agosto 02, 2010

ECT: o eterno retorno do recalcado

Com vossa permissão:

ECT: o eterno retorno do recalcado! O recalcado no caso é a onipotência da técnica e dos técnicos. Não se sabe como funciona, mas funciona: é bárbaro! Sempre alguém terá algum caso pra contar que funcionou e se alguma vez funcionou: porque não? Humm como abster-se assim de alguma técnica que já funcionou... Será que o  ECT é manicomial? A síntese do manicômio é sempre tratar  o complexo pela via do simples: um processo de redução do complexo ao simples. Abster-se de uma relação com o complexo; atropelar o complexo.

A história da Psiquiatria  estabelece uma curiosa relação entre saber e técnica exatamente na conjugação do simples e do complexo ( Os fundamentos da clínica:


História e estrutura do saber psiquiátrico
(Paul Bercherie). 


Quando a técnica da clínica era impotente para intervir na direção a alterar o fenômeno, consistindo na mera exclusão, a teoria era abundante (vide as grandes e complexas construções psicopatológicas), após o pós guerra com o advento do ECT e dos dos psicofármacos, descobertos  ambos por puro acaso a técnica passou a ser mais capaz de interferir no fenômeno - mesmo sem inicialmente saber o porque - e o discursos teóricos sobre o fenômeno foram murchando, murchando até se converter nessa coisa banal, pseudo-científica, o DSM,  que é a redução estatísticas dos sinais-sintomas como o poderoso oráculo para se relacionar com o fenômeno num absoluto esvaziameto teórico (no melhor sentido dessa palavra). Na atual clínica psiquiatrica, nada de complexas descrições ou tentativas de compreensão do complexo mas uma absoluta  redução dos complexos fenômenos a certos padrões neuroquímicos (eis toda a teoria) sustentada por uma suspeitíssima "pesquisa" tecnológica que tem como sua origem principal os "laboratórios" do Laboratório, que é o modo comum de se referir á indústria farmacêutica e que depois são macaqueadas por uma burocracia acadêmica a quem só interessam as "evidências" que lhe interessam... (aliás em tempos de laranjadas e outras falsificações super importante estar atentos a estes supostos cientistas)...

Então a Psiquiatria, colocada em suspeita desde a sua origem pela Medicina, exatamente por sua falta de capacidade tecnológica para intervir no fenômeno, pode finalmente adentrar ao reino tecnológico, ainda que tenha se tornada infinitamente mais pobre em relação as tentativas - algumas magníficas como Krepelin, Jasper, Henri Ey - de produzir a descrição e sitematização da experiência complexa...

Bem, mas a técnica que não tem teoria não tem como ter uma ética. A sua "ética" é o seu mero funcionamento.
.. se funciona, manda ver! Como o ECT e a "Lobotomia"  se deu exatamente isso! Sem saber exatamente como funcionava, mas que funcionava - para que? - sujeitos nada psicopáticos, como a grande parte dos carrascos que trabalharam nos campos judeus, aplicaram o ECT e perfuraram  cérebros - ai, ai, sempre os cérebros, este objeto de fetiche quase sexual da psiquiatria  - e causaram muitos danos às pessoas... Muito mais danos do que benefícios!

Assim a  relativa proscrição do ECT nos dias de hoje - sim porque ele é absolutamente legal e nada impede a sua prática - é de natureza absolutamente moral!!! É graças a uma memória social que insiste em não esquecer as desmesuras de uma técnica, cuja sustentação desde então, e até os nossos dias, não tem outra sustentação senão à idéia de que "ela funciona" que o ECT  tem sido mantido sob suspeita!

Em mais 20 anos de luta antimanicomial, já tendo ouvido depoimentos de milhares de usuários, nunca encontrei um só deles que se referisse positivamente à sua experiência de ter sido vítima de sessões de eletrochoque! Ao contrário, a grande maioria deles se refere a uma dimensão terrorífica, a uma vivência de aniquilação e destruição... Ah isso era antigamente, agora é mais moderno, a corrente esta mais "domesticada", blá, blá, blá. Um dos maiores pesquisadores e propagador americano da modernização da tecnologia já foi devidamente desmascarado num conflito de interesses entre suas "evidências" e sua condição de sócio da indústria de fabricação das máquinas!!!

Aprendi com um usuário no II Encontro  dos Usuários e Familiares, em Santos, em  Dezembro  de 1993, quando foi redigida por eles a Carta de Direitos de Deveres dos Usuários, que prega a extinção do uso do ETC, quando um colega foi defender o uso das "técnicas" em certas situações em que eles os usuários estão em crise e sem autonomia:

_ Olha! amarrar e choque não! A gente não quer que vocês façam isso nunca! E como o colega insistia em argumentar que eram técnicas que podiam ser utéis até para salvar a vida de um deles, o sujeito arrematou: Essas técnicas não! Vocês não são técnicos ? Então inventem outras técnicas, porque que essas a gente não quer que vocês usem na gente!!!

Assim aquele sábio usuário demarcou bem o campo de barramento da técnica: o que barra a técnica é a ética! Funcionar, funciona,  mas a gente - os usuários como um sujeito coletivo de vontade política - afirma que essa técnica deve ficar mesmo proscrita, pois ela e incontrolável exatamente porque esta unicamente baseada na idéia de que para alguns ela funciona!!!!
!!. E em dois ou três Congressos Brasileiros de Psiquiatria, eles foram a porta manifestar essa vontade politica, com o lema: "Eletrochoque: imagina na sua cabeça!"    

A moderna reflexão epistemológica,  como a de de Boaventura Santos afirma claramente que o processo de validação do conhecimento científico na contemporaneidade  depende não apenas do acordo técnico dos cientistas mas deve incluir necessariamente o ponto de vista do consumidor e nesse caso o consumidor - sujeito politiko coletivo - tem opinião sobre o assunto... Então que os técnicos possam fazer o que cabe a eles : inventar novas tecnologias que possam ser inequivocamente reconhecidas como gentis - e não excepcionalmente!
!! Estamos esse caminho: milhões de brasileiros que antes estariam submetidos as tecnologias manicomiais encontram hoje refrigério nos nossos CAPS... Uma clínica que aposta no vínculo e na paciência...

Recentemente em Salvador assiti a uma disputa clínica entre duas equipes que envolvia esse tema: uma do Hospital Juliano Moreira, ligada a Residência de Psiquiatria e outra do Centro de Convivência de Narandiba, uma aldeia gaulesa que faz fronteira física com o Hospital. O objeto da disputa: uma jovem de pouco mais de dezoito anos que apresentava uma condição bastante grave, num registro catatônico, resistente inicialmente à medicação. Para algum dos  preceptores da Residência um prato cheio pra ensinar aos futuros psiquiatras que o eletrochoque funcionava!!
! Para a equipe do CENA um grande desafio de penetrar naquele mundo cerrado... Foram quase três semanas de um intenso investimento humano, com pequenos resultados a cada dia e o agouro constante dos técnicos-urubus, torcendo para a falência e desmoralização da brava equipe... Mas três semanas depois,  o sujeito que morava naquela mulher resolveu dar mais uma chance para o mundo provar que ele não seria mais mera hostilidade e veio de novo compartilhar a vida com todos! Um para o investimento humano, para a paciência, para o vinculo, para a complexidade; Zero para a rapidez ansiosa e simplificadora, para a banalização do "furor curandis"! Zero para o eletrochoque!!!

Anexo uma copia de um parecer sobre o ECT que foi enviado a pedido ao Ministério Publico de São Paulo , há alguns anos atrás,  pelo CFP e no qual  participei do GT que redigiu na época. 

Data venia,

Marcus Vinicius de Oliveira
IPSI-UFBA


Nota do blog 1: ECT - é o acróstico de eletroconvulsoterapia. Na cabeça dos outros é refresco, segundo Zefofinho de Ogum, colaborador deste PICICA.

Nota do blog 2: Fico devendo o anexo, pois o que Marcus Vinicius enviou não está abrindo. Ô, Marcus! Você que matou a cobra, agora mostre o pau!

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