março 05, 2011

"Nem ruim da cabeça, nem doente do pé", por José Ribamar Bessa Freire

PICICA: O meu considerado Ribamar Bessa me pergunta, ao final do seu artigo (abaixo), por onde anda o Bloco "Unidos do Eduardinho", bloco de carnaval composto por pessoas com transtorno mental que criei quando era coordenador de Saúde Mental do Estado do Amazonas em 2005. Ah, meu querido amigo, se bobear até esse tal de Rogelio Casado não passa de uma ficção, nunca existiu. Este é o destino dado pelos reformistas de araque às ações e aos personagens que tentaram fazer avançar a reforma psiquiátrica no Amazonas. Acaso alguém lembra que nos anos 1980 os internos do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro ali produziam uma tonelada de verduras e plantavam mandioca, milho e feijão, além de manter uma casa de farinha e um plantel de sessenta cabeças de suínos? E o que o resultado financeiro da produção era dividido  fifty-fifty, ou seja metade entre os internos e metade para compra de novos insumos. Sabe o amigo da minha intolerância ao canibalismo da esquerda, que devora seus companheiros de luta; imagine, então, o horror que tenho à direita que tenta destruir nossa memória. Bem que ela quer se livrar de nós, os indesejáveis, mas entre um mergulho e outro a gente sempre reaparece de bubuia, que é prá driblar os "locas". Para desespero dessa turma não é do  "complexo de Édipo" que padeço; é do "complexo de Fênix" que me fortaleço. Só tem uma coisinha. Apelo para a tua infinita paciência para apoiar nossa mais nova iniciativa. Trata-se do Projeto "Nós & Voz", que tem como objetivo a inclusão social de pessoas com transtorno mental  através do trabalho e da arte, na perspectiva da economia solidária.  O projeto é chancelado pela Universidade do Estado do Amazonas, e tem como parceiro a Associação Chico Inácio, que atua no campo da construção da cidadania das pessoas em sofrimento psíquico, fundada no início deste século por este amante das causas (im)possíveis. Quero te lembrar do teu esforço em dirigir uma mensagem ao então presidente da Assembléia Legislativa, deputado Belarmino Lins (vixe!), saudando a votação da Lei de Saúde Mental, proposta pela associação supracitada. Eu e minha turma somos eternamente grato ao teu apoio. Valeu a pena engolir esse sapo em prol de uma legislação moderna de saúde mental para o Estado, que ainda resiste em sair do papel. Teu apoio será bem vindo, e certamente contribuirá para abrir novos horizontes aos que até recentemente estavam condenados pela psiquiatria conservadora a mofar nos hospícios. Quanto a estes, diz a sabedoria antimanicomial que quem não gosta dos loucos, bom sujeito não é. 

Nem ruim da cabeça, nem doente do pé

Foto: Amaro Junior e Janaina Souza - Bloco "Tá pirado..."
Os blocos dos excluídos são vitais numa sociedade onde Jaqueline Roriz – filha de peixe – junto com Maluf, Newton Cardoso, Almeida Lima e tantos pilantras integram a comissão de frente da reforma política. São imprescindíveis, num país onde Sarney preside o Senado, onde todos eles passam a mão e, ainda por cima, metem o dedo.
Num contexto desses, o carnaval parece ser o espaço mais sério, democrático e solidário do país. Simboliza o que existe de melhor e de mais sadio na sociedade brasileira. Constitui uma esperança saber que os excluídos estão se organizando e reivindicando um lugar na sociedade e que existe muita gente que se solidariza com eles. Com humor, os excluídos estão conquistando a cidadania. Um país em que o doente do pé e o ruim da cabeça sambam com alegria tem que dar certo.

Por José Ribamar Bessa Freire (*)

No momento em que escrevo... Perdão, no carnaval ninguém escreve chongas... No momento em que BATUCO essas mal traçadas linhas, até os postes e as estátuas do Rio de Janeiro estão remexendo o esqueleto. O Cristo Redentor levantou o dedinho, o Pão de Açúcar está rebolando e até a igreja da Penha caiu na gandaia. Foram 14 transatlânticos que ancoraram no Píer Mauá. Os hotéis estão entupidos. A cidade bate o recorde de turistas. Um milhão de visitantes, dos quais 300 mil são estrangeiros, segundo dados oficiais da Riotur. O carnaval, entre outras coisas, é um grande negócio.
Se o carnaval durasse o ano inteiro e houvesse um rodízio, cada dia teria um bloco diferente nas ruas do Rio, sem repeteco. O carnavalesco e folião-mor Gilberto Menezes Moraes, professor da UERJ, contou um por um: são 365 blocos que desfilam, oficialmente, no carnaval carioca, alguns deles contrariando Dorival Caymmi, porque mesmo quem é considerado “ruim da cabeça ou doente do pé” caiu na folia, mostrando que é bom sujeito e que gosta de samba, de pandeiro, de surdo e de tamborim.
Surdo e tamborim
Quem foi que disse que o “doente do pé” não pode pular carnaval? Pode sim, se entendemos que “pular” é brincar e curtir. Por isso, os cadeirantes criaram um bloco chamado “Senta que eu empurro”, que desfilou pelas ruas do Catete nessa sexta-feira, dia 4 de março, num diálogo com outro bloco, o “Empurra que pega”. Esse eu perdi, mas não perco o bloco “Gargalhada” por nada no mundo.
O “Gargalhada” desfila hoje, domingo, às 16hs., na Avenida 28 de setembro, Vila Isabel, zona norte do Rio, com cobertura do Diário do Amazonas, de Manaus, que terá um enviado especial – euzinho aqui, o primo da Lúcia Jacinaguara. Esse é o único bloco que tem um intérprete de LIBRAS, a língua brasileira de sinais. Na realidade, dois intérpretes que traduzem todo o evento para os surdos e ensinam aos ouvintes presentes algumas palavras em Libras incluindo, entre os alunos, o próprio Rei Momo que vai cumprimentar os surdos em LIBRAS.
Criado há sete anos para promover a inclusão dos surdos no carnaval, o “Gargalhada” fez uma parceria com os grupos “Instituto Interdisciplinar Rio Carioca” e “Anjos de Visão”, que congrega deficientes cegos, surdos cadeirantes, anões, portadores de síndrome de Down, amazonenses e baianos deslocados no Rio e quem mais quiser. Por favor, quero que me excluam dentro dessa, se é que me faço entender.
Os deficientes visuais, aliás, pela primeira vez, poderão ouvir uma narração detalhada dos desfiles do Sambódromo, num serviço gratuito oferecido pela Riotur no Setor 13, que disponibilizou 300 ingressos para pessoas deficientes. O carnaval paulistano também traz um projeto inovador intitulado “Só não vê quem não quer”, que leva pessoas cegas e de baixa visão para acompanhar os preparativos e desfiles finais das escolas de samba.
- “Eu não sabia da beleza dela, mas eu descobri. Foi maravilhoso. Na hora que eu peguei nas mãos dela, deu pra sentir a delicadeza das mãos, o gingado”, disse Diego, um deficiente visual, depois de dançar com Joyce, a rainha da bateria de uma escola. “Estou vendo tudo, sentido tudo e com detalhe: dessa vez interagindo” – falou outro deficiente visual, Airton Rio Branco.
Loucura Suburbana
Quem caiu no samba não foram apenas os doentes do pé, os cadeirantes, os deficientes visuais, os surdos, mas também os que são considerados “doentes da cabeça”. No domingo passado, dia 27 de fevereiro, euzinho aqui, enviado do Diário do Amazonas fui conferir, como faço todos os anos, o bloco “Tá pirando, pirado, pirou”, formado por portadores de sofrimento psíquico, seus familiares, funcionários de instituições de saúde mental, simpatizantes e alguns bichos da fronteira, como nós, com um pé lá e outro cá.
Esse bloco que nasceu no Instituto Pinel, na Urca, em 2005, desfilou a primeira vez dentro do hospital. Deu certo e, então, a partir do ano seguinte foi pra rua com bonecos feitos com fibra de vidro e com caixas de remédios controlados de tarja preta. Concentra na Rua Lauro Muller, desfila na Avenida Pasteur, na Urca - sede do primeiro hospício da América Latina, o Pedro II. Dispersa na pracinha do Pão de Açúcar, onde o repertório inclui sambas enredos clássicos e marchinhas.
O “Tá pirando”, em parceria com o Centro de Teatro do Oprimido, realizou oficinas para formar a comissão de frente. O samba enredo desse ano, criado pelo Nico do Cavaco, Roni Valk e Bisqüi da Fatinha, cantou a filosofia do prazer, de sentir e experimentar, com o título “Amor, venha desfrutar as 7 maravilhas do mundo”.
Na mesma linha, outro bloco é o “Loucura Suburbana”, formado por pacientes, funcionários e familiares do Instituto Municipal Nise da Silveira. Desfilou pelas ruas do Engenho de Dentro, na Zona Norte nessa quinta-feira, dia 3, com o samba “Sou parte da história, venha ver meu dia-a-dia, pra 10 anos de loucura, mais 100 anos de folia”. Dessa forma, o bloco comemora os seus dez anos de vida e um século de existência do Instituto, cantando a história do bairro, da saúde mental e da psiquiatria brasileira.
O “Loucura Suburbana” volta ainda às ruas em três momentos diferentes: hoje, domingo, dessa vez na própria Sapucaí, participando de uma ala da Mocidade Independente de Padre Miguel, em conjunto com o Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro; terça-feira, dia 8, na Avenida Intendente Magalhães, numa ala da Escola de Samba Canarinhos de Laranjeiras; e finalmente de volta ao sambódromo no sábado, 12 de março, no desfile das campeãs, como ala da Escola Embaixadores da Alegria. Os caras estão bombando.
O terceiro bloco é o “Tremendo nos nervos” do Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro, no bairro da Saúde, Zona Portuária do Rio, por cujas ruas desfilam seus integrantes, que fecham a Rua Sacadura Cabral depois de se concentrarem na Praça da Harmonia.
Os três blocos envolvem os pacientes em todas as atividades, desde a escolha do enredo e da camiseta, passando pelo concurso de sambas, confecção de fantasias, oficinas e rodas de samba. Os médicos afirmam que essa participação, além de constituir uma diversão, criou um espaço de convivência, de troca de ideias, e virou parte do tratamento dos portadores de sofrimento psíquico. Contribui também para combater o preconceito do entorno e para reforçar o bloco “Passa a mão, mas não mete o dedo”.
Os blocos dos excluídos são vitais numa sociedade onde Jaqueline Roriz – filha de peixe – junto com Maluf, Newton Cardoso, Almeida Lima e tantos pilantras integram a comissão de frente da reforma política. São imprescindíveis, num país onde Sarney preside o Senado, onde todos eles passam a mão e, ainda por cima, metem o dedo.
Num contexto desses, o carnaval parece ser o espaço mais sério, democrático e solidário do país. Simboliza o que existe de melhor e de mais sadio na sociedade brasileira. Constitui uma esperança saber que os excluídos estão se organizando e reivindicando um lugar na sociedade e que existe muita gente que se solidariza com eles. Com humor, os excluídos estão conquistando a cidadania. Um país em que o doente do pé e o ruim da cabeça sambam com alegria tem que dar certo.
Ah, se a sociedade brasileira fosse tão inclusiva como está sendo no carnaval, o país seria outro! Saudade danada do Darcy Ribeiro, que nos deixou no carnaval de 1977 depois de nos ajudar a compreender isso. Viva Ana Pereira! Viva o Carnaval, que a ninguém faz mal.
P.S. – Doutor Rogelio Casado, cadê o bloco “Unidos do Eduardinho”, formado por portadores de sofrimento mental de Manaus? Sem ter onde desfilar esse ano, a urna da 41ª. Seção Eleitoral, do bairro de Aparecida, em Manaus, conhecida como “urna dos malucos”, mandou uma representante pra desfilar no “Tá pirando” no Rio de Janeiro. Ela se sentiu em casa: ela entre elas.


*José Ribamar Bessa Freire é antropólogo, natural de Manaus e assina no “Diário do Amazonas” coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa “Pró-Índio”. Mantém o blogTaqui Pra Ti e é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.

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