PICICA: "(...)silenciosamente, nas relações do dia-a-dia, e quase sem o devido reconhecimento, as mulheres vêm impregnando a sociedade de uma diferença, de uma outra cosmovisão, que desconstrói o mundo patriarcal clássico, autoritário e reificante. Tudo isso igualmente é movimento feminista, num nível molecular, numa espécie de microfísica social."
Cidade das mulheres e a omelete de Dilma.
Para o homem, só há duas mulheres. A mãe e a puta. Na esposa, buscamos a mãe. Nas amantes, a puta. Todas as mulheres que o homem conhece não passam de variações da mãe e da puta ideais. E só. Homem que é homem não tem amigas. O sonho de consumo masculino se realiza com 1) uma casa perfeitinha, com mulher e filhos saudáveis, bem-educados e brancos, e 2) um harém, com atrizes pornôs, safadas e de todas as raças.
Este o universo machista em que fomos condicionados e somos incentivados, e contra o qual lutamos todos os dias, inclusive em nós mesmos.
O capitalismo cognitivo captura a mulher em ambos os modelos. Em especial, através dos comerciais de cerveja e de margarina. De um lado, exigida como puta, segundo a cosmética andróide da publicidade de cerveja. De outro, cobrada como mãe, conforme a estética asfixiantemente careta das margarinas. A mulher é colocada 24 horas por dia sob julgamento por dois tribunais contraditórios. Espremida entre a mulher-Skol e a mulher-Dorianna, não deve ser fácil.
********
Nunca tinha assistido ao programa da Ana Maria Braga. Fiquei surpreso ao saber que Dilma participaria, na terça passada, dia 1º de março. Aconteceu o impensável: deu gosto encorpar a audiência da Globo.
Discordo de quem avalia que ela baixou a cabeça pra grande imprensa e traiu o eleitorado. Paira certa imaturidade de quem acha que está junto e misturado com o governo, isso pra não falar de dor de cotovelo. A campanha eleitoral acabou: movimento é uma coisa, governo outra. Somos um movimento na rede, uma legião, e continuaremos a ser, mas a presidenta doravante pertence ao estado. É outra dinâmica. Posso discordar de várias posturas do novo governo, mas também não sou nenhum opositor sicofanta, à procura de pelo em cabeça de ovo.
Por que não interpretar o acontecimento pela lógica inversa? Ora, a Globo teve de engolir a presidenta em seu principal show matinal, fritando uma omelete. Mais que uma concessão de Dilma, ela conquistou o direito de ser convidada, inclusive pelos maiores inimigos históricos da democracia brasileira.
A presidenta Dilma não muda uma vírgula de seu discurso, nem um trejeito de sua persona política, no congresso do PT ou numa comemoração da Folha de São Paulo. Com desenvoltura e autoconfiança, Dilma expôs as políticas do governo, defendeu a orientação de esquerda, mostrou saber do que fala e, como resultado, valorizou a própria imagem.
Comoveu-me, lá no programa da Braga, quando Dilma disse que o grosso do trabalho das mulheres não aparece. Nas últimas décadas, as mulheres se incluíram em espaços antes inacessíveis. Tornaram-se professoras universitárias, médicas, engenheiras, economistas, pilotas de caça, juízas, blogueiras, presidentas de empresa, parlamentares etc. Além do trabalho mais afetivo e doméstico, abriram caminho para postos de formulação e direção.
Portanto, silenciosamente, nas relações do dia-a-dia, e quase sem o devido reconhecimento, as mulheres vêm impregnando a sociedade de uma diferença, de uma outra cosmovisão, que desconstrói o mundo patriarcal clássico, autoritário e reificante. Tudo isso igualmente é movimento feminista, num nível molecular, numa espécie de microfísica social.
Nesse momento da entrevista, entre receitas de omelete e troca de amenidades, Dilma provou mais uma vez que tem brilho próprio. Talvez não precisemos sentir tantas saudades de Lula. Quem sabe Dilma reúna qualidades extraordinárias para liderar esse governo, à altura do anterior. Só que do seu jeito próprio, um jeito de mulher.
========================================
A inspiração para este breve ensaio ocorreu-me ao ler A grande luta das mulheres, no blogue amigo O Inferno de Dândi, editado por Danilo Marques.
O leitor pode interessar-se por Só uma mulher para o amor vencer o ódio, texto do Quadrado por ocasião da vitória de Dilma nas eleições presidenciais.
Fonte: O Quadrado dos loucos
Nenhum comentário:
Postar um comentário