ECT: o eterno retorno do recalcado! O recalcado no caso é a onipotência da técnica e dos técnicos. Não se sabe como funciona, mas funciona: é bárbaro! Sempre alguém terá algum caso pra contar que funcionou e se alguma vez funcionou: porque não? Humm como abster-se assim de alguma técnica que já funcionou... Será que o ECT é manicomial? A síntese do manicômio é sempre tratar o complexo pela via do simples: um processo de redução do complexo ao simples. Abster-se de uma relação com o complexo; atropelar o complexo.
A história da Psiquiatria estabelece uma curiosa relação entre saber e técnica exatamente na conjugação do simples e do complexo ( Os fundamentos da clínica:
História e estrutura do saber psiquiátrico (Paul Bercherie).
Quando a técnica da clínica era impotente para intervir na direção a alterar o fenômeno, consistindo na mera exclusão, a teoria era abundante (vide as grandes e complexas construções psicopatológicas), após o pós guerra com o advento do ECT e dos dos psicofármacos, descobertos ambos por puro acaso a técnica passou a ser mais capaz de interferir no fenômeno - mesmo sem inicialmente saber o porque - e o discursos teóricos sobre o fenômeno foram murchando, murchando até se converter nessa coisa banal, pseudo-científica, o DSM, que é a redução estatísticas dos sinais-sintomas como o poderoso oráculo para se relacionar com o fenômeno num absoluto esvaziameto teórico (no melhor sentido dessa palavra). Na atual clínica psiquiatrica, nada de complexas descrições ou tentativas de compreensão do complexo mas uma absoluta redução dos complexos fenômenos a certos padrões neuroquímicos (eis toda a teoria) sustentada por uma suspeitíssima "pesquisa" tecnológica que tem como sua origem principal os "laboratórios" do Laboratório, que é o modo comum de se referir á indústria farmacêutica e que depois são macaqueadas por uma burocracia acadêmica a quem só interessam as "evidências" que lhe interessam..
Então a Psiquiatria, colocada em suspeita desde a sua origem pela Medicina, exatamente por sua falta de capacidade tecnológica para intervir no fenômeno, pode finalmente adentrar ao reino tecnológico, ainda que tenha se tornada infinitamente mais pobre em relação as tentativas - algumas magníficas como Krepelin, Jasper, Henri Ey - de produzir a descrição e sitematização da experiência complexa...
Bem, mas a técnica que não tem teoria não tem como ter uma ética. A sua "ética" é o seu mero funcionamento.
Assim a relativa proscrição do ECT nos dias de hoje - sim porque ele é absolutamente legal e nada impede a sua prática - é de natureza absolutamente moral!!! É graças a uma memória social que insiste em não esquecer as desmesuras de uma técnica, cuja sustentação desde então, e até os nossos dias, não tem outra sustentação senão à idéia de que "ela funciona" que o ECT tem sido mantido sob suspeita!
Em mais 20 anos de luta antimanicomial, já tendo ouvido depoimentos de milhares de usuários, nunca encontrei um só deles que se referisse positivamente à sua experiência de ter sido vítima de sessões de eletrochoque! Ao contrário, a grande maioria deles se refere a uma dimensão terrorífica, a uma vivência de aniquilação e destruição... Ah isso era antigamente, agora é mais moderno, a corrente esta mais "domesticada", blá, blá, blá. Um dos maiores pesquisadores e propagador americano da modernização da tecnologia já foi devidamente desmascarado num conflito de interesses entre suas "evidências" e sua condição de sócio da indústria de fabricação das máquinas!!!
Aprendi com um usuário no II Encontro dos Usuários e Familiares, em Santos, em Dezembro de 1993, quando foi redigida por eles a Carta de Direitos de Deveres dos Usuários, que prega a extinção do uso do ETC, quando um colega foi defender o uso das "técnicas" em certas situações em que eles os usuários estão em crise e sem autonomia:
_ Olha! amarrar e choque não! A gente não quer que vocês façam isso nunca! E como o colega insistia em argumentar que eram técnicas que podiam ser utéis até para salvar a vida de um deles, o sujeito arrematou: Essas técnicas não! Vocês não são técnicos ? Então inventem outras técnicas, porque que essas a gente não quer que vocês usem na gente!!!
Assim aquele sábio usuário demarcou bem o campo de barramento da técnica: o que barra a técnica é a ética! Funcionar, funciona, mas a gente - os usuários como um sujeito coletivo de vontade política - afirma que essa técnica deve ficar mesmo proscrita, pois ela e incontrolável exatamente porque esta unicamente baseada na idéia de que para alguns ela funciona!!!!
A moderna reflexão epistemológica, como a de de Boaventura Santos afirma claramente que o processo de validação do conhecimento científico na contemporaneidade depende não apenas do acordo técnico dos cientistas mas deve incluir necessariamente o ponto de vista do consumidor e nesse caso o consumidor - sujeito politiko coletivo - tem opinião sobre o assunto... Então que os técnicos possam fazer o que cabe a eles : inventar novas tecnologias que possam ser inequivocamente reconhecidas como gentis - e não excepcionalmente!
Recentemente em Salvador assiti a uma disputa clínica entre duas equipes que envolvia esse tema: uma do Hospital Juliano Moreira, ligada a Residência de Psiquiatria e outra do Centro de Convivência de Narandiba, uma aldeia gaulesa que faz fronteira física com o Hospital. O objeto da disputa: uma jovem de pouco mais de dezoito anos que apresentava uma condição bastante grave, num registro catatônico, resistente inicialmente à medicação. Para algum dos preceptores da Residência um prato cheio pra ensinar aos futuros psiquiatras que o eletrochoque funcionava!!
Anexo uma copia de um parecer sobre o ECT que foi enviado a pedido ao Ministério Publico de São Paulo , há alguns anos atrás, pelo CFP e no qual participei do GT que redigiu na época.
Data venia,
Marcus Vinicius de Oliveira
IPSI-UFBA
Nota do blog 1: ECT - é o acróstico de eletroconvulsoterapia. Na cabeça dos outros é refresco, segundo Zefofinho de Ogum, colaborador deste PICICA.
Nota do blog 2: Fico devendo o anexo, pois o que Marcus Vinicius enviou não está abrindo. Ô, Marcus! Você que matou a cobra, agora mostre o pau!
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