janeiro 04, 2011

Generosidade e revolta, por Bruno Cava

3 de janeiro de 2011


Generosidade e revolta.




A generosidade se impõe a todos aqueles que sentem o breve amor desta terra. O generoso admite para si que as coisas acabam e, por isso, é preciso calcular menos e distribuir mais. Entregar ao presente, devorar e deixar-se devorar. Não se pode chamá-lo inconseqüente ou pródigo. Pois não se aliena, com vulgaridade, no instante. Na verdade, assume uma firme e constante resolução de dizer sim. Dedica-se à simpatia, à dignidade, ao mar, à pátria da sensualidade e da estima.

O homem do cálculo, que tudo quer ter, corre o risco de terminar de olhos vazados, e só no fim entender a urgência crispada da vida. Tardou a matar a charada do amor. Entrevou-se na solidão adornada de ouro e mitra. Constituiu-se e não fecundou.

Mas o verdadeiro solitário não carece de nada, e se expande na esfaimada generosidade com que busca o outro. Menos para do outro se locupletar, atrás de plenitude e espelho, do que nele derramar a solidão. Sim, verter-lhe a chuva de fel, lágrimas e beijos, que não mais pode ser contida. O outro se faz outros, múltiplos e divisíveis. Fala sim ao outro não importa o porquê. Sim, escancara-se. Estende a sua simpatia e ama o distante como a si mesmo ele não ama.

O generoso não precisa entender. O entendimento induz a conquista e a posse, e então o desinteresse. Aracnídeo, tece malhas cada vez mais cerradas. Aperta o outro em seu domínio, para sugá-lo, tê-lo como seu, tão seu e só seu. O generoso aceita. Aceita o outro livre, jamais o possuindo, além do mel e do gemido humano. Só dessa forma pode agasalhá-lo, na falta de essência, na desmedida, em seu ser sempre outro diante de mim. Os outros passeiam monstros e não indivíduos. A generosidade consiste em não querer ser como o outro, muito menos que o outro seja como eu. Consiste em deixar ser, justamente, ele-e-eu, um entreato, um enxerto, uma criação híbrida.

A aceitação rasga a verdade única em mil fragmentos. Não cansa de permutar as possibilidades e contornar as contradições, como Lucky e Pozzo. Não esperam Godot: deliram mundos na sua ausência. Cada um dos fragmentos vive por si mesmo como pessoa. Múltiplas narrativas de aventura e tédio, de paixão e angústia, irredutíveis à verdade impingida pelo egoísta. Este pretende tudo codificar ao entendimento, porém lhe escapa o essencial: o outro. Quem sabe aceitar, na lucidez e crueldade implicadas, se poupa de decepcionar, enciumar, mentir, iludir. Reconhece o caráter passageiro de tudo. E, poroso, acata os lances da contingência.

Mas ao dizer sim, o troco por vezes vem amargo e injusto. O generoso se atira de braços abertos, lambendo os beiços, mas não recebe de volta à altura. Nunca poderia, num mundo desigual e injusto. O demônio da intemperança suga a seiva da generosidade. Também é parte do jogo. Essa assimetria não apagará a chama da generosidade. Teimosa, insistirá no belo erro. Não culpará o outro, não culpará a si, não culpará o mundo, não se ressentirá. Não condena nem perdoa: revolta-se. Sua solidão é guerreira, sua liberdade uma condição encarnada, jamais abstrata ou utópica.

Em contrapartida, a injustiça não contentará. Causará o ódio. É preciso nutrir-se dele. Odiar ao aceitar que a injustiça existe, que rasteja, iniludível, aqui e agora. Odiar é preciso. Inconformar-se nessa aceitação calcinada. O estranho amor do generoso exige uma carreira no ódio. Amante das pessoas em carne-e-osso, iluminado pelo sol do meio-dia, a generosidade e a revolta se combinam sem dissolução.

Doravante, a solidão instila a coragem e deseja a justiça viva. A mão que afaga cerra os punhos. As imprecações não se dirigem à abóbada azul, mas à terra, ao faraó, às pedras de suas pirâmides. Odeia porque ama. Luta porque deseja. Eis o desabrochar da política.

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Embriagar-se com água pura, 30/11/2010

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Fonte: Quadrado dos Loucos

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