maio 22, 2011

"Ainda Potlatch", por Bruno Cava

PICICA: "Resistir aos sistemas de controle e exploração implica agir também na esfera dos afetos, mediante a arte dos bons encontros e do fortalecimento do comum das relações. Em vez de estetizar o gozo, trata-se de politizar o amor."
Ainda Potlatch

Escrevi no começo da semana sobre capitalismo, afetos e fidelidade. Resistir aos sistemas de controle e exploração implica agir também na esfera dos afetos, mediante a arte dos bons encontros e do fortalecimento do comum das relações. Em vez de estetizar o gozo, trata-se de politizar o amor. Escrevi como a fidelidade amorosa, a heteronormatividade e o hedonismo vulgar fazem a cama do capitalismo de hoje. Porque frustram o comunismo dos afetos e instituem um mercado. Um capitalismo cognitivo que manipula, disciplina, explora e neutraliza a economia superabundante dos desejos e relações.

É o bom adágio que a revolução começa por nós mesmos, tônica dos movimentos libertários dos anos 1960. Devir esquerda não se concretiza somente com determinada agenda política, mas também e sobretudo com uma preocupação obsessiva na ação em suas dimensões éticas, estéticas e afetivas.

Bastam lembrar as obras de Hélio Oiticica (ParangoléBólides, Tropicália etc), Zé Celso Martinez (Rei da vela e outras montagens tropicalistas do Teatro Oficina), Raoul Vaneigem (A arte de viver para as novas gerações), Herbert Marcuse (Eros e civilização, O homem unidimensional), ou então todo o ímpeto revolucionário dos zapatistas no México, dos situacionistas europeus, de maio de ’68 na França e na Tchecoeslováquia, e principalmente do Movimento de ’77 na Itália. Esse vigor que rejuvenesceu as lutas remonta a Oswald de Andrade, às vanguardas artísticas do começo do século, aos revolucionários russos da era pré-estalinismo (1917-30), como o cineasta Dziga Vertov, o designer Alexander Rodchenko, o crítico literário Mikhail Bakthin, o jurista Evgeni Pashukanis. O mapa de referências é inesgotável.

Nesse cânon, defendi como é preciso reiventar a forma como nos relacionamos. Menos que prescrever uma forma de vida, me propus a problematizar o modo simplista com que muitos vivem seus relacionamentos. E abordar de que modo isso repercute numa estética da existência conservadora, pois determinada pela forma mercantil do capitalismo.

Além dos comentários abertos, recebi críticas em privado. Afinal, o tema esbarra em suscetibilidades. Não por acaso adotei um título um pouco enigmático, que não panfleta o texto. Uma leitora fez uma objeção que considero representativa. Costumo muito ouvi-la, mas desta vez foi tão bem formulada, que tomo a liberdade de citar, resguardando a fonte:

“Eu concordo com tudinho. Só não gosto quando se diz que o casal que decide ser fiel nao ficar com outras pessoas faz isso por “egoísmo”. Ora, um certo tanto de egoísmo é inevitável. Um certo tanto de querer o outro para si é inevitável. E se um casal decide lidar com esse egoísmo inevitável mantendo um relacionamento fechado, eu acho que esta é uma maneira válida de lidar com as coisas. Não necessariamente significa que o casal seja alienado pelo sistema do mercado dos afetos. Aliás, muito difícil distinguir. O quanto nossas ações são espontâneas e o quanto é alienação. Niguém vive no vácuo etc. No meu mundo ideal, há liberdade para ser polígamo. E para ser monógamo. E ninguém enche o saco de ninguém. Cada casal que decida o estilo de relacionamento que for melhor pra ambos. Mas reprimir alguém que deseja genuinamente ficar com uma pessoa só também é opressivo. É não permitir que a pessoa seja o que é. Aí se está querendo substituir a ‘ditadura da monogamia’ (que oi, nem é mais uma ditadura. Temos um bom tanto de flexibilidade hoje em dia) pela ditadura da ‘socialização do afeto’, como queira chamar.”

Fiel ao diálogo, a minha resposta:

“Mas aí reduzimos a ética a uma questão privada, que é justamente o rendimento do capitalismo liberal. E não quero dizer que seja pública. Mas eu não questiono a decisão pessoal, mas justamente o processo que conduz a essa decisão pessoal, quero dizer, a própria produção de subjetividade, sem partir da premissa de sujeitos egocentrados que pactuam livremente em situação de igualdade (as premissas do direito civil, da política liberal, da autonomia da vontade). Nesse sentido, acho que se podem ler também o racismo e o machismo, como forças sociais que nos atravessam e nos constituem, e cujo combate não passa somente por alguma nova psicologia, mas por toda uma reconfiguração do sistema sociopolítico, que, por sua vez, está entranhado com a economia dos afetos _e_ sua exploração capitalista. Mutatis mutandis. E mais, não falei em ditadura do proletariado afetivo. Mas, precisamente, um comum além de qualquer injunção moral ou medo da solidão.”

E concluo com um longo período: podemos terminar numa relação cerrada, num pacto de fidelidade estrita, da mesma forma que nós, de uma esquerda radical (no âmbito ético-estético-político-afetivo, isto é, biopolítico), ingressamos numa relação assalariada, ocupamos um cargo no estado ou mesmo lucramos com a propriedade, fatos que, na contingência lamentável deste sistema injusto, podemos mesmo acabar fazendo; porém, independente disto, não deveríamos renunciar à lucidez de considerá-los concessões a contragosto e provisórias, que se impõem taticamente, precariamente, devido à nossa impotência, e sem perder de vista a sua injustiça intrínseca, a sua tristeza constitutiva.

Eis aí de novo as aporias do “período de transição”.
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Fotografia por Alexander Rodchenko, 1932

Fonte: Quadrado dos Loucos

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