maio 30, 2011

A Multidão não sai das ruas na Espanha

PICICA: "“É necessária uma Revolução Ética. Temos posto o dinheiro acima do ser humano e temos que colocá-lo a nosso serviço. Somos pessoas, não produtos do mercado… Por tudo isso, estou indignado. Creio que posso mudar isso. Creio que posso ajudar. Sei que unidos podemos. Vens conosco. É teu direito”."

27M BCN REVOLUTION from Paco Ruiz on Vimeo.

Artigo de Manuel Castells, no periódico espanhol La Vanguardia, em 28/05/2011. Tradução: Boca do Mangue.

E, de repente, o som oco do discurso eleitoreiro se tornou insuportável. Em meio a uma crise incessante, 21% de desemprego, 45% de desemprego entre os jovens, cortes de vida para muitos e enormes lucros para poucos, impunidade para corruptos e privilégios para uma casta de intocáveis políticos, a saturação se fez rede. Pouco antes das eleições municipais de 22 de maio, nolesvotes.org tinha 700 mil usuários únicos, 154 blogs e 641 mil resultados no Google. Nesse ambiente de indignação, germinaram as idéias do manifesto Democracia Real Já, coletivo criado em Madrid que terminava dizendo: “É necessária uma Revolução Ética. Temos posto o dinheiro acima do ser humano e temos que colocá-lo a nosso serviço. Somos pessoas, não produtos do mercado… Por tudo isso, estou indignado. Creio que posso mudar isso. Creio que posso ajudar. Sei que unidos podemos. Vens conosco. É teu direito”. E no 15-M saíram dezenas de milhares, em Madrid, Barcelona e muitas outras cidades. Afinal, em Madrid, uns poucos pernoitaram na Porta do Sol e, no dia seguinte, outros em Barcelona na praça Catalunha. Falaram, fizeram barulho e tuyttaram em suas redes de amigos. Um dia depois eram centenas. Logo milhares. Quando os desalojaram da Porta do Sol, vieram muitos milhares mais. Tantos que quando o Conselho Eleitoral e o Constitucional declararam ilegal “pedir um voto responsável” na jornada de reflexão, a polícia não pôde impor isso. A dimensão do acampamento tornava isso inviável. Os acampamentos proliferaram na Espanha e estenderam pelo mundo. No dia 25, após as eleições acolhidas com total indiferença nessa sociedade emergente, embora assinalassem o colapso total do socialismo realmente existente, registravam-se 706 acampamentos no mapa global (www.thetechnoant.info/campmap/).
Seguem surgindo conforme cada localidade acrescenta seu protesto reivindicativo, pacífico e festivo nas redes tecidas entre o ciberespaço e o espaço urbano. A atenção midiática contribuiu para difundir um fenômeno que todos se apressavam em etiquetar, mas que poucos políticos se atreveram a condenar no momento. Não se tratava dos suspeitos habituais. Procedem de todos os rincões, condições, idades e grupos sociais. Olhem as fotos no Flickr (acampadabcn.org) para perceber a diversidade. Logo ficou claro que não havia líderes. Se alguém pretendia sê-lo, o acampamento desautorizava. Mesmo agradecendo os serviços prestados à Democracia Real Já, os acampados não aceitaram nenhuma sigla. Em Acampadabcn se decidiu que cada pessoa se representava a si mesma. Tudo se elabora em comissões temáticas e funcionais, múltiplas e autônomas, coordenadas por uma intercomissão cujos membros giram. As decisões que afetam a todos passam pela assembléia no final do dia. Debatem-se propostas,  organização e tática. Debates intensos, conduzidos com respeito, criando uma nova dinâmica gestual para evitar ruidosas expressões (volteam as mãos no ar da primavera quando dão o sim ou cruzam rudes os antebraços dos nãos). Proibidos os palavrões. Desaconselhadas as garrafas, rejeitada a droga, ainda que o tema esteja em debate. Controla-se todo indício de violência: nos primeiros dez dias não houve um só incidente. A não violência é um princípio básico assumido por todos, testada quando as autoridades estão cansadas de ser desautorizadas e empreendem a porretadas.
Passadas as eleições, o movimento se estendeu, concretizou-se e se aprofundou. Estendeu-se por outras cidades e se descentralizou por bairros, esboçando miniacampamentos que poderiam chegar até centros de trabalho. Concretizou-se com objetivos próprios de cada acampamento e decidiu sua organização e suas reivindicações. E se aprofundou mediante uma atenção crescente à elaboração programática de objetivos. No dia 25, o Acampamento Sol difundiu um documento sintetizando as propostas aprovadas pelas assembléias do dia 16: eliminar os privilégios da classe política; medidas contra o desemprego, incluindo a partilha de trabalho e a rejeição ao aumento da idade de aposentadoria enquanto haja desemprego juvenil; direito à moradia, incluída a desapropriação do estoque de moradias  não vendidas para colocá-las no mercado em regime de aluguel protegido; serviços públicos de qualidade, incluindo supressão de gastos inúteis de Administração, contratar pessoal de saúde e educação, transporte público barato e ecológico; controle dos bancos, constituindo um banco público sob controle social com aquelas entidades que quebram, devolvendo aos cofres públicos o capital público aportado; reforma fiscal, aumentando os impostos das grandes fortunas e dos bancos, e controlando a fraude fiscal e os movimentos de capitais; liberdades cidadãs e democracia participativa, começando pela abolição da lei Sinde, que limita a liberdade na internet; proteger a liberdade informação e o jornalismo de investigação; modificar a lei eleitoral para acabar com a discriminação política, incluindo a representação do voto nulo e branco; independência judicial; democracia interna nos partidos políticos; reduzir o gasto militar.
Cito esses objetivos para ressaltar o concreto e razoável que são, ainda que a utopia imediata de uma vida distinta também esteja presente em muitas mentes. Mas, o transformador é o processo mais que o produto. É a elaboração em comissões abertas e a decisão em assembléia. É uma nova política para sair da crise para um novo modo de vida construído coletivamente. Um processo lento porque, como diz um cartaz em Barcelona, “vamos lentamente porque vamos longe”. De modo que aqueles que minimizam os wikiacampamentos não entendem, todavia, sua profundidade. Poderão sair das praças, para voltar periodicamente a elas, mas não sairão das redes sociais e das mentes de quem participa. Já não estão sozinhos e perderam o medo. Porque descobriram novas formas de organização, participação e mobilização que ultrapassam as vias tradicionais, as quais uma parte da sociedade e a maioria dos jovens, desconfiam. Partidos e instituições terão que aprender a viver com essa sociedade civil emergente. Se não, irão se esvaziando por dentro conforme os cidadãos passem dos wikiacampamentos para essa democracia em rede, ainda por descobrir uma prática coletiva que tenha sua raiz em cada pessoa.

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