Nota do blog: Está acontecendo em Manaus um curso sobre economia solidária para o setor de saúde mental. Público alvo: profissionais de saúde e organizações da sociedade civil. O lugar escolhido não poderia ter sido pior: o Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. Em todo o país os militantes da luta por uma sociedade sem manicômios trabalham em consonância com a política nacional de saúde mental, que tem como meta a substituição dos hospitais psiquiátricos por uma rede diária de atenção de saúde mental, e que tem no CAPS - Centro de Atenção Psicossocial - um dos novos dispositivos de cuidados em saúde mental. Por que o local é problemático? Porque não pode haver dubiedade de comunicação com a sociedade. Se queremos o fim dos hospícios, realizar um curso de tão nobre propósito será interpretado como um sinal de que essa instituição pode ser "humanizada" e continuar entre nós depois de dois séculos de existência (vixe!). Fui honrosamente indicado pela professora Heloisa Helena Corrêa da Silva a participar como palestrante do evento. Ponderei sobre a impropriedade do local. Resumo da ópera: o segundo módulo será oferecido fora do espaço hospitalar, caso contrário declinarei do convite (questão de princípios). E mais: foi-me assegurado que o curso se propõe a fomentar iniciativas de economia solidária fora do espaço hospitalar. A propósito, Manaus já tem dois CAPS. O que se vê acima foi implantado pelo governo Eduardo Braga em 2006, quando já não era responsabilidade do Estado. O município inaugurou o seu CAPS neste mês de janeiro (é do município a responsabilidade de oferta desse tipo de serviço). Faltam mais seis, para uma população de 2 milhões de habitantes da cidade de Manaus. É bom lembrar que esses CAPS só atendem adultos com problemas severos e persistentes. Estão fora da área de cobertura: crianças/adolescentes e abusadores de álcool e outras drogas, que devem ter CAPS específicos. Sem falar da ausência de Centros de Convivência para abrigar incubadoras de projetos de geração de renda. Paro por aqui. Por ora, só a Associação Chico Inácio, que lutou praticamente sozinha pela Lei de Saúde Mental do Estado do Amazonas, é a única a romper com o silêncio do setor de saúde mental, incapaz de fazer valer os princípios da Reforma Psiquiátrica, entre eles substituir o manicômio por uma rede de CAPS.
CAPS vs. Hospício (III)
Ao traçar um paralelo entre dois modelos de saúde mental, em suas diferentes dimensões político-ideológicas, o professor e psicanalista Abílio da Costa-Rosa faz as seguintes afirmações sobre o modelo psicossocial, que tem no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial – um dos seus dispositivos:
Neste modelo o ambiente sociocultural é determinante. A palavra e a ação do homem ganham a cena. É com ela que ele se administra.
Considerando o contínuo saúde-doença psíquica como o modo de posicionamento do sujeito frente aos conflitos e contradições vividas, o modelo psicossocial visa um reposicionamento do sujeito: ao invés de sofrer os efeitos do conflito, que se reconheça como um dos agentes implicados nesse “sofrimento”, abrindo caminho para agir como agente da possibilidade de mudança. Aqui a implicação é subjetiva. O sujeito não é mais apenas aquele que sofre.
No modelo psicossocial, suas diferentes possibilidades de ação se estendem desde a continência do indivíduo em crise até o reconhecimento da implicação familiar e social nos mesmos problemas. Tanto um quanto outro assumem parte do compromisso na atenção e no apoio.
É decisiva a ênfase na reinserção social do indivíduo nesse modelo de atenção, embora nem sempre seja a problemática que ele traz a responsável pela sua saída da circulação sociocultural. Desse modo, dá-se ênfase às formas de recuperação da cidadania pela via das cooperativas de trabalho.
O meio de trabalho desse modelo é a equipe interprofissional. Sua constituição supera em muitos aspectos o grupo de especialistas do modelo manicomial, na medida em que inclui dispositivos entre as mais diferentes formas de arte e artesanato. A superação da estratificação do saber dos especialismos se dá pela ampliação do conceito de tratamento e dos meios a ele dedicados, através da crítica ao paradigma doença-cura, agora tendo como “objeto” das novas práticas de saúde mental o conceito de existência-sofrimento.
Essa diferença conceitual é de uma sutileza elefantina, posto que o ato anterior de tratamento, baseado na doença-objeto, é transmutado por um verdadeiro exercício estético que tem como objetivo a experimentação de novas possibilidades de ser.
Para Antonio Lancetti, é esse deslocamento do pólo técnico-científico para o pólo ético-estético, onde se usam recursos além dos medicamentosos, que é capaz de gerar “novas formas de sociabilidade que escapam à produção em série dos manicômios hospitalares e profissionais”.
No próximo artigo, outras características desse novo paradigma de atenção à saúde mental.
Manaus, Dezembro de 2009.
Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental
Pro-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da UEA
www.rogeliocasado.blogspot.com
Nota do blog: Artigo publicado no caderno Bem Estar & Saúde do jornal Amazonas em Tempo.
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