Rede Internúcleos da Luta Antimanicomial
Brasília - Julho/2010
De volta pra casa
Depois de alguns dias sem banda larga na minha casa (a TIM e a OI me deixaram na mão), com o Brasil fora da Copa do Mundo de Futebol e com gana de por a boca no trombone, cá estou de volta depois de ajudar a apagar as luzes da IV Conferência Nacional de Saúde Mental, na última quinta-feira. Mais de 1200 propostas foram submetidas à plenária. Quando as tradicionais moções de apoio e de repúdio foram lidas, o relógio marcava mais de duas horas da manhã. Poucas delegações continuavam resistindo Só o médico Antônio de Pádua (CRM do Amazonas) e eu (UEA – Universidade do Estado do Amazonas), pela nossa delegação, estávamos na plenária. A grande maioria já havia se retirado. Umas devido ao horário de vôo de retorno, outras por falta de condução no horário.
Quando cheguei, no domingo retrasado, encontrei no aeroporto de Brasília a delegação do Piauí, a quem mando um abraço. Durante o trajeto para o hotel e para o local da conferência, fizemos um diagnóstico que se repetiria na conversa com outras delegações. Estamos numa encruzilhada, ou garantimos mais investimentos na expansão da rede de serviços substitutivos ao manicômio e na formação de novos trabalhadores de saúde mental, ou vamos pro beleléu.
De todas as conferências que assisti (perdi a do companheiro Marcus Vinicius de Oliveira, ex-vice-presidente do CFP, militante antimanicomial de carteirinha, que deixou os ouvintes extasiados com o que ouviram), foi a do médico sanitarista Gastão Wagner, professor da Unicamp, que mais me impressionou. Ao introduzir uma inesperada dimensão da subjetividade, senti que ali se traduzia o sentimento coletivo de que estamos de fato entre a cruz e a caldeirinha. Sua fala emocionou a platéia, ao indagar como criticar aquilo que se ama (a saída traumática de Gastão do governo Lula ainda está na memória de quem acompanha a política nacional de saúde). A plenária respirou fundo, em silêncio respeitoso à emoção de um dos mais estimados pensadores da saúde pública brasileira.
Gastão Wagner recomenda o exercício radical da crítica, sob pena de permitirmos o avanço das forças conservadoras contrárias a uma reforma psiquiátrica de fato antimanicomial. Não é possível ficar indiferente à dubiedade da coordenação nacional de saúde mental, que retirou a referência antimanicomial de todos os textos da IV Conferência, quando ela aceita conviver perigosamente com os hospitais psiquiátricos como se fossem alternativos à rede de CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), colocando-se na contramão do histórico congresso de trabalhadores de saúde mental, que em Bauru levantou a bandeira “por uma sociedade sem manicômios”. Não é possível convivermos com a com os atuais níveis de investimentos financeiros, sempre insuficientes, para por fim aos 35 mil leitos psiquiátricos existentes, para o qual ainda temos um dispêndio de meio bilhão de reais/ano de recursos do SUS. Não é possível convivermos com o atual processo de formação dos trabalhadores de saúde mental, incapazes de responder, em muitos municípios e estados brasileiros, aos desafios éticos postos pela reforma psiquiátrica antimanicomial que queremos. Sem agenda radical, ficamos no meio do caminho. Ah, as pedras no meio do caminho!
A coordenação nacional de saúde de mental, incapaz de reconhecer o mal-estar que paira sobre o lento processo da reforma psiquiátrica no Brasil, demora que alimenta nossos adversários, já no primeiro dia de trabalho pôs-se a dirigir sua crítica aos que nomeiam os CAPS que falham no processo de acolhimento, responsabilidade e ação territorial como CAPSicômios, ou seja, CAPS que reproduz o modelo manicomial que tanto combatemos nos últimos vinte anos. Macacos me mordam se os tais CAPSicômios não forem problema de formação e ausência de supervisão. Pedro Gabriel Delgado ficou nos devendo uma análise à altura do seu potencial intelectual.
A propósito, o Amazonas tem dois péssimos exemplos no campo da supervisão/consultoria. Nada a ver com a qualidade dos supervisores, ambos reconhecidamente competentes na sua área de conhecimento. Em causa o total descaso para com a remuneração dos dois supervisores, engolidos pela burocracia. A primeira vítima foi Silvio Yasui, que das cinco consultorias programadas para Manaus só cumpriu duas delas. Tudo porque a burocracia exigia “três cópias do curriculum”, todas devidamente autenticadas, procedimento que foi recusado pelo eminente professor da Unesp. Onde já se viu exigência tão antiquada? Em Manaus, ora pois!
Miriam Soares foi outra vítima. Aqui houve requintes de perversidade, afinal o curriculum foi apresentado na forma do pedido, e ainda assim o pagamento pela supervisão não foi efetuado; pior, o resultado do trabalho, com suas respectivas propostas, sofreu uma grosseira falsificação. O caso foi parar no Ministério Público, em ação interposta pela supervisora, que até a presente data não viu a cor do dinheiro pelo trabalho realizado, único que rendeu bons frutos ao longo de seis meses de atividade continua.
Tive acesso ao conteúdo da referida ação. É escandaloso o que está escrito ali. Reputo como um retrato fiel do ambiente antiético produzido pela má fé, arrogância, despreparo político e vícios administrativos históricos conduzidos pelo que há de pior no serviço público amazonense. Este, na área de saúde, incapaz de renovar seus quadros, não é de hoje que nos submetem ao vexame nacional.
Aguardo autorização para publicação dessa peça histórica que retrata um atraso insolente incompatível com os desafios contemporâneos no campo da saúde mental, que destrói o caminho construído e presta um desserviço, inclusive, aos governos a que servem. Eis o retrato 3 x 4 de uma gestão incapaz de buscar informação, interpretá-las, compreender a relação e o jogo político que envolve os atores sociais em cena. O mais curioso é que sem ter havido alternância no poder, portanto sem que tenha havido alteração na correlação de forças, a construção de contratos e compromissos desprezou a produção de conhecimento construída ao longo de cinco anos para basear-se numa concepção estreita dos afetos, que aqui deve ser traduzida na sua vertente mais empobrecida: ouvir apenas os “amiguinhos”. É, no mínimo, uma agressão ao princípio da democratização das nossas instituições. Mas essa é outra conversa. Voltaremos a ela.
Uma palavrinha mais sobre esse cenário obsceno. Ameaçar as potencialidades do presente produz efeitos nefastos, como a redução do coeficiente de análise, mas produz também, sua contrapartida, a produção do sujeito autônomo, que de modo criativo se liberta da asfixia dos que estão ocupados com a conservação do próprio poder. Tencionar limites, explorar novos limites é o único caminho exigido pelo contexto histórico e social. É uma questão de tempo, são os novos trabalhadores da saúde mental, desejosos de mudança, quem tomarão iniciativas não previstas nos regulamentos. Aguardem, são eles quem porão fim a toda sorte de interdições hoje impostas aos trabalhadores de saúde mental, se forem capazes de conciliar experiência e desejo de mudança.
A Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial está de parabéns ao se antecipar à história convocando o movimento antimanicomial a tomar as rédeas do futuro da reforma psiquiátrica através da IV Conferência Nacional de Saúde Mental. Apoiada pelo Conselho Federal de Psicologia, somos todos provocados a agir – usuários, familiares e trabalhadores de saúde mental. Quem fica parado é poste. Se queremos ser sujeitos da história da reforma psiquiátrica antimanicomial, de modo que nossas necessidades sociais sejam acolhidas pelas nossas instituições é necessário alterar as relações de poder, do uso do conhecimento e dos modos de circulação dos afetos. Caso contrário, conviveremos com formas autocráticas de exercício do poder, em que os sujeitos são reduzidos à condição de objetos, e a circulação dos afetos vira instrumento para inibir a construção radical da cidadania. É preciso dar uma basta à lógica “seja feliz, seja amigo do rei”.
Nota do blog: Nas imagens menores, Silvio Yasui (ao fundo, os companheiros Nivaldo e Francinete, da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial - RENILA, nas comemorações dos 20 Anos de Luta Antimanicomial, em Bauru, em 2007) e Miriam Soares (no I Congresso Nacional de Centros de Atenção Psicossocial, em 2004, em São Paulo), ambas feitas pelo blogueiro.
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