Nivaldo de Lima, o fotógrafo dos esquecidos
Exposição "Território" - Centro Cultural Palácio da Justiça
Manaus - Amazonas - dez/2007 a fev/2008
Moradores de rua
Durante a II Conferência Estadual de Saúde Mental um operador da saúde tentou sobrepor aos moradores de rua a idéia de que sua ampla maioria é constituída de “doentes mentais”, e que essa incômoda presença deriva de uma prática ideológica da reforma psiquiátrica.
Macacos me mordam se o conceito explicitado na segunda parte da afirmação já não está contido na primeira.
Foi o fotógrafo Nivaldo de Lima, militante da luta por uma sociedade sem manicômios, quem desmascarou o discurso vicioso. Diria discurso inútil, se ele não fosse tão usado pelos setores conservadores da área “psi” para desqualificar os avanços de duas décadas de reforma psiquiátrica, ainda que ela seja menos antimanicomial do que queremos.
Segundo Nivaldo, se há um problema de que padecem os moradores de rua, certamente é o alcoolismo e não a “doença mental”. Excluídas do banquete, só lhes restam o álcool como escape. Aqui, para o bom observador, constata-se, na base da exclusão social, os graves problemas brasileiros, estes, sim, determinantes: excessiva concentração de renda, políticas públicas precárias etc.
Ana Marta Lobosque, psiquiatra e psicanalista, pede muita calma aos que se precipitam a discorrer sobre a gênese e constituição dos moradores de rua. A psiquiatra e a psicologia, apegadas ao ideal de normalidade, costumam identificar “fatores e problemas”, bem como propor “soluções psicológicas” a essas populações, sem reconhecer o quanto estão comprometidas até o tucupi com o fato social da exclusão, na dimensão que lhes compete: a subjetividade.
Como se não bastasse a exclusão da condição de cidadão, aos moradores de rua costumam ser retirados a condição de sujeito pelos saberes “psi”. É essa dimensão menos óbvia e mais cruel da exclusão social que reclama Ana Marta. A exclusão da subjetividade, do direito de ser diferente do outro, de ter projetos e escolhas próprias é o que importa na ética que sustenta a reforma psiquiátrica antimanicomial que se constrói no país.
O caso do diretor do hospital psiquiátrico local que propôs, no início deste século, que os “loucos de rua” fossem fotografados para depois serem recolhidos ao “hospício”, numa reedição da “carrocinha” que recolhia cachorros de rua, é a versão mais bem acabada da ideologia da exclusão.
Segundo Ana Marta, hospícios e instituições assemelhadas, através de seus agentes, costumam apresentar falsas soluções para a vida daqueles a quem nomeiam como “desajustados sociais”. Para ela, não bastam teto e comida ao preço da renúncia da subjetividade. Há pelo menos duas gerações, criadas ao som dos Titãs, que reclamam de que, além de comida e água, é preciso diversão e arte.
Ora, se é impossível julgar os moradores de rua como problemáticos, do ponto de vista psicológico, o que conhecemos da sua subjetividade? Nada, afirmo sem medo de errar.
Ana Marta afirma que “um sujeito é alguém que se interroga, sem sabê-lo, sobre o seu lugar; é alguém que não tem como encaixar-se de forma exata num lugar determinado; é alguém que sofre dessa fundamental diferença”.
Para ela, oferecer teto e comida é mais do que uma solução para a fome e o frio, posto que teto e comida também significam proteção, amor e acolhimento. Aqui entra uma dimensão da subjetividade sobre a qual muitos operadores da saúde mental estão mergulhados na cegueira. Porém, meu caro Saramago, além de cegos, eles andam surdos. Sentiremos falta das tuas palavras.
Manaus, Junho de 2010.
Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental
Pro-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da UEA
www.rogeliocasado.blogspot.com
Nota do blog: Artigo publicado no jornal Amazonas em Tempo, no caderno Saúde & Bem Estar.
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