janeiro 24, 2010

Em defesa de Márcio Meira, presidente da FUNAI


Nota do blog: Márcio Meira goza de respeito entre "pesos-pesados" da vida intelectual brasileira, como o meu considerado José Ribamar Bessa Freire. Agrego às qualidades do estimado antropólogo a sabedoria em reconhecer suas próprias falhas de procedimento: em saudação às lideranças indígenas que viajaram de lugares longínquos do estado do Amazonas para participar de um evento na Universidade do Estado do Amazonas - UEA, no qual ele estaria presente, Márcio afirmou para um plenário lotado de indígenas, que demandavam por audiência, que daria uns 5 minutos para cada grupo étnico. O tempo não fechou por maturidade do movimento indígena, cujo silêncio eloquente no plenário, e a forte articulação de bastidores, encontraram, após a palestra, um Márcio tão receptivo que a audiência varou a madrugada. Um intelectual arrogante não teria cedido às legítimas pressões por tão desejada audiência: não é todo dia que o presidente da FUNAI pode estar presente no extremo norte do país. Quem participou da audiência, saiu emocionado com os relatos indígenas envolvendo a FUNAI na região, sobretudo no campo da sáude. Em alguns lugares a situação tão é grave, que não faltam oportunistas para montar ONGs querendo servir às comunidades indígenas. Uma delas nomeada como ONG São Francisco, tem como preposto um conhecido deputado federal. Que venha a reestruturação da FUNAI para por fim a esses descalabros. Senão, vamos que ter chamar meu amigo Álvaro Tukano para explicar porque que essa "coisa" não ata nem desata. Como se vê no vídeo acima, Álvaro não tem papas na língua.

TAQUI PRA TI

Ê, OLHA A FUNAI, CAMARÁ!

José Ribamar Bessa Freire

24/01/2010 - Diário do Amazonas

Meninos, eu vi! Segunda feira, 8 de maio de 2006. Dez horas da manhã. Sol de outono. Muita luz. No Rio, o ministro da Cultura Gilberto Gil, de trancinhas, inaugura o primeiro museu construído dentro de uma favela, no Complexo da Maré. Oradores se sucedem ao microfone. É anunciado, enfim, o discurso ministerial de encerramento da solenidade. Acontece, então, o inesperado. O ministro pega um violão e, em vez de discurso falado, faz um discurso cantado, improvisando:

- “Meus senhores e minhas senhoras”. O público, acionado por ele, responde também cantando, como nas rodas de capoeira:- “Ê, minhas senhoras, camará”. O ministro prossegue: - “Nós estamos aqui re-u-nidos”. O público: - “Ê, re-u-nidos, camará!”. O ministro: - “Inaugurando o Museu da Maré”. O público: - “Ê, da maré, camará”! - “No Projeto Memória Viva”. - “Ê, memória viva, camará”!

E por aí foi. Durante uma hora, mostrou a importância do Museu da Maré para a memória e para o exercício da cidadania, sempre cantando, ele e o público. Foi um dos mais belos discursos que já ouvi feito por um ministro. E não era um ministro qualquer. Ele rompeu a chatice formal e monótona da burocracia, entronizou a capoeira e carnavalizou a solenidade, dialogando com a audiência.

Gil saiu dali para outro compromisso, em uma universidade carioca, onde conversou com os estudantes. Auditório lotado. Aqui, não cantou. Sua palestra foi interrompida por um índio, na platéia, que assim, gratuitamente, apontou-o como inimigo dos povos indígenas, esculhambando o Ministério da Cultura. Constrangimento geral.

- Você errou – eu disse depois ao índio, meu ex-aluno, com quem mantenho relações cordiais. Argumentei: - Entendo teu desespero, mas ele não foi canalizado em direção ao alvo certo. Gil, decididamente, é a favor dos índios, e não é ele que deve ser combatido. Ele deve ser aplaudido, como na favela da Maré. Ai de quem não sabe reconhecer os amigos e os adversários! Esse dá um tiro no pé, fere seus aliados, fortalece o campo contrário, e está condenado à derrota.

O primeiro tiro

Esse foi, no meu entender, o erro de alguns índios que deram dois tiros no pé, quando firmaram abaixo-assinado, que está circulando na internet, elaborado por um funcionário descontente da FUNAI. O documento, que até ontem contava com 35 adesões, ataca o presidente da instituição, Márcio Meira, e se manifesta contra a reformulação do órgão, aprovada em decreto assinado por Lula no dia 28 de dezembro. São dois grandes equívocos. Quer apostar? Vamos ver.

O primeiro tiro no pé foi atacar Márcio Meira. Será que ele é inimigo dos índios? Quem responde é sua história de vida. Formado em História pela Universidade Federal do Pará e pós-graduado em Antropologia pela Unicamp, o que foi que ele fez com os conhecimentos que adquiriu? Usou esse saber para identificar e reconhecer os territórios indígenas do Rio Negro, coordenando o GT, em sintonia permanente com a FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro.

Como antropólogo, Márcio varou os rios e igarapés do Amazonas e conviveu com os Warekena, do rio Xiê, no Rio Negro, com quem aprendeu os segredos da floresta. Sua tese “No tempo dos patrões” contribuiu para conhecer o sistema de aviamento, responsável pela exploração de índios e cabocos. Os “patrões” não gostaram, mas os índios e cabocos agradeceram.

No campo político, teve atuação decidida pela inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988. De lá para cá, travou batalhas importantes, como a luta pela Terra Indígena Raposa Serra do Sol e pelas terras dos Guarani-Kaiowá (MS). Sua vida revela compromisso, firme e inabalável, em defesa dos direitos indígenas, de suas terras, línguas e culturas. Os invasores de terras indígenas e grileiros aplaudem qualquer ataque a Márcio Meira.

No campo administrativo, ele presidiu a Fundação Cultural de Belém e dirigiu o Arquivo Público Paraense, com quatro milhões de documentos abertos aos pesquisadores. Publicou, em sua gestão, informações de interesse dos índios. Assumiu, depois, a Secretaria de Articulação Institucional do Ministério da Cultura, criando espaço para a temática indígena no debate sobre o Sistema Nacional de Cultura. De lá, saiu para presidir a FUNAI, propondo agora sua reestruturação.

O segundo tiro

O outro gol-contra foi justamente condenar a reestruturação da FUNAI. O ex-presidente Sarney, que adora uma boquinha e é capaz de dar a vida para colocar um parente ou afilhado num cargo público, enfrenta o cão chupando manga, mas não se mete com a FUNAI. “A presidência da FUNAI é o pior cargo do mundo” – disse ele, que entende do babado.

É que a FUNAI se tornou um saco de pancadas, desde a época em que eu era o editor do Porantim, em Manaus. O órgão herdou uma estrutura arcaica e viciada do antigo Serviço de Proteção aos Índios, consolidada na ditadura militar, que exerceu de forma autoritária a tutela. Hoje, a estrutura permanece praticamente a mesma, os recursos para garantir os direitos dos índios continuam escassos e os servidores são poucos para atender quase um milhão de índios.

Mesmo os funcionários da FUNAI comprometidos com os índios estão com os pés e as mãos atados dentro dessa estrutura. Na semana passada, acompanhei um deles, que trabalha em Brasília, a uma aldeia guarani do Rio de Janeiro. Ele estava de férias, não tinha obrigação, mas foi até a aldeia, com sua namorada, para encaminhar um problema de terra. Ouviu reclamações duras e cobranças legítimas. Acontece que o órgão está sucateado e debilitado.

Os guarani Mbya estão descontentes com essa estrutura da FUNAI, como disseram em carta a Márcio Meira, com cópia para Lula, através da Comissão Nacional de Terra Guarani Yvy Rupa. Eles lembram que muitos Postos Indígenas (PIN) contam apenas com um funcionário, sem escritório, sem equipe, sem estrutura de apoio. É por isso que se manifestaram favoráveis à reestruturação do órgão, que responde a uma reivindicação antiga do movimento indígena não atendida por sucessivos governos.

A reestruturação do órgão prevê a substituição dos PINs por Coordenações Técnicas Locais, com equipes qualificadas e comprometidas, formadas por servidores concursados, conforme já foi sinalizado nos artigos escritos por Gilberto Azanha e Márcio Santilli. O quadro funcional da FUNAI será acrescido de 3.100 funcionários com concurso para mais de 400 vagas já em 2.010.

O documento contra Márcio Meira, que circula na internet, defende interesses corporativos, contrariados pela proposta de reestruturação. O documento é estranho e encerra uma contradição, porque ao mesmo tempo em que admite a inoperância da FUNAI, defende que permaneça como está. Não quer que se mexa na estrutura viciada. Quer que tudo fique como está para ver como é que fica. Não propõe mudanças.

Os índios que vivem hoje no Brasil resistem há mais de cinco séculos. Aprenderam a reconhecer seus aliados e a identificar seus inimigos. Sabem que a FUNAI precisa ser dotada dos instrumentos adequados para defender os direitos indígenas com mais eficácia e intermediar os conflitos com setores da sociedade nacional, re-estabelecendo a paz. Talvez, seja o momento de imitar Gilberto Gil e saudar a proposta de mudança, cantando: “Ê, olha a FUNAI, camará!”. E ficar de olho no desdobramento da proposta.

Fonte: TAQUIPRATI

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