 0,015mg de LSD. No ano passado, o país enterrou 6 mil vítimas de atos de violência associados às drogas. Especialistas consultados pela reportagem admitem que as decisões de México e Argentina refletem uma tendência no continente.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tornou-se paladino dos debates sobre a temática no Brasil. Em entrevista ao Correio, por e-mail, de Jerusalém, FHC admitiu que a “guerra às drogas” está perdendo a batalha. “Mesmo na Colômbia, com todo o empenho do governo e a ajuda norte-americana, a produção não diminuiu”, exemplificou. O sociólogo defende que o tráfico organizado pode e deve ser combatido, independentemente da descriminalização. “A despenalização é uma alternativa para o usuário escapar da arbitrariedade policial e ser tratado pela autoridade de saúde e, assim, reduzir os danos que todas as drogas causam, inclusive a maconha”, sublinhou o ex-mandatário.
Graciela Touzé, presidenta da organização não governamental Intercambios — Associação Civil para o Estudo e a Atenção de Problemas Relacionados com as Drogas (em Buenos Aires), afirmou não ter dúvidas de que nações latino-americanas têm buscado avançar em reformas legislativas para não incriminar os consumidores. “O Uruguai não penaliza a posse de drogas para uso pessoal; em 1994, a Corte Constitucional da Colômbia declarou que tal punição fere princípios da Carta Magna; o Brasil descriminalizou a posse em 2006 e estuda um projeto que atue como ‘modelo democrático’”, observou. “Estamos ante um processo de revisão das políticas de drogas implementadas na região, com o objetivo de desenvolver propostas inclusivas e integrais, para melhorar a atenção dos problemas ligados aos tóxicos”, acrescentou.
A ativista argentina destaca a importância de se distinguir entre o consumo de drogas e o narcotráfico e lembra que as nações que penalizam os consumidores não obtêm resultados significativos no controle do comércio ilegal. “Em duas décadas de aplicação da lei de entorpecentes na Argentina, mais de 70% das ações penais têm sido por posse para uso próprio”, disse Graciela, que defende o tratamento das drogas como tema de saúde pública e não de política criminal. Segundo ela, a perseguição aos consumidores nada mais faz do que alimentar a ilusão de se combater o narcotráfico. “Na verdade, ela deixa de lado a repressão a delitos como lavagem de dinheiro e movimentação de ingredientes químicos usados na produção de entorpecentes”, alertou.
A também argentina Silvia Inchaurraga, diretora do Centro de Estudos Avançados em Dependência de Drogas da Universidad Nacional de Rosário, vai mais além. De acordo com ela, a despenalização da venda ou da distribuição de drogas não vai intensificar o tráfico. “A medida apenas deixará de tratar o consumidor como delinquente”, observou. Ela lembra que a Colômbia — maior produtora mundial de folha de coca, em uma área equivalente a 81 mil campos de futebol — e o Uruguai já descriminalizaram a posse de qualquer tipo de substância entorpecente. “Deixar de castigar o usuário permite que a assistência seja uma opção viável e torna possível se aproximar dele com estratégias de redução de danos.”
Lei branda
Sociólogo e redutor de danos, o gaúcho Dênis Petuco aposta que o tema deixou de ser visto como um problema de polícia e começa a ganhar abordagens da esfera privada ou como se fosse uma questão de saúde. “Isso ocorre no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, onde existe toda uma ênfase na repressão, já há estados nos quais a lei é mais branda e despenaliza o porte para uso pessoal”, exemplifica. Com a experiência de quem faz mestrado sobre discursos de usuários de drogas, ele afirmou que não se trata de “optar pela descriminalização”, mas de voltar atrás na opção pela punição. Petuco lembrou que hoje morre-se muito mais na guerra contra as drogas do que por causa do uso dessas substâncias.
Um problema social, político e econômico. Assim o advogado venezuelano Bayardo Ramírez Monagas, de 69 anos, vê o tema dos entorpecentes. Autor de A questão das drogas na América Latina e ex-líder da Comissão Presidencial contra o Uso Ilícito de Drogas (Conacuid), um cargo com status ministerial, ele ironiza o fato de o assunto ter se convertido em uma discussão bizantina, “como o sexo dos anjos”, e culpa intelectuais de ilibada reputação que mostram “ignorância de segundo grau”. “O consumidor de drogas é um ‘enfermo de pé’, tão funcional quanto um alcoólatra. Por isso, não se pode puni-lo por sua conduta compulsiva, pois ele não é uma pessoa perigosa, mas em estado de perigo”, sublinha.
» Eu acho...
"A descriminalização das drogas deve vir acompanhada de fortes campanhas, pela mídia e a sociedade civil — como se fez no caso da Aids, aconselhando o uso da camisinha, — para reduzir o consumo. Não há dúvidas de que a hipocrisia campeia nesse debate. Por isso mesmo, a Comissão Latino-Americana sobre Drogas quer quebrar o tabu e abrir a discussão sobre como combater melhor e sem hipocrisia os danos causados pela droga, concentrando a repressão no tráfico e no crime organizado e cuidando do usuário como um problema de saúde pública. Parece certo que quase todos os povos culturais aceitaram, dentro de limites, o uso de algum tipo de droga, como o álcool, o tabaco e outras. Mas isso não justifica que se deixe de mostrar os malefícios que elas causam, nem de discutir o melhor modo de reduzir seu uso. Foi nesse sentido que comparei a atitude do governo Bush com a do Brasil, no caso da Aids — ao slogan norte-americano do ‘não ao sexo’ contrapusemos o ‘sexo seguro’. Com isso e outras medidas controlamos a expansão do HIV"
Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e ex-presidente do Brasil
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