maio 23, 2011

"A maconha e a marcha", por Carlos Orsi

PICICA: "Uma coisa que causa — ou deveria causar — estranheza na questão das drogas é o simples fato de haver drogas proibidas. Na tradição liberal, todo ser humano é proprietário do próprio corpo, e faz com ele o que quer, desde que não cause dano à vida ou à propriedade de outras pessoas. Quem, portanto, é o governo para dizer o que um cidadão pode ou não consumir? Por que homens e mulheres livres e maiores de idade toleram que o Estado determine o que podem ou não introduzir em suas veias, pulmões ou narinas?"


A maconha e a marcha



por Carlos Orsi

O fato de as chamadas “marchas da maconha” ainda serem consideradas “polêmicas” é um dos sinais do quanto ainda estamos longe de uma cultura democrática digna do nome. O direito dos cidadãos de protestar pacificamente para pedir mudanças na lei é um dos pilares da democracia moderna. Na Carta de Direitos da Constituição dos EUA, aparece logo no primeiro item, junto da liberdade de expressão e de religião, mas aqui no Brasil as pessoas ainda parecem achar que liberdade de manifestação é liberdade de manifestar concordância com o senso comum (ou, pelo menos, com um lobby bem endinheirado).

Claro, em sendo a manifestação uma passeata, as autoridades têm de levar uma série de fatores em consideração antes de autorizá-la, mas esses fatores são (ou deveriam ser) o impacto do evento na vida da cidade e no direito de ir e vir dos demais cidadãos e não, ora bolas, o tema da manifestação em si. (Cá entre nós, a lei brasileira contra a “apologia do crime” é mais uma mordaça discricionária à disposição do Judiciário do que uma tentativa real de evitar à incitação ao ilícito.)

Tendo dito tudo isso, ressalvo que defender o direito à marcha não significa concordar com a petição que a marcha busca promover. O debate sobre a descriminação da maconha (e das drogas em geral) é cheio de paixões e posições hidrófobas — de ambos os lados, diga-se, embora a ala conservadora tenha mais espaço na mídia.

O argumento mais repetido pelos adversários da legalização da maconha é o da “porta de entrada” — a maconha seria um primeiro passo para o mergulho no mundo das drogas pesadas. No entanto, um estudo publicado em 2003 demonstra que, embora o efeito “porta de entrada” seja plausível, os argumentos usados para defendê-lo também justificam uma hipótese alternativa — a de que existe um tipo de personalidade com propensão ao uso de drogas, e que pessoas com esse tipo de personalidade tendem a buscar substâncias cada vez mais pesadas. Diz o texto:
O estudo demonstra que a associação entre maconha e o uso de drogas pesadas pode ser esperado mesmo se a maconha não atuar como porta de entrada. Em vez disso a associação pode resultar das diferenças de idade em que os jovens têm oportunidade de usar maconha ou drogas pesadas, e variações conhecidas na disposição dos indivíduos de buscar drogas.
De acordo com um dos autores, “pessoas predispostas a usar drogas e com a oportunidade de usar drogas têm maior probabilidade do que outros de usar tanto maconha quanto drogas pesadas (…) A maconha tipicamente vem primeiro porque está mais disponível”.

Eu, de minha parte, me pergunto até que ponto esse efeito “porta de entrada”, se é que existe, não deriva exatamente do fato de que a maconha é ilegal. Hoje em dia, o mesmo traficante que oferece cannabis provavelmente também tem acesso a cocaína, por exemplo, e está disposto a oferecê-la ao cliente; mas se os cigarros de maconha fossem legalmente vendidos em padarias, é improvável que a mocinha do caixa também tivesse papelotes escondidos debaixo dos drops de horletã.

Já um argumento que comumente aparece na boca dos defensores da erva é o de que a maconha pode ser benéfica para a saúde, e certamente é menos maléfica que o cigarro. Embora algumas partes do mundo aceitem o uso de maconha com fins medicinais — para reduzir a pressão intraocular de pacientes de glaucoma ou como sedativo em casos de doentes terminais — a alegação de que a cannabis é menos prejudicial que o tabaco não se sustenta.

Estudos publicados nas últimas décadas mostram que a maconha aumenta o risco de câncer de pulmão, que o alcatrão da maconha se acumula mais nos pulmões que o do tabaco e que a cannabis representa um perigo para a sobrevivência de pessoas com problemas cardíacos. Numa nota subjetiva e totalmente pessoal, acrescento que a fumaça da maconha fede muito mais que a do cigarro (ao menos na minha época, era impossível estudar Jornalismo sem acabar exposto a ambos os tipos de nuvem tóxica).

Dada a a falta de substância das alegações de parte a parte, como ficamos?

Uma coisa que causa — ou deveria causar — estranheza na questão das drogas é o simples fato de haver drogas proibidas. Na tradição liberal, todo ser humano é proprietário do próprio corpo, e faz com ele o que quer, desde que não cause dano à vida ou à propriedade de outras pessoas. Quem, portanto, é o governo para dizer o que um cidadão pode ou não consumir? Por que homens e mulheres livres e maiores de idade toleram que o Estado determine o que podem ou não introduzir em suas veias, pulmões ou narinas?

Drogas de uso dito “recreativo” afetam o indivíduo e a sociedade. Os efeitos no indivíduo são os que se fazem sentir sobre sua saúde, sua capacidade de gerar renda, seu círculo de relações, seu livre arbítrio; na sociedade, são os que afetam os sistemas de saúde pública, a economia, a segurança pública e, claro, o aparato policial-judicial. O poder do Estado de proibir algumas drogas busca justificativa nessas duas dimensões.

Na dimensão individual, a proibição das drogas se apoia nos argumentos do dano e do vício. O argumento do dano alega que a droga faz mal à saúde, e que o Estado tem o dever de proteger a saúde de seus cidadãos; o do vício, que a droga gera dependência, o que faz com que o usuário deixe de ser um agente livre e, portanto, passe a precisar da proteção paternal do Estado na supressão da substância viciante. Esses são talvez os argumentos mais fracos pró-proibição. Aceitos, eles requerem não só o veto à maconha, à cocaína e à heroína, mas também ao tabaco, ao álcool e ao café, sem falar na carne vermelha e no chocolate.

Na dimensão social, a proibição se apoia nos custos — econômicos e emocionais — da droga, do tratamento dos problemas de saúde que ela causa, da perda de vidas e de produtividade dos usuários e dos elos entre a droga e o crime, principalmente o crime organizado. O ponto saliente dessa linha argumentativa é que, com exceção da questão do crime organizado, todos os problemas citados também existem em relação ao álcool e ao tabaco, ambas drogas aceitas e toleradas. O alcoolismo destrói famílias, alcoólatras às vezes reduzem-se a mendigos ou ladrões para sustentar o vício, o álcool gera absenteísmo no trabalho. O tabaco reduz a expectativa de vida, a produtividade, e a nicotina é uma das substâncias mais viciantes conhecidas. Esses custos sociais são assimilados pela comunidade, como um todo, em nome do respeito pela liberdade individual.

Parece-me que o ponto que distingue o impacto social das drogas ilegais das legais — o crime organizado — é fruto direto, e não causa, da proibição. Como já disse um historiador americano, antes da Lei Seca, a máfia prestava serviços aos políticos; depois dela, os políticos passaram a prestar serviços à máfia.

É por isso que não creio que houvesse traficantes ma Marcha da Maconha. Eles certamente não querem a concorrência da Souza Cruz.

Jornalista e escritor. De 2005 a 2010, foi editor de Ciência do site do Estadão. É autor de contos e romances de ficção científica, dentre eles Guerra Justa (Draco, 2010).

Fonte: Amálgama

Nenhum comentário: