PICICA: O desflorestamento proporcionado pelo novo Código Florestal é uma gentileza do PC do B e dos ruralistas brasileiros. O PC do B perdeu a credibilidade. Resta saber se o Senado vai pelo mesmo camininho.
Código Desflorestal
Tempos atrás os mesmos ruralistas batiam o pé contra a atualização (prevista na Constituição) dos índices de produtividade da agricultura brasileira. Mas ontem à noite garantiram, sem atualização necessária, a ampliação do desflorestamento pelo novo Código Florestal, sob uma incrível, espetacular aliança entre o Partido Comunista do Brasil e os ruralistas.
O recado é bem nítido: não ao aumento da produtividade em terras dadas, mas sim ao aumento da exploração territorial, sem colocar a produtividade em jogo. Ou melhor, tenta-se passar a idéia de que a produtividade só aumenta com aumento de território, e por isso muitas facetas do desmatamento devem receber anistia.
Os "produtores" - como eles se denominam, englobando falaciosamente os produtores contrários - curiosamente batem o pé contra a produtividade. Propriedade privada? Apenas se fugirmos a qualquer discussão liberal e encararmos o termo "privado" sob o discurso da capitania, do patrão, do Coroné (como dizia Luiz Gonzaga).
E não obstante quem produz alimento são os agricultores familiares, não os ruralistas (todos os jornais mostraram eles se dizendo produtores de alimentos).
Onde tal ruralismo predomina, certamente abundam os lucros dos agronegociadores. Mas faltam empregos nas pequenas cidades e elas esvaziam, como revelou o censo de 2010 em muitos lugares. Muitos cruzaram a redução populacional com a falta de emprego, mas curiosamente não cruzaram essa falta com as políticas unilaterais praticadas desde décadas.
A maior riqueza do futuro é um empecilho ao Coroné.
Assassinato de extrativista é coisa só pra gringo ver, como já demonstrava o caso de Chico Mendes. Antes de ser morto ele procurou jornalistas locais, mas sua morte ganhou notoriedade devido à visibilidade internacional. Nos últimos dias, a incrível confluência stalinista-ruralista tentou blindar a votação contra o argumento da visibilidade internacional, denunciando um grande complô conspiratório das ONG’s contra o "produtor" brasileiro. Assim, ontem foi possível assassinar extrativistas (inclusive com requintes de crueldade, orelhas cortadas e afins), sem que truculência tão simbólica recebesse maior atenção da imprensa.
***
Carta Aberta sobre o “Novo” Código Florestal
Considerando a existência de um movimento político para a alteração do Código Florestal Brasileiro e que este movimento não está assentado em uma base científica sólida, nem respaldado por uma ampla discussão participativa dos diferentes setores da sociedade, o Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina, reunido no dia 13 de maio de 2011, apresenta por meio desta algumas posições importantes relacionadas à discussão de um eventual “novo” código florestal:
- Reiteramos e manifestamos total concordância aos termos apresentados pelos cientistas ligados ao Programa Biota-FAPESP[1] em vários meios de divulgação durante o mês de julho de 2010, destacando os seguintes pontos e/ou citações:
- “A alteração proposta reduzirá a restauração obrigatória de vegetação nativa ilegalmente desmatada desde 1965, fazendo com que as emissões de dióxido de carbono possam aumentar substancialmente e, a partir de simples análises da relação espécies-área, é possível prever a extinção de mais de 100 mil espécies, uma perda massiva que invalidará qualquer comprometimento com a conservação da biodiversidade”.
- “A comunidade científica foi amplamente ignorada durante a elaboração do relatório de revisão do Código Florestal”.
- “A reformulação do código baseia-se na premissa errônea de que não há mais área disponível para expansão da agricultura brasileira e não foi feita sob o escudo de uma sólida base científica. Pelo contrário, a maioria da comunidade científica sequer foi consultada e a reformulação ajustou-se muito mais aos interesses unilaterais de certos setores econômicos”.
- “Entre as conseqüências da aprovação da proposta de reformulação, a carta menciona um ‘aumento considerável na substituição de áreas naturais por áreas agrícolas em locais extremamente sensíveis’, a ‘aceleração da ocupação de áreas de risco em inúmeras cidades brasileiras’, o estímulo à ‘impunidade devido à ampla anistia proposta àqueles que cometeram crimes ambientais até passado recente’, um ‘decréscimo acentuado da biodiversidade, o aumento das emissões de carbono para a atmosfera’ e o ‘aumento das perdas de solo por erosão com conseqüente assoreamento de corpos hídricos” e comprometimento da produção primária costeira.
- “Se houvesse um movimento para aprimorar o atual Código Florestal, teria que envolver o sentido mais amplo de um Código de Biodiversidades, levando em conta o complexo mosaico vegetacional, bem como os demais organismos associados, do território brasileiro. As novas exigências do Código Florestal proposto têm um caráter de liberação excessiva e abusiva. Enquanto o mundo inteiro repugna para a diminuição radical de emissão de CO2, o projeto de reforma proposto na Câmara Federal de revisão do Código Florestal defende um processo que significará uma onda de desmatamento e emissões incontroláveis de gás carbônico”.
- “Se a nova proposta for aprovada, a faixa mínima de proteção nas beiras de rios será extremamente reduzida. Topos de morro e áreas acima de 1.800 metros deixam de ser protegidas. As demais áreas, mesmo formalmente protegidas, poderão ser ocupadas por plantações, pastagens ou construções, caso tenham sido desmatadas até 2008 e forem consideradas ‘áreas consolidadas’. As principais candidatas a se tornarem áreas consolidadas são justamente as áreas irregularmente ocupadas, que sofrem com enchentes, deslizamentos, assoreamento e seca de rios. Como não haverá recuperação e as ocupações permanecerão, essas áreas serão condenadas a conviver eternamente com esses problemas, perpetuando tragédias como as de Angra dos Reis, do Vale do Itajaí, Alagoas e Rio de Janeiro (região de Nova Friburgo).
“Como mais de 90% dos imóveis rurais têm até quatro módulos fiscais, boa parte deles concentrados no Sul e Sudeste, haverá grandes áreas do país em que simplesmente não haverá mais vegetação nativa, pois são essas áreas também que abrigam o maior número de APPs com ocupação ‘consolidada’. Há ainda um grande risco de que propriedades maiores sejam artificialmente divididas nos cartórios para serem isentas da obrigação de recuperação – algo que já está ocorrendo, uma vez que não é eficiente a fiscalização”. Adendo nosso: Essa ineficiência de fiscalização é reconhecida nos próprios termos e argumentos da proposta de alteração, ao apontar a inaplicabilidade do Código Florestal e a não inibição de muitos crimes ambientais ao longo de décadas. Numa nação séria e eticamente estruturada, não se pode admitir sua revogação ou modificação, justificada pelo fato de uma lei não ser cumprida por falta de disposição em fiscalizar seu cumprimento, sob o risco de consolidarmos crimes e termos leis descartáveis.
“O principal erro deste ‘código novo’ é que ele não considera as áreas que foram disponibilizadas para a agricultura historicamente, mas que são de baixa aptidão agrícola e por isso são subutilizadas hoje, sem papel ambiental e com baixo rendimento econômico, como os pastos em alta declividade”.
Em relação à anistia proposta para as APPs irregulares: “Quem degradou as APPs não vai precisar recuperar e, pior, poderá continuar usando a área desmatada. Quem preservou vai ser punido”. Adendo nosso: Além de todo o dano ecológico, e consequentemente, econômico e social, que pode advir se essa alteração vigorar há um legado negativo, triste e vergonhoso: esse movimento terá conseguido destruir mais de 20 anos de conscientização no campo, desde que a redemocratização do país fez a consciência ecológica e os conceitos de sustentabilidade saírem do claustro da repressão. Um trabalho onde professores, cientistas, pastorais, extensionistas agronômicos e muitos outros cidadãos de bem dedicaram suas vidas será desprezado por interesses tão equivocados quanto nocivos.
“Um inventário produzido pelo Programa Biota-FAPESP em 2010 mostra que mais de 70% dos remanescentes florestais no Brasil estão fora das Unidades de Conservação e se localizam em propriedades privadas. Se não tivermos mecanismos legais para a conservação dessas áreas – como a RL e APP do código atual – elas vão ser degradadas depois da moratória de cinco anos determinada na proposta de alteração do Código”.
“A preservação de mosaicos de vegetação, florestas ripárias – ou matas ciliares – e de áreas alagadas, bem como aos demais organismos associados, é fundamental para a manutenção da qualidade da água de rios, lagos e represas. Essa vegetação garante a capacidade dos sistemas para regular o transporte de nutrientes e o escoamento de metais e poluentes. Esses processos atingem tanto as águas superficiais como as subterrâneas. O processo de recarga dos aqüíferos também depende muito da cobertura vegetal. A vegetação retém a água que, posteriormente, é absorvida pelos corpos d’água subterrâneos. Com o desmatamento, essa água escoa e os aqüíferos secam. A delimitação de faixas marginais de mata é sempre artificial, seja qual for a metragem. Não é possível estabelecer de forma geral uma área de preservação de 15 metros dos dois lados do leito dos rios. Seria preciso delimitar caso a caso, porque a necessidade de preservação varia de acordo com a ecologia do entorno e os padrões de inundação do sistema. A delimitação deve ter caráter ecológico e não se basear em metragens. A modificação na legislação vai na contramão das necessidades de preservação ambiental. Seria preciso preservar o máximo possível as bacias hidrográficas. Mas o projeto prevê até mesmo o cultivo em várzeas, o que é um desastre completo. Enquanto existem movimentos mundiais para a preservação de várzeas, nós corremos o risco de ir na contramão. Com o impacto que provocará nos corpos d’água, a aprovação da modificação no Código Florestal prejudicará gravemente o próprio agronegócio. Se não mantivermos as áreas de proteção, a qualidade da água será afetada e não haverá disponibilidade de recursos hídricos para o agronegócio. Fazer um projeto de expansão do agronegócio às custas da biodiversidade é uma atitude suicida”.
“O Código Florestal, criado em 1965, de fato tem pontos que necessitam de revisão, em especial no que diz respeito aos pequenos agricultores, cujas propriedades eventualmente são pequenas demais para comportar a presença das APPs e a RL. Entretanto, qualquer que seja a reformulação, ela deve ter uma base científica sólida. Essa foi a grande falha da modificação proposta, que teve o objetivo político específico de destruir ‘empecilhos’ ambientais à expansão da fronteira agrícola a qualquer custo. O argumento central da proposta de reformulação foi construído a partir de um ‘relatório cientificamente incorreto encomendado diretamente pelo Ministério da Agricultura a um pesquisador ligado a uma instituição brasileira de pesquisa’. ‘O relatório concluía que não haveria área suficiente para a expansão agrícola no país, caso a legislação ambiental vigente fosse cumprida ao pé da letra. O documento, no entanto, foi produzido de forma tão errônea que alguns pesquisadores envolvidos em sua elaboração se negaram a assiná-lo’. Um estudo coordenado por Gerd Sparovek, pesquisador da ESALQ-USP, que usou sensoriamento remoto para concluir que a área cultivada no Brasil poderá ser praticamente dobrada se as áreas hoje ocupadas com pecuária de baixa produtividade forem realocadas para o cultivo agrícola. ‘Melhorando a eficiência da pecuária em outras áreas por meio de técnicas já conhecidas, não há qualquer necessidade de avançar sobre a vegetação natural protegida pelo Código Florestal atual’. As pastagens ocupam hoje cerca de 200 milhões de hectares, com aproximadamente 190 milhões de cabeças de gado. ‘Caso dobremos a lotação de uma para duas cabeças de gado, liberamos cerca de 100 milhões de hectares. A área ocupada pelas três maiores culturas – soja, milho e cana – cobrem uma área aproximada de 45 milhões de hectares. Portanto, com medidas simples de manejo poderemos devolver para a agricultura uma área equivalente ao dobro ocupado pelas três maiores culturas brasileiras’. ‘O mais paradoxal é que as mudanças beneficiam muito mais os proprietários de grandes extensões de terra do que pequenos produtores’. Se houvesse preocupação real com a produção de alimentos, o governo deveria ampliar e facilitar o crédito aos pequenos produtores, investir em infraestrutura – como estradas e armazenamento – para auxiliar o escoamento desses produtos e, principalmente, investir maciçamente em pesquisas que beneficiassem essas culturas visando aumentar sua produtividade”.
Além de reiterar e grifar os pontos acima, ressaltamos ainda o seguinte:
Debate científico não significa contratar cientistas para dar pareceres convenientes e alinhados com certos interesses. É algo muito maior, mais ético e mais socialmente engajado. Trata-se de respeitar os valores nacionais, nos quais o país investe, ainda que pouco, para que produzam conhecimento. Desprezar esse conhecimento é uma agressão à ética, à ciência e à soberania nacional.
Não é com a revogação ou abrandamento de leis cientificamente embasadas que o Brasil seguirá um rumo sustentável. Pelo contrário, antes de revogar leis o próprio Estado deveria investir-se de forma mais contundente na consolidação dessas leis. Há anos, nesse país, a sociedade e a imprensa ressaltam que o desrespeito à legislação e a impunidade associada a esse desrespeito são os temas que mais problemas e prejuízos trazem ao verdadeiro desenvolvimento da nação brasileira.
Segundo dados oficiais, em pelo menos 85% das áreas catastroficamente afetadas pela enchente de 2008 no Vale do Itajaí – SC, com desabamentos e soterramentos e mais de 100 mortes, havia alterações ambientais associadas ao desrespeito à legislação ambiental, em especial ao Código Florestal. Ao mesmo tempo, Santa Catarina foi o estado que mais devastou suas florestas no país. Ainda assim, por mais contraditório que seja, logo após as catástrofes de 2008 em Santa Catarina, o Governo desse Estado apresentou um código ambiental estadual, que inconstitucionalmente, invalidava o Código Florestal Brasileiro e inaugurava o movimento de desmantelamento da legislação ambiental brasileira, contestado inclusive pelo Governo Federal e pelo Congresso Nacional. Como na atual proposta de alterações ao Código Florestal, naquela oportunidade, a comunidade científica de Santa Catarina foi amplamente desprezada. A resposta governamental oficial diante da catástrofe ambiental foi incentivar ainda mais a devastação ambiental, formalizando para o país e o mundo um dos piores exemplos de ações governamentais no que se refere ao desenvolvimento sustentável.
Existem excelentes modelos e exemplos de sucesso no mundo, como o que foi feito na região de Nova Iorque. Estudos científicos sérios concluíram que as bacias hidrográficas do entorno da metrópole deveriam ser preservadas e recuperadas para que se garantisse o abastecimento de água em longo prazo para a mesma. O mesmo estudo concluiu que em outros setores das bacias poderiam ser flexibilizadas condicionalmente as áreas de preservação. Através de planejamento e criação de políticas de Estado (e não simplesmente de governos), os pequenos agricultores que tivessem prejuízos comprovados com a destinação de áreas de suas propriedades à preservação permanente, seriam compensados economicamente, sendo que a verba para essa compensação viria do pagamento pelo uso da água na cidade. A própria Política Nacional de Recursos Hídricos, prevê e estimula mecanismos desse tipo no Brasil, mas sua aplicação, por razões políticas e interesses econômicos de grupos restritos não é estimulada.
A comunidade científica de Santa Catarina, em especial aquelas relacionadas ao meio-ambiente, não pode ser desconsiderada quanto a sua competência e dignidade uma vez mais, como tem ocorrido quanto aos atos ou empreendimentos – irresponsáveis sobre o meio-ambiente – impostos como fatos consumados. O país investiu na formação desses cientistas que têm um papel social fundamental: mostrar à sociedade, com imparcialidade e argumentação racional, que certos atos são negativos ao verdadeiro e integral desenvolvimento do país.
A mudança do Código Florestal Brasileiro, especialmente da maneira como está sendo feita, é um ato ético lesivo tanto à democracia, à estabilidade ambiental, à manutenção dos recursos hídricos e da biodiversidade, bem como à manutenção dos serviços ambientais – essenciais à estabilidade econômica e social e dignidade e à soberania nacional. Por essas razões, tal movimento tão pernicioso deve ser contido. Afinal qual será a herança real e de longo prazo que nossa geração deixará as demais?
Florianópolis, 13 de maio de 2011 [fonte, via Idelber Avelar]
[1] Jean Paul Metzger (Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo – USP); Thomas Lewinsohn (Depto. de Biologia Animal da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP); Luciano Verdade e Luiz Antonio Martinelli (Centro de Energia Nuclear na Agricultura – CENA – USP); Ricardo Ribeiro Rodrigues (Depto. de Ciências Biológicas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz – ESALQ-USP); Carlos Alfredo Joly (Instituto de Biologia – UNICAMP); Jacob Palis (Academia Brasileira de Ciências – ABC); Marco Antonio Raupp (Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência – SBPC); Aziz Nacib Ab’Saber (professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados – IEA-USP); Ricardo Ribeiro Rodrigues (ESALQ – USP); José Galizia Tundisi (Instituto Internacional de Ecologia – São Carlos – SP)
Considerando a existência de um movimento político para a alteração do Código Florestal Brasileiro e que este movimento não está assentado em uma base científica sólida, nem respaldado por uma ampla discussão participativa dos diferentes setores da sociedade, o Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina, reunido no dia 13 de maio de 2011, apresenta por meio desta algumas posições importantes relacionadas à discussão de um eventual “novo” código florestal:
- Reiteramos e manifestamos total concordância aos termos apresentados pelos cientistas ligados ao Programa Biota-FAPESP[1] em vários meios de divulgação durante o mês de julho de 2010, destacando os seguintes pontos e/ou citações:
- “A alteração proposta reduzirá a restauração obrigatória de vegetação nativa ilegalmente desmatada desde 1965, fazendo com que as emissões de dióxido de carbono possam aumentar substancialmente e, a partir de simples análises da relação espécies-área, é possível prever a extinção de mais de 100 mil espécies, uma perda massiva que invalidará qualquer comprometimento com a conservação da biodiversidade”.
- “A comunidade científica foi amplamente ignorada durante a elaboração do relatório de revisão do Código Florestal”.
- “A reformulação do código baseia-se na premissa errônea de que não há mais área disponível para expansão da agricultura brasileira e não foi feita sob o escudo de uma sólida base científica. Pelo contrário, a maioria da comunidade científica sequer foi consultada e a reformulação ajustou-se muito mais aos interesses unilaterais de certos setores econômicos”.
- “Entre as conseqüências da aprovação da proposta de reformulação, a carta menciona um ‘aumento considerável na substituição de áreas naturais por áreas agrícolas em locais extremamente sensíveis’, a ‘aceleração da ocupação de áreas de risco em inúmeras cidades brasileiras’, o estímulo à ‘impunidade devido à ampla anistia proposta àqueles que cometeram crimes ambientais até passado recente’, um ‘decréscimo acentuado da biodiversidade, o aumento das emissões de carbono para a atmosfera’ e o ‘aumento das perdas de solo por erosão com conseqüente assoreamento de corpos hídricos” e comprometimento da produção primária costeira.
- “Se houvesse um movimento para aprimorar o atual Código Florestal, teria que envolver o sentido mais amplo de um Código de Biodiversidades, levando em conta o complexo mosaico vegetacional, bem como os demais organismos associados, do território brasileiro. As novas exigências do Código Florestal proposto têm um caráter de liberação excessiva e abusiva. Enquanto o mundo inteiro repugna para a diminuição radical de emissão de CO2, o projeto de reforma proposto na Câmara Federal de revisão do Código Florestal defende um processo que significará uma onda de desmatamento e emissões incontroláveis de gás carbônico”.
- “Se a nova proposta for aprovada, a faixa mínima de proteção nas beiras de rios será extremamente reduzida. Topos de morro e áreas acima de 1.800 metros deixam de ser protegidas. As demais áreas, mesmo formalmente protegidas, poderão ser ocupadas por plantações, pastagens ou construções, caso tenham sido desmatadas até 2008 e forem consideradas ‘áreas consolidadas’. As principais candidatas a se tornarem áreas consolidadas são justamente as áreas irregularmente ocupadas, que sofrem com enchentes, deslizamentos, assoreamento e seca de rios. Como não haverá recuperação e as ocupações permanecerão, essas áreas serão condenadas a conviver eternamente com esses problemas, perpetuando tragédias como as de Angra dos Reis, do Vale do Itajaí, Alagoas e Rio de Janeiro (região de Nova Friburgo).
“Como mais de 90% dos imóveis rurais têm até quatro módulos fiscais, boa parte deles concentrados no Sul e Sudeste, haverá grandes áreas do país em que simplesmente não haverá mais vegetação nativa, pois são essas áreas também que abrigam o maior número de APPs com ocupação ‘consolidada’. Há ainda um grande risco de que propriedades maiores sejam artificialmente divididas nos cartórios para serem isentas da obrigação de recuperação – algo que já está ocorrendo, uma vez que não é eficiente a fiscalização”. Adendo nosso: Essa ineficiência de fiscalização é reconhecida nos próprios termos e argumentos da proposta de alteração, ao apontar a inaplicabilidade do Código Florestal e a não inibição de muitos crimes ambientais ao longo de décadas. Numa nação séria e eticamente estruturada, não se pode admitir sua revogação ou modificação, justificada pelo fato de uma lei não ser cumprida por falta de disposição em fiscalizar seu cumprimento, sob o risco de consolidarmos crimes e termos leis descartáveis.
“O principal erro deste ‘código novo’ é que ele não considera as áreas que foram disponibilizadas para a agricultura historicamente, mas que são de baixa aptidão agrícola e por isso são subutilizadas hoje, sem papel ambiental e com baixo rendimento econômico, como os pastos em alta declividade”.
Em relação à anistia proposta para as APPs irregulares: “Quem degradou as APPs não vai precisar recuperar e, pior, poderá continuar usando a área desmatada. Quem preservou vai ser punido”. Adendo nosso: Além de todo o dano ecológico, e consequentemente, econômico e social, que pode advir se essa alteração vigorar há um legado negativo, triste e vergonhoso: esse movimento terá conseguido destruir mais de 20 anos de conscientização no campo, desde que a redemocratização do país fez a consciência ecológica e os conceitos de sustentabilidade saírem do claustro da repressão. Um trabalho onde professores, cientistas, pastorais, extensionistas agronômicos e muitos outros cidadãos de bem dedicaram suas vidas será desprezado por interesses tão equivocados quanto nocivos.
“Um inventário produzido pelo Programa Biota-FAPESP em 2010 mostra que mais de 70% dos remanescentes florestais no Brasil estão fora das Unidades de Conservação e se localizam em propriedades privadas. Se não tivermos mecanismos legais para a conservação dessas áreas – como a RL e APP do código atual – elas vão ser degradadas depois da moratória de cinco anos determinada na proposta de alteração do Código”.
“A preservação de mosaicos de vegetação, florestas ripárias – ou matas ciliares – e de áreas alagadas, bem como aos demais organismos associados, é fundamental para a manutenção da qualidade da água de rios, lagos e represas. Essa vegetação garante a capacidade dos sistemas para regular o transporte de nutrientes e o escoamento de metais e poluentes. Esses processos atingem tanto as águas superficiais como as subterrâneas. O processo de recarga dos aqüíferos também depende muito da cobertura vegetal. A vegetação retém a água que, posteriormente, é absorvida pelos corpos d’água subterrâneos. Com o desmatamento, essa água escoa e os aqüíferos secam. A delimitação de faixas marginais de mata é sempre artificial, seja qual for a metragem. Não é possível estabelecer de forma geral uma área de preservação de 15 metros dos dois lados do leito dos rios. Seria preciso delimitar caso a caso, porque a necessidade de preservação varia de acordo com a ecologia do entorno e os padrões de inundação do sistema. A delimitação deve ter caráter ecológico e não se basear em metragens. A modificação na legislação vai na contramão das necessidades de preservação ambiental. Seria preciso preservar o máximo possível as bacias hidrográficas. Mas o projeto prevê até mesmo o cultivo em várzeas, o que é um desastre completo. Enquanto existem movimentos mundiais para a preservação de várzeas, nós corremos o risco de ir na contramão. Com o impacto que provocará nos corpos d’água, a aprovação da modificação no Código Florestal prejudicará gravemente o próprio agronegócio. Se não mantivermos as áreas de proteção, a qualidade da água será afetada e não haverá disponibilidade de recursos hídricos para o agronegócio. Fazer um projeto de expansão do agronegócio às custas da biodiversidade é uma atitude suicida”.
“O Código Florestal, criado em 1965, de fato tem pontos que necessitam de revisão, em especial no que diz respeito aos pequenos agricultores, cujas propriedades eventualmente são pequenas demais para comportar a presença das APPs e a RL. Entretanto, qualquer que seja a reformulação, ela deve ter uma base científica sólida. Essa foi a grande falha da modificação proposta, que teve o objetivo político específico de destruir ‘empecilhos’ ambientais à expansão da fronteira agrícola a qualquer custo. O argumento central da proposta de reformulação foi construído a partir de um ‘relatório cientificamente incorreto encomendado diretamente pelo Ministério da Agricultura a um pesquisador ligado a uma instituição brasileira de pesquisa’. ‘O relatório concluía que não haveria área suficiente para a expansão agrícola no país, caso a legislação ambiental vigente fosse cumprida ao pé da letra. O documento, no entanto, foi produzido de forma tão errônea que alguns pesquisadores envolvidos em sua elaboração se negaram a assiná-lo’. Um estudo coordenado por Gerd Sparovek, pesquisador da ESALQ-USP, que usou sensoriamento remoto para concluir que a área cultivada no Brasil poderá ser praticamente dobrada se as áreas hoje ocupadas com pecuária de baixa produtividade forem realocadas para o cultivo agrícola. ‘Melhorando a eficiência da pecuária em outras áreas por meio de técnicas já conhecidas, não há qualquer necessidade de avançar sobre a vegetação natural protegida pelo Código Florestal atual’. As pastagens ocupam hoje cerca de 200 milhões de hectares, com aproximadamente 190 milhões de cabeças de gado. ‘Caso dobremos a lotação de uma para duas cabeças de gado, liberamos cerca de 100 milhões de hectares. A área ocupada pelas três maiores culturas – soja, milho e cana – cobrem uma área aproximada de 45 milhões de hectares. Portanto, com medidas simples de manejo poderemos devolver para a agricultura uma área equivalente ao dobro ocupado pelas três maiores culturas brasileiras’. ‘O mais paradoxal é que as mudanças beneficiam muito mais os proprietários de grandes extensões de terra do que pequenos produtores’. Se houvesse preocupação real com a produção de alimentos, o governo deveria ampliar e facilitar o crédito aos pequenos produtores, investir em infraestrutura – como estradas e armazenamento – para auxiliar o escoamento desses produtos e, principalmente, investir maciçamente em pesquisas que beneficiassem essas culturas visando aumentar sua produtividade”.
Além de reiterar e grifar os pontos acima, ressaltamos ainda o seguinte:
Debate científico não significa contratar cientistas para dar pareceres convenientes e alinhados com certos interesses. É algo muito maior, mais ético e mais socialmente engajado. Trata-se de respeitar os valores nacionais, nos quais o país investe, ainda que pouco, para que produzam conhecimento. Desprezar esse conhecimento é uma agressão à ética, à ciência e à soberania nacional.
Não é com a revogação ou abrandamento de leis cientificamente embasadas que o Brasil seguirá um rumo sustentável. Pelo contrário, antes de revogar leis o próprio Estado deveria investir-se de forma mais contundente na consolidação dessas leis. Há anos, nesse país, a sociedade e a imprensa ressaltam que o desrespeito à legislação e a impunidade associada a esse desrespeito são os temas que mais problemas e prejuízos trazem ao verdadeiro desenvolvimento da nação brasileira.
Segundo dados oficiais, em pelo menos 85% das áreas catastroficamente afetadas pela enchente de 2008 no Vale do Itajaí – SC, com desabamentos e soterramentos e mais de 100 mortes, havia alterações ambientais associadas ao desrespeito à legislação ambiental, em especial ao Código Florestal. Ao mesmo tempo, Santa Catarina foi o estado que mais devastou suas florestas no país. Ainda assim, por mais contraditório que seja, logo após as catástrofes de 2008 em Santa Catarina, o Governo desse Estado apresentou um código ambiental estadual, que inconstitucionalmente, invalidava o Código Florestal Brasileiro e inaugurava o movimento de desmantelamento da legislação ambiental brasileira, contestado inclusive pelo Governo Federal e pelo Congresso Nacional. Como na atual proposta de alterações ao Código Florestal, naquela oportunidade, a comunidade científica de Santa Catarina foi amplamente desprezada. A resposta governamental oficial diante da catástrofe ambiental foi incentivar ainda mais a devastação ambiental, formalizando para o país e o mundo um dos piores exemplos de ações governamentais no que se refere ao desenvolvimento sustentável.
Existem excelentes modelos e exemplos de sucesso no mundo, como o que foi feito na região de Nova Iorque. Estudos científicos sérios concluíram que as bacias hidrográficas do entorno da metrópole deveriam ser preservadas e recuperadas para que se garantisse o abastecimento de água em longo prazo para a mesma. O mesmo estudo concluiu que em outros setores das bacias poderiam ser flexibilizadas condicionalmente as áreas de preservação. Através de planejamento e criação de políticas de Estado (e não simplesmente de governos), os pequenos agricultores que tivessem prejuízos comprovados com a destinação de áreas de suas propriedades à preservação permanente, seriam compensados economicamente, sendo que a verba para essa compensação viria do pagamento pelo uso da água na cidade. A própria Política Nacional de Recursos Hídricos, prevê e estimula mecanismos desse tipo no Brasil, mas sua aplicação, por razões políticas e interesses econômicos de grupos restritos não é estimulada.
A comunidade científica de Santa Catarina, em especial aquelas relacionadas ao meio-ambiente, não pode ser desconsiderada quanto a sua competência e dignidade uma vez mais, como tem ocorrido quanto aos atos ou empreendimentos – irresponsáveis sobre o meio-ambiente – impostos como fatos consumados. O país investiu na formação desses cientistas que têm um papel social fundamental: mostrar à sociedade, com imparcialidade e argumentação racional, que certos atos são negativos ao verdadeiro e integral desenvolvimento do país.
A mudança do Código Florestal Brasileiro, especialmente da maneira como está sendo feita, é um ato ético lesivo tanto à democracia, à estabilidade ambiental, à manutenção dos recursos hídricos e da biodiversidade, bem como à manutenção dos serviços ambientais – essenciais à estabilidade econômica e social e dignidade e à soberania nacional. Por essas razões, tal movimento tão pernicioso deve ser contido. Afinal qual será a herança real e de longo prazo que nossa geração deixará as demais?
Florianópolis, 13 de maio de 2011 [fonte, via Idelber Avelar]
[1] Jean Paul Metzger (Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo – USP); Thomas Lewinsohn (Depto. de Biologia Animal da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP); Luciano Verdade e Luiz Antonio Martinelli (Centro de Energia Nuclear na Agricultura – CENA – USP); Ricardo Ribeiro Rodrigues (Depto. de Ciências Biológicas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz – ESALQ-USP); Carlos Alfredo Joly (Instituto de Biologia – UNICAMP); Jacob Palis (Academia Brasileira de Ciências – ABC); Marco Antonio Raupp (Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência – SBPC); Aziz Nacib Ab’Saber (professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados – IEA-USP); Ricardo Ribeiro Rodrigues (ESALQ – USP); José Galizia Tundisi (Instituto Internacional de Ecologia – São Carlos – SP)
Fonte: Catatau
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