filiada à Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial
Nota do blog: O documento abaixo foi escrito quando respondia pela coordenação estadual de saúde mental (2003-2007). Representava a posição do Amazonas no I Fórum Amazônico de Saúde Mental, realizada em Belém-PA. Como desconheço se a carta entrou nos anais do fórum, resolvi publicá-lo em nome da preservação da nossa surrada memória e em homenagem à nova geração de estudantes do campo da saúde mental.
CARTA DO AMAZONAS
No Amazonas, a reforma psiquiátrica teve início em janeiro de 1980. Jovens psiquiatras abriram espaço no debate público para uma reivindicação incomum no campo da saúde mental: a cidadania do louco. Com isso, abriram o campo para novos desenhos de política de saúde mental, nem sempre bem sucedidos.
A política de saúde mental dos anos 80 inspirou-se na trajetória da psiquiatria democrática italiana, liderada por Franco Basaglia, que havia estado no Brasil um ano antes da denúncia de conluio entre violência contra portadores de transtorno mental e corrupção administrativa no interior do então Hospital Colônia "Eduardo Ribeiro”, resultando no afastamento dos corruptos da direção do manicômio.
O saudoso colega Silvério Tundis e seus companheiros criariam um novo período na história da psiquiatria amazonense, no contexto daqueles anos de luta pela redemocratização do país.
Na busca de práticas mais ricas de sentido, procuramos nos nortear para além do aperfeiçoamento moralista da instituição asilar, através de respostas criativas, nunca antes pensada pelos que insistiam em dar respostas estritamente técnicas, como se essas não tivessem profundas implicações com um significado social da doença mental, que, desde os anos 40 estava com seu prazo de validade vencida.
Intuíamos que, para produzir efeitos dentro de uma estrutura totalitária, um saber técnico não podia prescindir de um saber ético. Só mais tarde a fragilidade da bandeira do humanismo se revelaria, com a radicalidade do lema “Por uma sociedade sem manicômios”, no qual está inserida uma outra concepção de contrato social e cidadania dos loucos.
Até então, a organização do trabalho psiquiátrico sofria as inflexões da organização de um aprendizado viciado e de uma formação profissional alienada, que passivamente aceitava a naturalização da idéia de que “lugar de doido é no hospício” e que “uma vez doido, sempre doido”.
Logo esses valores foram subvertidos, especialmente quando, em fevereiro de 1980, os usuários iniciaram participação num projeto terapêutico, que visava a reabilitação psicossocial, através do plantio de hortaliças, roçados de macaxeira, milho, mandioca, feijão, além da criação de 60 cabeças de porcos e do funcionamento de uma casa de farinha. Desde o princípio seria respeitada a questão do direito à remuneração dos usuários pelo seu trabalho.
Poucos êxitos, embora expressivos, foram obtidos com a reforma psiquiátrica no Amazonas, se olharmos criticamente o seu legado. Por exemplo: há quase vinte anos funciona um sistema de emergência para internações de até 72 horas num Pronto Atendimento situado no denominado Centro Psiquiátrico “Eduardo Ribeiro”. Esse último ainda hoje é denominado pelos manauenses como “hospício”. Com essa estrutura emergencial, criou-se mais do que um padrão de atenção à crise, criou-se uma cultura de serviço que torna menos importante a criação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais, tendo como subproduto o aumento da resistência a esse dispositivo previsto nas portarias ministeriais. Significa dizer que a superação desse dispositivo clássico de emergência psiquiátrica exigirá mais do que vontade política.
Aqui, quero entrar na questão central desta carta. Reporto-me a um comentário do mestre Silvio Yasui, no primeiro curso de especialização de saúde mental oferecido pela FIOCRUZ no Amazonas: “Sem movimento social não há reforma psiquiátrica”. Ao que acrescento, sem a mesma maestria: “Não há criação de CAPS sem pessoal qualificado”.
É sabido que o Amazonas é o único estado da federação sem um CAPS sequer. Como se explica esse fenômeno? É fato que a anemia política atingiu vários atores da cena psi, incapaz de se posicionarem, como, por exemplo, no caso recente do desvio de 500 milhões de reais dos cofres públicos amazonenses. Com esse valor poderíamos criar uma extensa rede de atenção diária à saúde mental para todo o estado do Amazonas, fomentar cooperativas sociais, e ainda sobrar dinheiro. A Associação Chico Inácio colocará o tema na rua, no próximo dia 17 de Setembro, quando estará promovendo a I PARADA DO ORGULHO LOUCO, idéia defendida pelo companheiro Nilo, de Florianópolis, no I Congresso Brasileiro de CAPS.
É preciso dizer com todas as letras que a ausência de CAPS, ou mesmo a estagnação da reforma psiquiátrica, especialmente nos anos 90, com sua política voltada para a desospitalização, decorre tanto da anemia política, quanto da ausência de circulação de saberes (seja o saber fazer - com suas inúmeras práticas -, seja o saber dizer - em suas vastas formulações teóricas) acerca do amplo arcabouço de cuidados que tem ajudado a dar uma existência mais digna aos portadores de sofrimento mental noutros estados da federação.
A proposta do Amazonas, no momento em que é realizado o I Fórum Amazônico de Saúde Mental, na cidade de Belém do Pará, é que se adotem as medidas necessárias, como convênios, financiamento etc., para garantir a oferta e a continuidade dos cursos de especialização em saúde mental, de modo a promover a circulação do saber e a eficácia das nossas ações.
Se formos capazes de compreender nossas responsabilidades políticas individuais e coletivas, resta-nos o desafio de traduzi-las em novos modos de militância política e de intervenção na cultura. E, aqui, acreditamos que só uma militância tripartirte, composta por usuários, familiares e técnicos em saúde, é capaz de promover a autonomia e a liberdade desejada, para que possamos criar novos saberes e fazeres como sujeitos desejantes e como cidadãos.
Manaus, 19 de agosto de 2004.
Rogelio Casado
Coordenador do Programa de Saúde Mental do Amazonas
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