Como enxergar a revolução árabe pela ótica da multidão?
By Bruno Cava
– 1 de março de 2011Há dois modos de mirá-la: sob a ótica do poder ou da multidão. A primeira predomina na grande mídia. Como vê-la pelo outro lado?
Por Bruno Cava, do Outras Palavras e Universidade Nômade
Entrou o mês de março e a revolução árabe segue com ímpeto irreprimível, surpreendendo até os mais otimistas analistas de esquerda. Praticamente todos os países árabes foram impactados pelos tumultos, que irromperam na Tunísia na virada do ano. A revolta se alastrou por populações até pouco tempo tidas por “despolitizadas” e desarticuladas, contra regimes considerados sólidos como rocha. Duas ditaduras enraizadas há décadas e apoiadas pela ordem imperial (financeira, militar, midiática) tiveram seus líderes depostos em questão de semanas. Tudo indica que o déspota líbio Muammar Gaddafi seja o próximo, e o espectro revolucionário assusta governantes não só da região.
Na Tunísia e no Egito, a revolução entrou por assim dizer num segundo estágio. As multidões seguem mobilizadas, pois querem mais do que a mera troca de dirigentes. Exigem a mudança estrutural do sistema político e econômico.
Na Líbia, freme uma luta aguda entre o movimento de rebeldes e as forças remanescentes de Gaddafi, isto é, tropas leais e esquadrões mercenários de extermínio. As batalhas são esganiçadas também no Bahrein e no Iêmen, onde os manifestantes confrontam a brutal repressão por parte dos autocratas. Mas também estão cobertos de protestos, em maior ou menor grau, o Iraque, o Omã, a Jordânia, a Argélia, o Sudão e o Marrocos. Em toda parte, e os vídeos do youtube não me deixam mentir, é impressionante como os insurgentes não se amedrontam, se expõem aos maiores perigos, e seguem contestando a ordem estabelecida.
Dos estados árabes, a Arábia Saudita, o Líbano e a Palestina parecem ter sido poupados, por enquanto, dessa faxina furiosa. O que não significa muito, haja vista a rapidez com que essa revolução pega, uma vez deflagrada. Antecipando-se, a monarquia saudita concede direitos e “bondades”, tentando auferir a complacência das massas. Líbano e Palestina, com suas instâncias representativas muito firmes, e sua maior “intimidade” com Israel, parecem internalizar a onda de protestos em termos diferentes que seus vizinhos.
A nós, mais ou menos distantes, resta tentar aprender com os árabes. A quantidade de informação é gigantesca e não há qualquer interpretação fácil sobre o que gerou essa revolução.
Num viés mais socioeconômico, fala-se na situação de penúria das populações, segregadas da partilha dos recursos naturais e da produção. Décadas de neoliberalismo esgarçaram um contraste entre elite multimilionária e maioria excluída, e isso cevou uma instabilidade latente. As lutas são contra a divisão social do trabalho, contra os bloqueios produtivos impostos pela precarização induzida dos trabalhadores. Daí a expectativa de a revolução pegar na Europa mediterrânea, onde os milhões de imigrantes capilarizados se encontram em condições semelhantes.
Os analistas mais liberais, como os da grande imprensa brasileira, tendem a valorizar como fator determinante a restrição dos direitos políticos, a falta de alternância no poder, a pouca liberdade de expressão. A luta é contra a ditadura, por direitos formais, e não contra o neoliberalismo, por direitos sociais. Daí comentadores mais à direita imediatamente alertarem que o movimento reúne condições para pegar em Cuba e na Venezuela.
Subsiste ainda uma explicação mais geopolítica, que aponta a distância entre o sentimento antiimperialista das pessoas e a flexibilidade com que os governantes negociam com EUA, Europa e mesmo Israel. A revolução seria acerto de contas com as negociatas das ditaduras com os interesses do capitalismo global, capitaneado pelos EUA e seu enclave estratégico, Israel.
Embora contribuições úteis, isso tudo não é suficiente para explicar a difusão vertiginosa da revolução por países tão díspares e tão distantes e tão simultaneamente. Afora o idioma e a religião, é difícil achar denominador comum para a situação de países como Marrocos, Líbia, Egito e Bahrein. Se a revolução for uma só, sem fronteiras, como acredito, ela se concretizou de modos diferentes em cada realidade nacional.
Na Tunísia, houve muita repressão inicial, mas o movimento não parou de ganhar força, dia após dia. Quanto mais o poder constituído resistia, mais gente aderia aos protestos de rua, e mais ousados se tornavam. Diversos grupos articularam um choque frontal, que dobrou o regime e forçou a fuga do ditador tunisiano, Zine Ben Ali. O movimento na Tunísia foi o mais surpreendente de todos, porque o primeiro.
No Egito, igualmente a repressão apertou logo nos primeiros embates. Houve um primeiro choque com a polícia, mas a inundação das ruas das grandes cidades rapidamente tornou-se incontrolável. As forças policiais debandaram, muitas das quais fundindo-se ao movimento. Então o exército interveio e ocupou lugares táticos, porém se recusando a investir contra o próprio povo. O ditador egípcio, Hosni Mubarak, apelou para comandos paramilitares, e daí foram dois dias de truculências pelas ruas de Cairo (com direito à carga de camelos). Novamente, os revolucionários provaram sua determinação, não arrefecendo um dia sequer. Daí por diante foi questão de dias para a persistência invencível da Praça Tahrir dobrar a intransigência de Mubarak.
Tanto no Egito quanto na Tunísia a partida do ditador trouxe problemas. Como não houve tomada do poder, nem esfacelamento estrutural do regime, em ambos os países a classe dominante tenta se recompor. Promete mudanças constitucionais e substituição dos antigos dirigentes. Mas em um e outro caso, as multidões não se desmobilizaram, e viraram o aprendizado revolucionário contra os líderes da transição. O que foi aprendido nas ruas, permaneceu vivo.
Novamente, a multidão na Tunísia saiu na frente, ao derrubar, no final do mês passado, o sucessor de Ben Ali e outros ministros das antigas. No Egito, com impulso semelhante, permanece a mobilização na Praça Tahrir, emblema e condensação dos desejos revolucionários do mundo árabe.
Na Líbia, o clã Gaddafi resolveu lutar até a última bala. Porque não tem escolha. Tolerado pelas potências ocidentais depois que passou, na década de 2000, a fazer o jogo do império, agora o ditador líbio não tem onde se asilar. Diferentemente do caso egípcio, os militares foram ordenados ao ataque total contra os rebeldes. O resultado foi a cisão das forças armadas: unidades amotinadas e deserções. Não a toa, o ditador precise tanto dos mercenários da África subsaariana.
É curioso, noutra ótica, como a repressão ordenada por Gaddafi, não protegido pela ordem imperial (como Mubarak ou Ben Ali), seja imediatamente enquadrada como “desastre humanitário”. Algo que não aconteceu no Egito, Tunísia ou Bahrein — onde, como se sabe, também houve centenas de mortos, sujando de sangue as mãos dos déspotas. É evidente que qualquer reação truculenta contra o movimento civil de massas é criminosa e inaceitável, mas vale reparar como o establishment usa dois pesos e duas medidas, em se tratando de ditaduras servis (Egito, Tunísia, Bahrein), ou meramente toleráveis e incômodas (Líbia). Nas primeiras, nem se cogita da intervenção “humanitária”. No segundo caso, despontam porta-aviões singrando em direção ao “teatro de operações”.
Numa apreensão ainda incipiente, e não poderia deixar de sê-lo no calor dos acontecimentos, podem-se identificar dois momentos do processo constituinte árabe. Um momento mais delongado, extensivo, que vem se acumulando há décadas, relacionado à exclusão sistemática das pessoas da partilha de bens, da participação política, da produtividade. E outro mais explosivo, intensivo, que rompe os diques e inunda o tecido social de amor revolucionário, de desejo e cupidez raivosa.
Nesse segundo instante, intensivo, que é a revolução, toda aquela frustração socioeconômica, política, produtiva, enfim toda a baixa autoestima das pessoas explode, e se gera um efeito positivo. Os sentimentos negativos e paralisantes, de medo e impotência, de “não consigo“, cedem a vez a uma dinâmica de autovalorização, de alegria e afirmação, de conseguiremos. Transforma-se a percepção, tudo se torna ao alcance, e as pessoas agarram o momento.
Que, de fato, as populações árabes viviam na desigualdade e injustiça, subjugadas por regimes tirânicos, pró- ou anti-ocidente, nas sombras de palácios suntuosos, isso se sabe muito bem.
O que falta compreender, portanto, é o que produziu a ruptura dos diques. Como essa ruptura levou à articulação de grupos tão heterogêneos num movimento único e autônomo: a imensa juventude precária, os sindicatos, a Fraternidade Muçulmana, o baixo escalão das forças armadas, minorias tribais e outros que ainda nem se sabe os nomes para classificar.
Se uma classe política, como realidade material, se constitui na luta concreta como sujeito, é caso de perguntar pela composição de classe do movimento. E persistir nesse questionamento: é a mesma composição de classe que pode romper os diques noutros lugares? na Arábia? no Irã? na Europa, através dos imigrantes?
Ademais, como a rede uniu o múltiplo numa força tão potente? foram as redes sociais, o facebook, o tuíter, o telefone celular? houve coordenação por comitês? qual o papel da mídia organizada na articulação revolucionária? como tudo isso interagiu? e mais: qual o discurso correspondente a essas formas de organização e redes, como interpretar e ajudar a propagar esses desejos, qual a linguagem?
Todas essas questões são de importância vital para a esquerda realmente ativista. Vital no sentido que delas depende para continuar pulsando de vida. Para não morrer na inanição de conceitos e estratégias.
Através dessas questões, talvez se possa começar a entender o maior movimento revolucionário da geração, que inaugura uma nova percepção e um novo ciclo das lutas globais. Desenvolvê-las, aprimorá-las, testá-las vai permitir enxergar a revolução sob a espécie da multidão, da resistência, do poder constituinte. E não voltar como bumerangue nas interpretações tradicionais, que envolvem estados-nações e ideologias prontas, e equilíbrios regionais e declarações de Obama, que no fundo analisam o acontecimento pelo lado da ordem imperial, do capitalismo, do poder constituído. Não que sejam desimportantes tais análises, mas é que elas já predominam, numa reprodução em mil idiomas, na grande mídia.
Na revolução árabe, nós que estamos longe e tão perto, falta fazermos as perguntas “certas”. Não porque sejam mais verdadeiras ou sinceras, mas porque colocam os melhores problemas, do ponto de vista de uma esquerda revolucionária.
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Fonte: Outras Palavras
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