maio 28, 2011

“Que querem vocês? Viver!”, por Bruno Cava

PICICA: “O fiasco definitivo de Zapatero é o mesmo que pode acontecer, muito em breve, com outros governos ditos “progressistas”. Estou falando dos governos Obama e Dilma. Dois candidatos da esquerda carregados ao poder em meio a campanhas eleitorais inovadoras, no modo 2.0. Tristemente, os dois se descolam dessas bases para praticar o mais do mesmo. Um ao assumir o discurso surrado dos senhores da guerra, contra o que tanto combateu na campanha. Não admiram assim as recentes ocupações de Wisconsin, por fora da lógica da representação, tentando realizar elas mesmas o que Obama não tem conseguido no poder. A outra, Dilma tem falhado em reconhecer as forças vivas da cultura como mundo, que integrava o projeto de democracia do governo Lula. Diante da guinada reacionária do ministério encabeçado por Ana de Hollanda e protegido pela presidenta, o governo se distancia dessas dinâmicas produtivas, das novas mídias. Talvez, estas venham a fazer muita falta nos momentos de conflito com a classe dominante e sua imprensa golpista.”
Que querem vocês? Viver!

Bazar revolucionário [foto por rogalonzo]

Em 15 de maio, as pessoas retomaram as ruas e praças na Espanha inteira. Ocuparam, acamparam, papearam, se expressaram, batucaram, se amaram, produziram uma forma de vida alegre e militante. Viveram dias e noites incríveis que jamais esquecerão.

Batizado de 15M, Democracia Real Já! ou #spanishrevolution, o movimento reúne um espectro vasto de insatisfeitos com o estado das coisas: precarização do trabalho, endividamento generalizado, frustração com o governo, falta de perspectivas, incapacidade de a política absorver as demandas da geração. Da rede Juventude sem Futuro a organizações de excluídos do trabalho, de populações endividadas no sistema financeiro a contestadores do neo-neoliberalismo, estudantes e aposentados, midialivristas e hackers. Na Espanha, clamou-se por democracia real já contra a surdez, a insuficiência e a paralisia de todo o arranjo político. A agitação se alastrou por centenas de cidades pela Europa, com protestos inclusive no Brasil, e promete disseminar-se ainda mais nas próximas semanas e meses.

Não se trata de uma explosão espontânea e sem sentido. A rede de contatos e a circulação de discursos vêm proliferando há meses, em encontros e coletivos, nas redes sociais e novas mídias. O 15M foi arquitetado e concretizado sem um centro nítido, a partir de muitas direções, muitos nós e rótulos, com um discurso heterogêneo. Obra aberta, inacabada, constituinte. Que não é, como o acusam, vago ou inconsistente. Como poderia sê-lo quando, de fato, movimentou multidões?, embasbacando partidos e instituições, entusiasmando pessoas numa luta global?

Na medida em que o enxameamento vai dando certo e se chocando com o real, constroem-se novas narrativas e pautas, numa dinâmica expansiva que seduz mais e mais gente. No processo, já se consolidou uma convergência de demandas mínimas.

Num contexto maior, o 15M continua as revoluções árabes. Cada manifestante tem dentro de si uma Praça Tahrir. Traz consigo a percepção alterada que, com efeito, pode-se mudar um mundo que antes parecia superpoderoso e invencível. A geração perdeu o pudor. A revolução foi resgatada dos livros de história, de volta à conversa cotidiana, não mais demodê. Quem está acuado, agora, é o poder constituído, temeroso diante dos rastros de pólvora. Esses bárbaros que surgem do nada e somem em lugar algum, inebriados de aventura.

Decepcionante ouvir de pessoas de percepção mais à esquerda que, no frigir dos ovos, esses movimentos nada significariam. Que lhes faltam uma visão de longo prazo e um projeto de novo estado. Que seriam virtuais e liquefeitos…

pós-modernos. Não e não e não. Pois significam tudo. Pois são o que de mais real e mais verdadeiro se pode vivenciar hoje na política. Sua dinâmica atravessa o estado e não tem como ser redimensionada na lógica da representação. Porque a recusa; desertando da melancolia das eleições, dos rituais do estado, da mera disputa por aparelhos. Não está repercutindo em mudanças constitucionais ou institucionais? ora, precisamente esta a potência do movimento. Não se deixar capturar pela representação em crise. Isso ambicionam os partidos ideologicamente pastosos da Espanha. A inovação está no modo de organizar, de produzir formas de vida, de viver, de reinventar a cidade, de contagiar muitos mundo afora.

Como escreveu Cézar Migliorin em seu blogue, menos “perguntar o que querem os manifestantes, mas apenas perceber a evidência do desejo”. A experiência de ruas e praças, esse copioso amor revolucionário, vale por cem livros vermelhos e dez mil aulas universitárias.

Do ponto de vista regional, contribuiu o fracasso do governo José Luis Rodríguez Zapatero, do partido socialista (PSOE). Fora eleito graças a uma dinâmica que não está distante dessa militância em enxame. Em março de 2004, depois dos atentados contra os trens em Madri, o então premiê José María Aznar, do partido progressista (PP), usou a máquina estatal para fabricar um conto do vigário. Insinuou que a culpa dos ataques fosse do movimento de libertação nacional basca (ETA), escondendo indícios, já a sua disposição, de que se tratava de ação da Alcaida. Graças à comunicação em rede via celular, multidões tomaram as ruas para desmascarar o engodo. Como consequência, Aznar foi vencido cabalmente no voto, numa virada histórica, contra as previsões das pesquisas.

O governo Zapatero, portanto, também foi cria de um novo tipo de ativismo, propiciado pela velocidade e articulação das redes. Mas o premiê socialista não soube reconhecer essa nova composição das bases, o modo 2.0 de fazer política. O seu governo reduziu-se a mais um repeteco da velha política da representação, incapaz de dar um passo significativo para mudar o essencial. Sua rotunda derrota ontem confirmou a incompreensão diante de um cenário mutante.

O fiasco definitivo de Zapatero é o mesmo que pode acontecer, muito em breve, com outros governos ditos “progressistas”. Estou falando dos governos Obama e Dilma. Dois candidatos da esquerda carregados ao poder em meio a campanhas eleitorais inovadoras, no modo 2.0. Tristemente, os dois se descolam dessas bases para praticar o mais do mesmo. Um ao assumir o discurso surrado dos senhores da guerra, contra o que tanto combateu na campanha. Não admiram assim as recentes ocupações de Wisconsin, por fora da lógica da representação, tentando realizar elas mesmas o que Obama não tem conseguido no poder. A outra, Dilma tem falhado em reconhecer as forças vivas da cultura como mundo, que integrava o projeto de democracia do governo Lula. Diante da guinada reacionária do ministério encabeçado por Ana de Hollanda e protegido pela presidenta, o governo se distancia dessas dinâmicas produtivas, das novas mídias. Talvez, estas venham a fazer muita falta nos momentos de conflito com a classe dominante e sua imprensa golpista.

Hoje, na política do mundo, existe um presente que já está morto e um futuro que já nasceu e se constitui sem parar. Tenho a impressão que basta um toque de despertador para, de supetão, sermos arremessados nesse futuro já existente. Eis o devir revolucionário. Nas revoluções árabes, tudo aconteceu quando um camelô teve a barraquinha apreendida por uma operação choque de ordem, e quando um internauta foi preso e chorou diante do mundo. Na Espanha e a partir dela, está acontecendo. Nada impede aconteça aqui no Sul, onde o abismo entre o presente morto e o futuro vivo aumenta todos os dias.

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PS. Compartilho com o leitor a bela reflexão de Moysés Pinto Neto, do Ingovernável, que tem tudo a ver com o momento:
“(…) Com o tempo, viramos cínicos. Passamos a rir da esperança. Abrimos mão de ideais abrangentes para ficarmos com nosso pequeno quinhão do todo, afinal, é inevitável. Vestimos gravatas. Aprendemos a falar de direitos humanos e um vocabulário neutro que nos garante uma isenção de “polêmicas ideológicas” tão forte que se tornou, no mesmo passo, anódino. Aprendemos a escrever textos sem cheiro. Não desagradamos ninguém; estamos no centro. Murchamos. Nos tornamos bons para todos. Aprendemos a falar sem ofender os fascistas. Falamos para fascistas, tentando convencer fascistas. E perdemos, com isso, tudo. Nos tornamos coniventes com os crápulas. (…)” – Ensaio completo aqui (texto imperdível e apaixonante).


Fonte: Quadrado dos Loucos

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