PICICA: "O que dizer agora, agora que somos a sétima economia do mundo? Olhem à nossa volta e deleitem-se diante do espetáculo exaltante da sétima economia do mundo. Nossas cidades, salvo as exceções de praxe, são verdadeiros acampamentos urbanos. Infernos urbanos. Basta que desabe meia hora de chuva sobre elas para que logo mergulhemos no caos desamparados de qualquer governo. Observem, por exemplo, as cenas filmadas de helicópteros sobrevoando cidades submersas. Observem ainda o pesar ou desespero – também o riso e o trejeito lúdico desse povo que teima em rir e cantar em meio à miséria rotinizada – dos desabrigados, no geral gente pobre, feia e mal nutrida. Onde está o governo? Onde os bombeiros, as forças públicas que deveriam ir em socorro da população desamparada? O governo, os bombeiros, a polícia, os médicos, enfermeiros e hospitais não chegam, mas em compensação chegam novos impostos que nos convertem no país detentor de uma das mais escorchantes e aviltantes políticas tributárias do mundo. Cobram-nos tanto, taxam-nos tão impiedosamente e todavia o que nos devolvem em termos de serviços públicos?" Em tempo: Este post é pra Izinha.
Brasil, sétima economia do mundo
por Fernando da Mota Lima
O ministro da Fazenda Guido Mantega (ver Folha de S. Paulo de 3 de março) veio a público anunciar que o Brasil ultrapassou as economias do Reino Unido e da França passando assim a ocupar a sétima posição no ranking das economias do mundo. Sei que muito brasileiro idiota, além sobretudo dos que lucram com esse fato, deve estremecer de orgulho ao tomar conhecimento desse feito extraordinário. Antes de nos valer como motivo de orgulho nacional, essa notícia deveria cobrir-nos de vergonha e antes de tudo inconformismo e revolta. Durante muito tempo os beneficiários do nosso capitalismo espoliador e predatório puderam escudar-se na desculpa de sermos subdesenvolvidos para justificar a iníqua realidade das nossas desigualdades e injustiças. O que dizer agora?
O que dizer agora, agora que somos a sétima economia do mundo? Olhem à nossa volta e deleitem-se diante do espetáculo exaltante da sétima economia do mundo. Nossas cidades, salvo as exceções de praxe, são verdadeiros acampamentos urbanos. Infernos urbanos. Basta que desabe meia hora de chuva sobre elas para que logo mergulhemos no caos desamparados de qualquer governo. Observem, por exemplo, as cenas filmadas de helicópteros sobrevoando cidades submersas. Observem ainda o pesar ou desespero – também o riso e o trejeito lúdico desse povo que teima em rir e cantar em meio à miséria rotinizada – dos desabrigados, no geral gente pobre, feia e mal nutrida. Onde está o governo? Onde os bombeiros, as forças públicas que deveriam ir em socorro da população desamparada? O governo, os bombeiros, a polícia, os médicos, enfermeiros e hospitais não chegam, mas em compensação chegam novos impostos que nos convertem no país detentor de uma das mais escorchantes e aviltantes políticas tributárias do mundo. Cobram-nos tanto, taxam-nos tão impiedosamente e todavia o que nos devolvem em termos de serviços públicos?
Vêm as chuvas, vão-se as chuvas e todavia continuamos à deriva da caridade cristã do povo que de algum modo se mobiliza para catar comida e abrigo para os castigados pelo clima e nossos dirigentes irresponsáveis. O governo, do municipal ao federal, vem à mídia para verter o lero-lero habitual: que farão isso, farão aquilo, que já fizeram isso, fizeram aquilo. Como fazem tanto e prometem ainda mais, se vagamos na vida como um trem descarrilhado? Cidades do poder e grandeza de São Paulo foram até hoje incapazes de efetivar uma política de transportes capaz de articular toda a rede urbana num sistema de metrô. Pelo contrário, a política dominante privilegia ainda o transporte rodoviário enquanto as montadoras continuam cuspindo veículos sobre ruas e cidades intransitáveis. Um dia essa merda vai parar. Um dia ficaremos engavetados no portão de saída dos nossos condomínios, o que de resto já se tornou fato em alguns existentes em São Paulo. Nossos aeroportos não funcionam. Nosso transporte público é uma máquina ruidosa tangendo gado enlatado sempre exposto a ficar congelando ou fervendo dentro do calor no trânsito paralisado de ruas sem alma e governo.
Também deveriam envergonhar-nos coisas como a Ação Global, movimento que num fim de semana mobiliza profissionais e voluntários para concederem atendimento médico e concessão de documentos ao povo privado de ambos. O que deveria ser um direito de acesso rotineiro assegurado pelas instituições competentes, no caso incompetentes, passa a depender de iniciativas extraordinárias para viabilizar ações de cidadania restritas a grupos privilegiados. A isso se somam campanhas de solidariedade em si louváveis, mas que, consideradas de outra perspectiva, deveriam constituir motivo de revolta e indignação cívica, já que existem para suprir a carência de direitos negados pelo Estado à população.
Fiquei portanto muito feliz ao ler a notícia transmitida pelo governo. De fato, ser a sétima economia do mundo é algo que me enche de orgulho do meu país, da classe dirigente cruel e irresponsável que nos desgoverna. Ela continuará acumulando impiedosamente às custas da espoliação de milhões de brasileiros que trabalham feito mula sem compensação sequer salarial para o tanto que sua e constrói. Como tenho o privilégio de viver em casa, salvo quando preciso sair para trabalhar ou fazer o estritamente necessário indo às ruas onde o trânsito logo me prende em nós que vou pacientemente desatando, contornando, contorcendo, continuarei prudentemente encerrado entre minhas paredes, prisioneiro dentro da minha própria casa.
O fato de a notável expansão econômica do Brasil não mudar significativamente nossos problemas fundamentais, aqueles que efetivamente definem uma democracia moderna, é uma evidência de que crescimento econômico não é suficiente por si só para nos elevar à condição invejável alcançada pelos países do capitalismo central. A dívida histórica das nossas elites ou classes dirigentes é enorme e é ilusório pensar que essa dívida será paga sem reformas sociais e culturais profundas. Importa também ressaltar que o povo espoliado pelo nosso capitalismo perverso, que cresce reproduzindo as condições de desigualdade e injustiça de que contraditoriamente se alimenta para acumular e concentrar riqueza, o povo não é vítima inocente. Ele tem também sua parcela de culpa, antes de tudo por ter sido sempre incapaz de se organizar como força de pressão política orientada para um conjunto de mudanças efetivamente democratizante. O que de tudo isso resulta é a persistência prática de uma ditadura social e econômica suportada por grande parcela da população. Como falar de democracia de fato para um povo privado de direitos elementares, do acesso a bens e serviços básicos como educação, saúde, segurança, habitação e saneamento, transporte e por fim o senso de dignidade e saúde civil que derivam do acesso a isso que falta a tantos?
No mais, apesar de sétima economia do mundo, o Brasil continuará torrando irresponsavelmente a economia em escolas que não educam, hospitais que não curam, segurança social que gera insegurança e medo, transporte que não nos leva a lugar nenhum, salvo aos engarrafamentos monstruosos convertidos em paisagem urbana banalizada na mídia e no horror cotidiano que precisamos sofrer. O dinheiro público, que constitui fração colossal da sétima economia do mundo, continuará vazando pelo ralo, rolando nas sarjetas das nossas políticas públicas capengas e sobretudo alimentando o desperdício, o superfaturamento e a corrupção, doença endêmica da política nacional. Salve a sétima economia do mundo, que continua mantendo no garrote um povo de colônia ou fazenda subdesenvolvida. Ser sétima economia do mundo dentro de tais condições é algo que deveria servir apenas para nos envergonhar e sobretudo revoltar.
Professor de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.
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