PICICA: "Nada mal em contar a história de um Rei gago que precisava tomar parte de toda uma nação e levá-la a 2º Guerra contra a Alemanha nazista de Hitler (não existem temas, estéticas ou propostas esgotáveis em cinema). A falta de lógica reside na inoperância de suas forças motoras (narrativa e linguagem mortas pela antipatia aos personagens caricatos), que não resultam nem em um filme sobre a monarquia, nem sobre um rei, nem sobre a gagueira, nem sobre a amizade, nem sobre o rádio, nem sobre a guerra. São somente superfícies planas onde se pode ver tudo e, após isso, dá-se as costas e vai-se embora."
O Discurso do Rei
A inicial trajetória de Tom Hooper no cinema começa a ganhar forma com O Discurso do Rei. Red Dust, Longford (filme feito para a TV) ou Maldito Futebol Clube, filmes prévios do diretor, já davam o tom de uma suposta antiestética, de uma proposta de filmar antes os objetos de construção, para depois os objetos construtores. Hooper parece privilegiar mais as coisas do que as pessoas. Seu mais recente filme nos rememora certos preceitos outrora deixados de lado em seus trabalhos anteriores, principalmente o último (Maldito Futebol Clube), onde a pluralidade das relações de afeto configurava uma trama tão mais aprazível que fica difícil esconder o deboche diante da boçalidade de O Discurso do Rei. Diante de tamanha obra, são sinceros e necessários alguns apontamentos básicos antes da análise do filme propriamente. O que vem se comprovando pelos filmes apresentados até aqui, é uma obra que, embora tente universalizar todo um ambiente estranho a muitos, encontra em si mesma uma vitimização de fé através da imagem, que é sempre expositiva (as cartas estão postas na mesa e não serão alteradas), mas nunca problematiza essas exposições. Resta ao espectador observar e concluir a partir da nulidade de natureza humana presente nas imagens que lhe são mostradas. Essa é sua inequidade.
A preocupação extrema em transmitir a realidade joga contra o filme, exorcizando o engendramento de soluções menos simplistas. Hooper demonstra ser um cineasta das coisas materiais, mesmo que não queira. Esse parece ser um limite de seu cinema, essa questão de transcender a realidade e pensar o filme apenas como parte da História lhe escapa. Nada mal em contar a história de um Rei gago que precisava tomar parte de toda uma nação e levá-la a 2º Guerra contra a Alemanha nazista de Hitler (não existem temas, estéticas ou propostas esgotáveis em cinema). A falta de lógica reside na inoperância de suas forças motoras (narrativa e linguagem mortas pela antipatia aos personagens caricatos), que não resultam nem em um filme sobre a monarquia, nem sobre um rei, nem sobre a gagueira, nem sobre a amizade, nem sobre o rádio, nem sobre a guerra. São somente superfícies planas onde se pode ver tudo e, após isso, dá-se as costas e vai-se embora.
Tom Hooper filma O Discurso do Rei da maneira mais simplória possível: jogo básico de plano/contraplano (só aparece quem está falando), câmera no tripé, faz poucos movimentos, investe aqui ou ali no plongeé. O filme não tem extracampo, tudo que existe acontece na imagem, para não se atrapalhar muito. Um momento interessante surge já no primeiro encontro entre os personagens de Colin Firth (Rei George) e Geoffrey Rush (terapeuta Lionel Logue), quando justamente o plano/contraplano enquadra Firth de um lado da imagem e o contraplano tem Rush do outro lado, como se o espaço lateral que está no quadro tivesse que ser preenchido pelo outro (nenhum dos dois está no centro da tela, portanto encontram-se ao lado de espaços vazios, esperando serem complementados pela presença do outro). Apesar do efeito bonito (não deixa de simbolizar a alvorada de uma amizade, de um amor, de um respeito mútuo, de uma confiança), o resultado é a metáfora fácil que responde todo o filme: o mestre ensina o aluno a lidar com seus problemas pessoais, mas também aprende com ele a lidar com a vida (explícito na cena em que a mulher do terapeuta “descobre” que o misterioso paciente do marido é o Rei George).
O filme se passa em meio à ascensão do rádio e a utilização dele como meio de comunicação em massa que, a priori, conduziu nações à (2º) guerra. Discursos inflamados eram proferidos aos montes; convocatórias nazistas, fascistas e monarcas conflagraram-se amiúde ao avanço da batalha. As vozes que de lá saiam convidavam as pessoas ao ódio e ao amor, ao sangue e ao abraço, a lágrima e ao sorriso, mas acima de tudo à esperança. O Discurso do Rei não levanta essas questões (é uma escolha do filme), prefere a relativização das coisas, ficando mesmo ligado a esse personagem (Rei) em essência e forma (não há mal algum nisso). A faca na própria bota está fadada a corromper o filme, pois ele crê em coisas que inexistem (inclusive em pensamento): o drama humano nos personagens é suavizado em prol de objetivos únicos, como se a vida fosse um tamagoshi. Toda a convulsão que aflorava no mundo é só pano de fundo para o Rei George e sua gagueira e a luta de Logue para provar que é capaz de superar suas próprias ambições e curar a realeza do mal absoluto. Mas Logue é um personagem sem problemas, o que nos leva a fetichização, a um falso personagem (no entanto o desinteresse é verdadeiro), avacalhado pela perfeição de sua conduta e ética (quase, não fosse a revelação que teremos no final). Está posta e reverenciada somente a beleza da monarquia britânica. O Discurso do Rei tende a ficar esquecido já em seu próprio tempo, pois a brisa do vento só assoprará suas cinzas para longe.
Talvez por isso seus personagens sejam tão frágeis, pois nem Colin Firth nem Geoffrey Rush conseguem exprimir deles mais que o óbvio (lágrimas e olhares estarrecidos). Daí o fato de uma cena dramática ter seu peso (sua carga) relativizado em sintonia a uma cena cômica, pois “os tons” se alternam impropriamente, sem qualquer habilidade ou perícia. O restante do filme se conduz irrefreavelmente por cima de clichês muito caros ao cinema britânico contemporâneo: os métodos pouco ortodoxos de Logue, a inicial negação do paciente em ser tratado, o fato da busca pela “cura” se dar mais na companheira do que no próprio “doente”. O filme abdica também de outros fatores factuais da vida e da saúde do Rei. George não tinha a gagueira como sua principal fonte de problemas, pois, além disso, sofria de sérias dores estomacais e, como o cigarro era um companheiro fiel, adquiriu câncer logo cedo. Hooper aposta numa tensão apoiada sobre linhas bastante ralas para sustentar seu filme, que cedo ou tarde acabarão cedendo. Só a gagueira em si mesma para registrar a aflição de todo “um Homem” (coloque aí a carga dramática que julgar necessária) é por demais leviano, não constitui num drama, nem mesmo numa “historinha para entreter”. Ao menos não no cinema. O que se explicaria (e forçaria a mudança do olhar) facilmente se Tom Hooper fosse um contador de fábulas a lá Tim Burton.
De Tom Hooper
Com Colin Firth, Geoffrey Rush, Helena Bonham Carter
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